Antibióticos, analgésicos, antidepressivos, contracetivos, anti-inflamatórios, citotóxicos, antipiréticos, estimulantes, anti-histamínicos… Uma boa parte de cada comprimido que tomamos, de cada injeção que levamos, de cada pomada que aplicamos, vai parar aos rios e ao mar. Em certos casos, 90% da substância ativa é excretada pela urina, pelas fezes e pela transpiração, e acaba na Natureza, com risco para as espécies – incluindo a humana. No mínimo, 30% do medicamento é desperdiçado pelo organismo e libertado no meio ambiente.
Uma análise da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), divulgada no mês passado, concluiu que há um risco significativo para o ambiente e para a saúde pública, atendendo à quantidade crescente de vestígios de medicamentos que tem sido encontrada na água. O relatório Resíduos Farmacêuticos em Água Doce: Riscos e Respostas Políticas cita vários estudos, para avaliar o grau de contaminação, incluindo uma meta-análise de 2016 que pôs Portugal no grupo de países em que foram encontradas entre 11 e 30 substâncias diferentes na água de superfície, subterrânea, da torneira e até de garrafa. Podia ser pior: Espanha, aqui ao lado, e que partilha connosco vários rios, ficou no grupo em que foram identificados entre 101 e 200 compostos.
Bruno Nunes, investigador do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar, da Universidade de Aveiro, não tem dúvidas de que há fármacos em toda a água, mesmo na de consumo – mais de três mil substâncias ativas, estima, escapam incólumes das Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR). “Costumo dizer aos meus alunos que as ETAR servem apenas para tratar cocó”, diz o autor de vários estudos sobre os efeitos de fármacos em diversas espécies de animais. “Há soluções tecnológicas para dois ou três medicamentos. E o resto? Não há uma tecnologia única para estas três mil substâncias. Nem os países nórdicos conseguem tratá-las.”
No seu relatório sobre o problema, a OCDE avisa que os fármacos têm graves impactos nos ecossistemas. “Medicamentos psiquiátricos alteram o comportamento dos peixes; disruptores endócrinos podem causar toxicidade reprodutiva nos peixes e aumentar o risco do cancro da mama ou da próstata em humanos; e o uso excessivo de antibióticos está ligado à resistência antimicrobiana – uma crise global de saúde.”
Antibióticos em todo o lado
A contaminação da água é global, e nalguns casos não se trata apenas de vestígios. Em efluentes industriais de EUA, China, Índia, Coreia do Sul e Israel, a concentração de fármacos chega a atingir os miligramas por litro. Nos EUA, aliás, a questão está muito longe de se limitar aos medicamentos expulsos pelo corpo: calcula-se que um terço das drogas prescritas seja deitado fora.
Investigadores da Universidade de York analisaram 72 rios de todo o mundo e detetaram antibióticos em dois terços
De todos os tipos de substâncias, nenhum assusta tanto como os antibióticos. A resistência antimicrobiana é uma das mais preocupantes tendências na saúde. Hoje, cerca de 700 mil pessoas morrem todos os anos com infeções multirresistentes. Em 2050, esta poderá ser já a principal causa de morte no mundo.
A situação é causada pelos exageros no consumo de antibióticos, mas a acumulação destas substâncias na água pode acelerar o processo. E a verdade é que a sua presença está generalizada. Investigadores da Universidade de York, no Reino Unido, analisaram a água de rios de 72 países espalhados pelo mundo em busca dos 14 antibióticos mais utilizados e encontraram-nos em 65% dos locais. Ou seja, dois em cada três rios estão contaminados, sendo que o antibiótico mais comum, que serve para tratar infeções urinárias, se encontrava em quase metade dos 711 locais testados. Num rio do Bangladesh, as concentrações de antibióticos encontravam-se 300 vezes acima do nível considerado seguro.
Um relatório do Centro de Investigação Comum, um departamento de Ciência da Comissão Europeia, confirma que resquícios de antibióticos têm sido detetados em vários corpos de água, incluindo na que bebemos, embora, neste caso, em quantidades que “não representam riscos para a saúde humana”.
Fármacos nas alfaces?
Por agora, ainda não há evidências de que os medicamentos na água estão a afetar animais e humanos. Mas os estudos efetuados a determinadas espécies dão-nos uma pista do grau de risco em causa. Há cientistas portugueses entre os que têm testado os impactos de medicamentos comuns em animais aquáticos, e os seus resultados mostram que nada é inócuo. O paracetamol, por exemplo, demonstrou efeitos significativos ao nível dos genes de duas espécies de amêijoas e na enguia-comum, mesmo em quantidades passíveis de serem encontradas na Natureza.
“Podem estar em causa alterações hormonais e bioquímicas, questões de desenvolvimento… Alguns fármacos têm o potencial de espoletar o processo de cancro”, lembra Bruno Nunes, coautor de vários destes estudos. “Há dados em organismos que mostram haver uma série de alterações ao nível da reprodução, do metabolismo e do comportamento. Nos humanos, é mais difícil avaliar os impactos, mas estamos a falar do efeito cumulativo, e há medicamentos persistentes que se mantêm durante décadas na água. Será claramente um problema no futuro.”
Um problema que pode atingir as populações por outra via, além da água: em Portugal, as lamas domésticas e urbanas das ETAR podem ser utilizadas nos solos agrícolas, como fertilizantes. A legislação nacional apenas permite a utilização de lamas que cumpram os valores-limite de concentração e quantidade de metais pesados, compostos orgânicos e micro-organismos. A lei é omissa quanto à presença de medicamentos nas lamas que vão adubar os vegetais e legumes que consumimos.
Um problema crescente
As substâncias vão continuar a acumular-se na água – não há atualmente forma de resolver a situação. Os antibióticos são o que mais preocupa as autoridades
30% a 90%
Dos medicamentos que tomamos são expulsos pelo organismo
3 a 4 mil
É o número de substâncias ativas usadas em medicamentos em todo o mundo
Os mais comuns
Sulfametoxazol, trimetoprim e ciprofloxacina são os antibióticos mais encontrados nas estações de tratamento de águas. São sobretudo usados para tratar infeções urinárias
2050
É o ano em que, de acordo com um estudo inglês, as infeções multirresistentes se tornarão a principal causa de morte
Agricultura
A lei portuguesa impõe limites para os metais pesados, nas lamas das ETAR que são usadas como fertilizantes nos solos agrícolas, mas não refere medicamentos