Nunca um peixe tão pouco sexy causou tanto furor. Não atinge mais do que sete centímetros o tamanho de um joaquinzinho, é fugidio e, por isso, dificilmente observável, não serve para cozinhar e está circunscrito a cursos de água remotos, perdidos nas planícies do Sul do País. Mas o saramugo, espécie exclusiva do Guadiana e, neste rio, apenas de alguns afluentes do troço português, está em perigo de extinção. “É por isso que o reproduzimos em cativeiro, nesta sala”, explica Pedro Rocha, 39 anos, director-adjunto do Departamento Sul do Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB), enquanto mostra a meia dúzia de aquários instalados num compartimento do primeiro andar da sede do Parque Natural do Vale do Guadiana, em Mértola.
Os peixes estão divididos pelos aquários, de acordo com os locais onde foram capturados. Não se misturam espécimes de diferentes ribeiras, “para evitar a contaminação genética”, explica Pedro Rocha. A recolha, nas bacias, começou em 2005, ano de seca, quando os pegos das ribeiras quase desapareceram e o habitat do saramugo ficou reduzido a pequenas poças, quase inviabilizando a sua sobrevivência. As campanhas realizadas pelo ICNB nesse ano, e em 2007 e 2008, constataram uma regressão acentuada da sua área de distribuição e o desaparecimento de três das dez sub-bacias do Guadiana do Caia, do Álamo e do Carreiras.
As secas cada vez mais frequentes neste Outono praticamente ainda não choveu na zona de Mértola e as espécies exóticas, introduzidas no rio acidentalmente ou com o propósito de o povoar para a pesca desportiva, são as principais ameaças ao saramugo. “Chegámos a uma situação extrema e é bem possível que o peixe desapareça das bacias hidrográficas da região”, avisa Pedro Rocha.
A CULPA É DOS ACHIGÃS A última esperança para a salvação da espécie é a pequena sala com aquários onde, em 2005, pela primeira vez no mundo, se conseguiu a sua reprodução em cativeiro. Enquanto o Pólo Ictiológico do Guadiana não é construído está prevista a sua conclusão em 2011, graças a um financiamento de 425 mil euros que conta com apoios comunitários, é mesmo o último reduto dos saramugos.
Com uma taxa de reprodução baixa, um ciclo de vida curto (apenas três a quatro anos) e a necessidade de água corrente e de leitos com seixos para a desova, aqueles peixes enfrentam condições cada vez mais adversas. A disseminação, na bacia do Guadiana, de achigãs, espécie com interesse para a pesca desportiva, predadora dos saramugos, limitou ainda mais as hipóteses de sobrevivência da espécie nativa portuguesa. O repovoamento das ribeiras tem sido efectuado com os indivíduos reproduzidos em cativeiro, mas, enquanto o centro ictiológico não estiver pronto, as condições para investigação e conservação das espécies nativas do Guadiana não são as melhores.
O desaparecimento do esturjão, na década de 1970, quando os últimos exemplares foram pescados, é uma recordação lúgubre do que poderá acontecer a outras espécies do rio.
Um dos locais onde ainda subsiste um núcleo importante de saramugos é a ribeira do Vascão, um curso de água com cerca de cem quilómetros, que serve de fronteira natural entre o Alentejo e o Algarve, no Sotavento, separando Mértola de Alcoutim, e Tavira de Almodôvar. Ladeada por colinas suaves, povoadas de zimbros, azinheiras e zambujeiro (oliveira brava), a ribeira é das poucas da região que conservam o seu perfil natural, sem barragens nem grandes fontes de poluição. Apesar da seca, mantém grandes pegos, onde subsistem os saramugos, durante o Verão. Sob a ponte da estrada que liga Mértola a Alcoutim, num troço já perto da foz do Vascão, a WWF (World Wildlife Fund), com o apoio financeiro da Coca-Cola, está a plantar espécies nativas numa zona que ardeu, em 2004. O objectivo é repovoar as encostas, impedindo que a erosão assoreie a ribeira e danifique o habitat do saramugo.
SOB UM SOL DE VERÃO Na encosta ressequida e xistosa da margem esquerda do curso de água, uma empresa de sivicultura especializada em intervenções ambientais plantou, nos últimos dois anos, manualmente, cerca de 2 mil árvores. Mas a passagem acidental de rebanhos de ovelhas, que vão beber à margem da ribeira, e a falta de chuva, têm dificultado a tarefa dos conservacionistas.
Naqueles três hectares de propriedade privada, em minúsculos socalcos criados para reter a pouca precipitação, os ambientalistas têm plantado espécies nativas acompanhadas por arbustos de leguminosas. Trata-se de uma associação favorável às árvores, pois os arbustos concentram, nas raízes, o azoto do solo, nutriente importante para o desenvolvimento das plantas. “Conseguimos evitar que os rebanhos comessem tudo. Temos estabelecido uma boa relação com a população local”, assegura Luís Silva, 40 anos, coordenador da área de conservação da WWF Portugal e responsável pelo projecto de renaturalização da ribeira do Vascão.
Com os 30 mil euros anuais que a Coca-Cola, no último biénio, canalizou para o projecto, Luís pretende, também, intervir no leito do rio, removendo a vaza que ali se acumulou. “Os saramugos precisam de leitos pedregosos para se reproduzirem”, explica o engenheiro florestal, que, há quatro anos, trabalha para a WWF. “E temos também de recuperar a vegetação ribeirinha, porque eles necessitam de sombra e de protecção para sobreviver.” Enquanto a intervenção ambiental não chega ao leito da ribeira, um estrangeiro aproveita para se banhar nas águas límpidas do Vascão. Uma ovelha acorrentada a uma árvore rumina a pouca erva das redondezas. Estamos na segunda quinzena de Novembro mas, ao fim da manhã, o termómetro marca 25 graus centígrados, nas encostas do vale. Os voluntários que plantam árvores na encosta suam, passados uns minutos de trabalho. Parece um sonho de Verão. Mas, no rio, para os saramugos, ainda não acabou a tragédia.
PROTAGONISTAS:
Pedro Rocha Biólogo teimoso
Já dirigiu o Parque Natural do Vale do Guadiana, uma das mais jovens áreas protegidas nacionais, criada em 1995. Mas uma reorganização dos serviços do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade atirou Pedro Rocha para subdirector da Região Sul e, hoje, responde também pela preservação da ria Formosa, do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina. Este biólogo, de 39 anos, fez o doutoramento em ecologia das abetardas, uma ave corredoura de porte médio que habita as estepes cerealíferas de Castro Verde. É, aliás, nesse concelho que hoje mora, com a mulher e as duas filhas. “O nosso trabalho de conservação, no Guadiana, é de resistência”, diz.
Luís Silva Engenheiro ambientalista
Trabalhou na Herdade da Coitadinha, mil hectares raianos adquiridos pela empresa que gere o empreendimento do Alqueva, como contrapartida ambiental pela construção da barragem. Aí, perto do castelo de Noudar e de Barrancos, monitorizou as medidas de minimização dos impactos ambientais da construção do empreendimento. Luís Silva, 40 anos, é engenheiro agrónomo, formou-se no Instituto Superior de Agronomia, e, há quatro anos, trocou o sector privado pelo trabalho para uma ONG da área da conservação da Natureza. Mas não saiu do Alentejo, onde ainda reside (em Santo André, Sines), e de onde coordena os projectos conservacionistas da WWF Portugal.