Quando soltou amarras do porto de Bergen, na Noruega, no final de junho, o centenário veleiro Stastraad Lehmkuhl deu início a uma histórica travessia rumo a Lisboa. Não só porque se preparava para participar na maior regata de veleiros do mundo (The Tall Ships Race) mas também, ou sobretudo, porque transportava a bordo o “exemplar 500 milhões” – o 500 000 000º a chegar ao nosso país, nestes 70 anos de exportação de bacalhau da Noruega para Portugal. Para chegarmos a este marco, no entanto, foram precisos mais de 20 anos de estudos intensivos e uma enorme coordenação entre cientistas, pescadores e governantes. Era esta a única forma de a Noruega conseguir sair de uma situação de rutura de stocks e posicionar-se como umas das maiores fontes de bacalhau do mundo.
“Entre 1996 e 1997, a natureza não foi amiga, e os stocks de bacalhau caíram drasticamente. Nessa época, os pescadores queixavam-se de que não tinham peixe para pescar, até que, em junho de 1999, foram forçados a parar a pesca durante seis meses”, recorda Knut Korsbrekke, investigador do Instituto de Investigação Marinha de Bergen. Passados 17 anos, os noruegueses continuam sem esquecer aqueles tempos de escassez – muitos pescadores tiveram de procurar trabalho nas plataformas petrolíferas do mar do Norte. E por isso mesmo, quando hoje os cientistas e o governo determinam os limites anuais de pesca, a oposição dos pescadores às regras impostas por “burocratas” é bem menor. A suspensão das pescas acabou por se revelar uma vantagem, e dois anos depois da paragem forçada os pescadores começaram a ceder com mais facilidade às limitações impostas.
Desde então, todos os anos, uma equipa do Instituto de Investigação Marinha reúne com os pescadores noruegueses antes de ser anunciado o limite máximo de pesca aprovado para o ano correspondente. E é graças a este diálogo que os diferentes intervenientes conseguem trabalhar em sintonia, com resultados que acabam por servir de exemplo para outras reservas.
“A nossa experiência com esta gestão tem corrido muito bem. O colapso de stocks nos anos 70 e 90 foram acidentes terríveis para a nossa economia. Mas as pessoas acabaram por aprender a lição”, conta Knut Korsbrekke.
Aumento de 10% das quotas
Hoje, o instituto onde trabalha Knut Korsbrekke emprega 750 pessoas e possui uma frota de sete barcos exclusivamente para investigação marinha. Os cientistas medem a quantidade e a qualidade de bacalhau, acompanham a evolução das espécies e trabalham em cooperação com outros Estados. Como resultado, os bacalhaus estão hoje a atingir dimensões recordes e o país consegue manter uma evolução estável das quotas pesqueiras. Só no nordeste do mar Ártico, os exemplares observados são quatro vezes maiores do que eram há 25 anos. E um forte alinhamento entre as políticas piscatórias da Noruega com a Rússia, que partilham alguns recursos a norte, permitiram chegar a estes resultados.
A pesca e a transformação do bacalhau, bem como de outros peixes, como o salmão, continuam a representar uma das principais fontes de receitas da economia local, pelo que as autoridades têm procurado formas de manter os recursos marinhos de forma simultaneamente sustentável e lucrativa. Daí que, nos últimos anos, tenham mudado os métodos de pesca, acabando com formas ancestrais mas destrutivas, como algumas técnicas de arrasto, e aumentaram a fiscalização sobre a pesca ilegal. No nordeste do Ártico, existe atualmente o maior stock de bacalhau do mundo e, aparentemente, em boas condições.
Esta reserva é gerida em simultâneo com a Rússia, com quem a Noruega tem desenvolvido políticas comuns de gestão das quotas anuais de pesca. Como resultado, o número de espécimes tem vindo a aumentar e o valor das quotas já aumentou 10% nos últimos sete anos. Além disso, as autoridades também têm reforçado o combate à pesca de animais jovens. Nas águas norueguesas, por exemplo, o tamanho mínimo admitido por peixe é de 44 centímetros, e se cada captura tiver mais de 15% de peixes abaixo da dimensão mínima, o pescador é proibido de pescar durante seis meses.
O mar do Norte, por outro lado, é gerido em cooperação com a União Europeia. Mas os stocks nesta região são muito reduzidos. E uma das principais razões para o bacalhau não se reproduzir em quantidade suficiente prende-se com a pesca não sustentável: a legislação europeia proíbe que peixe demasiado jovem chegue à costa, mas não existe uma dimensão mínima a partir da qual se podem capturar; logo, muitas frotas pesqueiras acabam por apanhar peixes pequenos que acabam por descarregar no mar, já mortos. Entre 2000 e 2007, até foi possível baixar a mortalidade dos peixes, mas a partir de 2008 voltou a subir de forma substancial.
Baixar para aumentar
Na Noruega, a pesca é realizada ao longo de todo o ano, mas concentra-se sobretudo em seis meses: entre o inverno e a primavera no sul do mar do Barent e áreas costeiras, e durante o outono na frente polar. Cerca de 30% da pesca do bacalhau na Noruega é feita através do método de arrasto de fundo, 30% em redes, 15% por linha longa, 15% por rede de arrasto holandesa e 10% por linha de mão. O milhão de bacalhaus que todos os anos é capturado permitia preparar uma refeição para cada pessoa que vive no planeta. “O nosso grande desafio é pescar o máximo num prazo o mais alargado possível”, reconhece Knut Korsbrekke.
“E espero que os níveis de captura de bacalhau decresçam”, acrescenta o investigador. “A pesca tem sido feita em quantidades muito grandes. É preciso lembrar que esta é uma produção flutuante. Se baixarmos os níveis das quotas anuais vamos permitir que os peixes cresçam mais. Mas os pescadores hoje estão mais educados e entendem que os cientistas podem ajudá-los. É importante termos um bom controlo das espécies. Foi uma lição que demorámos a aprender, e será bom que a União Europeia consiga olhar para ela quando faz a gestão do mar do Norte”.
A 22 de julho, praticamente um mês depois de zarpar, o bacalhau 500 milhões aportou no Porto de Lisboa, onde foi entregue ao Presidente da República. Se tudo continuar a correr como os noruegueses – e os portugueses – esperam, em 2086 chegará o peixe mil milhões.
* A VISÃO viajou até Bergen a convite da Norge.