Joanne Rowling, 35 anos, aparece na revista Celebrity como a 24.ª celebridade mais bem paga de todo o mundo, entre Michael Jordan e Cher. Embora a própria insista em que a sua vida não tem interesse, o facto é que o seu percurso já tomou contornos de conto de fadas. E a saga de Harry Potter começa em Portugal.
O romance com o Porto e com um portuense, embora curto, foi intenso. Tão intenso que Joanne recusa falar nisso. Aliás, em todas as suas biografias que inundam a net, os anos portugueses são passados num quase silêncio de duas linhas. Joanne casou a 16 de Outubro de 1992, deixou o marido a 17 de Novembro de 1993. Então o que é que aconteceu? «Nunca falo sobre isso», afirmou numa entrevista ao The Times. «Obviamente,
não se abandona um casamento depois de um espaço de tempo tão curto se não houver problemas graves. Mas ficou claro que a única solução era partir. Portanto parti. Nunca o lamentei.»
Joanne Rowling viveu no Porto entre 1991 e 1993. Foi aqui que conheceu o marido, o jornalista Jorge Arantes, que nasceu a filha de ambos, que planeou a saga de Harry Potter.
«Ela queria ensinar no estrangeiro, e havia duas alternativas: Portugal e a Grécia», conta Jorge Arantes, hoje com 32 anos.
«Aquilo que ela conhecia de Portugal, agradava-lhe. Os portugueses têm muitas coisas em comum com os ingleses: a atracção pelo mar, a ligação à infância. Joanne não conhecia ninguém no Porto, a vinda para cá aconteceu um pouco por acaso, como sempre que não se tem planos de vida concretos. Já tinha cá estado, no Algarve, mas o Algarve não é Portugal, e ela não queria vir para o Algarve.»
Filha de um engenheiro da Rolls Royce e de uma técnica de laboratório, Joanne nascera em Gloucestershire, Inglaterra, em Julho de 1965. Depois de se formar em Literatura Francesa na Universidade de Exeter, teve uma série de empregos de secretariado, um deles numa editora onde estava encarregada de enviar cartas de rejeição e outro numa companhia de equipamento de escuta inundada de minigravadores, binóculos
de infravermelhos, e pessoas sinistras. Mudou para a Amnistia Internacional, e já nessa altura escrevia, sem o confessar a ninguém. «Dava desculpas ridículas para não ir almoçar com os meus colegas e tinha um ar tão misterioso que muitos deles achavam que eu tinha um affair», contou, numa entrevista. Segundo a lenda, data dessa altura o flash do nascimento de Harry Potter: a ideia nasceu num atraso de quatro horas, numa viagem de comboio.
Quando Joanne faz 22 anos, a mãe morre de esclerose múltipla. Joanne decide mudar de vida, e depois de um estágio em Paris encontra emprego em Portugal.
Aprendiz de feiticeira
O que tinha Joanne de tão diferente das portuguesas? «Era inteligente, irónica, muito viva, uma grande conversadora», recorda Jorge Arantes. «Tinha uma sensibilidade diferente, era excessiva, imitava pronúncias… O humor dela era aquele humor coloquial e regional tão típico dos ingleses, irónico mas sem ser ácido. Isso nota-se nos livros.»
Joanne e Jorge conheceram-se no bar Meia-Cave, em plena Ribeira. Ela tinha 25 anos, dava aulas no Encounter English, uma escola de línguas, na Boavista. Jorge tinha 22 anos, e terminava o curso de Comunicação Social. «Eu estava com um amigo, ela com os professores da escola. Eu gosto de estrangeiros, sou muito português, nesse aspecto. Então, o nosso olhar encontrou-se e começámos a falar de livros.»
Ficou com o telefone da inglesa que falava de livros. Marcaram novo encontro para o mesmo sítio. Dessa vez, sem acompanhantes. «Era uma segunda-feira, e à hora a que chegámos aquilo estava deserto. Não havia mais ninguém, só eu e ela.» Do encontro até ao casamento decorreu muito menos de um ano: «Conhecemonos em finais de Março e casámo-nos em Outubro. Foi uma questão de paixão.» A decisão foi tomada no café Majestic, onde iam regularmente. Casaram-se no registo do Largo Viriato, e celebraram, de forma original: num rodízio brasileiro.
Foram morar para a Rua do Agro, do outro lado do rio, em Gaia. Joanne continuou a dar aulas — e a escrever. «Ela dava-se muito bem com os alunos, era uma professora interessada e interessante, muito maternal, muito imaginativa. Dava aulas à tarde, começava às 4 ou 5 horas. Passávamos as manhãs juntos, e depois ela ia para a escola.»
Como muitos portugueses, Joanne gostava de escrever em cafés. Escrevia, e ainda escreve, à mão, com uma esferográfica preta, e se não houver papel, escreve na primeira coisa que lhe aparecer. Os nomes das quatro casas de Hogwarts, por exemplo, assentou-os num saco de papel de avião. E talvez tenha sido no Majestic que Harry tomou forma. «Segundo ela me disse, eu fui a primeira pessoa a ler o Harry Potter», afirma Jorge. «Joanne já tinha começado um esboço três anos antes, mas foi cá que começou, de facto, a escrever. Lembro-me bem, as personagens já estavam lá todas, e nós trocávamos sugestões, principalmente sobre a criação do mau, Voldemort.» Não só ouviu o princípio mas conhece o fim, o tal fim que, segundo Joanne afirmou, já está escrito e trancado a sete chaves, e que Jorge, fiel à promessa feita, não revela. «Não ia agora desapontar os leitores…», sorri.
A estrutura da colecção em sete volumes também já estava concebida. «Ela tinha uma ideia muito precisa daquilo que queria fazer. Queria publicá-lo, mas foi rejeitada várias vezes antes de ser aceite pela Bloomsbury. Foi rejeitada inclusive pela Penguin, que já se apercebeu do mau negócio que fez…», ri.
Sybill, Suskind e Salazar
Os muitos interesses de Joanne tornavam-na cativante. Tocava piano, pintava (chegou a realizar uma capa baseada num álbum de Nick Cave, para um concurso promovido pelo jornal Blitz), interessava-se por Astrologia. «Fazia cartas astrológicas dos amigos e pessoas da família. Era ágil, articulada, e sabia fazer todas as projecções de cálculos e latitudes.» O que não condiz, faz-se notar, como Sybill Trelawney,
a professora de Adivinhação de Harry, uma das personagens mais maltratadas do livro. Aliás, uma das mais cómicas passagens do quarto volume mostra Harry e o seu amigo Ron, sem tempo para fazerem decentemente os seus cálculos astrológicos de trabalho de casa, a inventarem catástrofes, desastres e mortes ao calhas — e a conseguirem a nota mais alta da turma. «Pois», sorri Jorge, «mas eu julgo que isso
se explica de maneira simples: ela quis matar o ego.»
Colecciona nomes engraçados que recolhe em todo o lado: santos medievais, dicionários, plantas, listas de guerra e pessoas que encontra. «A propósito, vou usar o seu nome», declarou, recentemente, a um correspondente internético chamado Icicle. Para já não falar de Salazar, nome com que baptizou o
Senhor das Trevas.
Acima de tudo, Joanne e Jorge tinham ambos a ambição de se tornarem escritores. Com os amigos, a Joanne não falava do seu trabalho, mas falava de literatura. Ofereceu ao marido livros de Salinger, bem como Os Três Contos, de Flaubert, O Deus das Moscas, de William Golding, e uma colectânea de poesia romântica inglesa. Jorge retribuiu com O Perfume, de Suskind, Momo, de Michael Ende e um dicionário de símbolos. «Ela interessava-se muito por mitologia celta, pelo paganismo grego, e tinha muitos livros sobre isso.»
De português sabia pouco, compreendia mais do que falava. «Eu lia-lhe alto livros infantis portugueses, e traduzia-lhe. Lia-lhe Um menino chamado Menino, de Álvaro Magalhães, por exemplo.»
Os dias amargos
Durante mais ou menos um ano, tudo correu bem. Também havia interesses menos intelectuais: a comida, por exemplo. «Joanne não gostava de tripas, mas gostava de francesinhas, de papas de sarrabulho, de comida chinesa.» E os passeios. «Fomos a Amarante, ao Gerês. Andávamos muito de eléctrico, de mota, de comboio.» Joanne tinha uma relação afectiva com os comboios: foi num comboio, na estação de King’s Cross, que os seus pais se conheceram. Foi noutro comboio que decidiram casar-se. Foi num comboio que teve
a ideia de criar Harry. E é num comboio que, no princípio de cada ano lectivo, o aprendiz de feiticeiro faz a passagem do mundo dos muggles (não-mágicos) para o mundo da magia.
Apesar de estar longe da família, as saudades de Inglaterra não eram muitas. «Gostava de viver no Porto», afirma Jorge. «Gostava das ruas, gostava das pessoas, gostava da cidade. E de vez em quando, o pai e a irmã vinham visitá-la.» Nota, no entanto, que Joanne sentiu sempre a falta da mãe. «Ela ficou muito abalada com a sua morte, e via-se como uma órfã. Por alguma coisa, Harry é órfão também.»
Outra mágoa foi o facto de a mãe não ter vivido para conhecer a neta, nascida em 93. Chamaram-lhe Jessica, em homenagem à activista Jessica Mitford. A partir daí, a relação entre o casal começa a correr menos bem. Joanne deixa o marido a 17 de Novembro de 1993, pouco mais de um ano depois do casamento. E a separação deixa marcas até nos livros. «Há muitas referências à nossa vida», nota Jorge. «Por exemplo, no terceiro volume, ela fala da morte de um animal, e diz que o animal já estava morto antes do dia 16 de Outubro. Ora essa é a data do nosso casamento.»
Quando Joanne deixou Portugal, Jessica tinha apenas 6 meses. Desde essa altura, Jorge não vê a filha, que tem agora 7 anos. Jorge defende-se. «Não quero ser um Pai Natal daqueles que só vêem os filhos uma
vez por ano.» Pai, para ele, é quem está a tempo inteiro. Mas diz que, agora que Jessica já é suficientemente crescida, talvez tente uma aproximação.
Mais conhecida do que os Beatles
Em 1993, na altura em que John Major acusou as mães sozinhas de estarem na base de todos os males de Inglaterra, Joanne era uma dessas mães. Desempregada e a braços com uma depressão, vivia num minúsculo apartamento em Edimburgo com uma filha bebé, e escrevia em cafés, aquecida pela única coisa que podia comprar: uma chávena de café. Quando terminou o manuscrito, passou-o numa máquina
de escrever. E passou-o duas vezes, porque não se podia dar ao luxo de gastar as 40 libras (13 200$00) necessárias para as fotocópias. Depois enviou-o a várias editoras até ser aceite.
O resto da história é o que se sabe. Joanne estoirou com todos os tops de vendas. Foi acusada de plágio (o que é sempre um sinal de sucesso). Foi proibida em escolas dos Estados Unidos e da Nova Zelândia,
acusada de incitar as crianças ao consumo de droga e à prática de feitiçaria. Tornouse, depois de lady Di, a inglesa mais conhecida, mais amada, mais exportada e mais perseguida. E, sobretudo, recuperou para a
leitura milhares de irrecuperáveis.
Para os amigos portugueses que não estavam ao corrente dos seus dotes literários, tudo isso foi um choque. E por alturas da publicação do segundo volume, os jornalistas ingleses aterraram no Porto. «Perseguiram-me muito», recorda Jorge. «Tiravam-me fotografias sem eu ver, inventavam entrevistas baseadas naquilo que tinham lido, corriam atrás dos vizinhos.»
Hoje, Jorge trabalha em Paris, numa editora. Joanne já se mudou para uma casa com três divisões e comprou um computador portátil. Mas ainda escreve à mão, num café, bloqueando o ruído de fundo.
A própria já admitiu que sem o casamento e a depressão que se seguiu, não teria havido Jessica, e provavelmente não teria havido Harry. Não fala de Portugal a não ser dos alunos e da forma como os ensinava a pronunciar o seu nome: como em rolling pin. Eles preferiam rolling stone. Ainda hoje,
Joanne continua amada pelos jovens portugueses. Até Julho deste ano, Harry vendeu em Portugal 93 mil exemplares. O quarto volume, Harry Potter e o Cálice de Ouro ainda não saiu, mas há vários pedidos
de reserva e a edição inglesa já se esgotou. O lançamento, com pompa e circunstância, está agendado para Novembro.