Num raro momento de exaltação, o severo primeiro-ministro israelita Yitzhak Rabin tirou do bolso do casaco um papel com a letra de Shir Ha-Shalom (O Cântico da Paz) e cantou em coro com ascem mil pessoas que se reuniram na praça dos Reis de Israel, em Telavive, para festejarem a paz e apoiarem a
sua política. Algo de insólito, quando os extremistas árabes e judeus, empenhados em liquidarem os ténues acordos entre Israel e os palestinianos, ocupam o palco central. Mas naquela límpida noite de sábado, dia 4, a mensagem era diferente. O chefe do gove rno de Israel, 73 anos, exortou a multidão a seguir o
caminho em que empenhara o país em Setembro de 1993. «Há inimigos do processo de paz
que tentam atingir-nos», disse, «mas a violência mina a democracia, devendo ser denunciada e isolada.»
Rabin dava mostrasde alegria pelo imenso apoio e afecto que emergia da maior multidão que a praça alguma vez vira. Masos espectadores não conseguiam afastar os receios por completo. Durante a m anifestação, um homem de nome Meir Doron aproximou-se de um jornalista e perguntou: «Não acha que Rabin devia usar colete à prova de bala numa situação destas?» O jornalista encolheu os ombros e Doron encaminhou-se para Leah Rabin, a mulher do primeiro-ministro, e perguntou-lhe se achava que o ma rido não corria perigo. Ela dirigiu-lhe um olhar duro, colocou um dedo nos lábios e disse: «Chiu! Não diga isso. Não acredito que alguém seja capaz de fazer uma coisa dessas.»
Quando a manifestação terminou, Rabin abandonou a tribuna por uma escada que conduzia a uma zona protegida onde o esperava um Cadillac blindado. Exactamente quando entrava na viatura, às 21 e 40, apareceu um homem por trás dele com uma pistola de calibre 22 na mão. O assassino, um militante judeu de 25 anos chamado Yigal Amir, disparou dois tiros a menos de três metros de distância.
Os projécteis atingiram Rabin, que sempre se recusara usar colete à prova de bala. Uma perfurou-lhe o baço; a outra afectou artérias importantes do peito e esmagou-lhe a espinal medula, ensopando de sangue
o papel que guardava no bolso, com a letra do Cântico da Paz.
Enquanto um pelotão do pessoal de segurança agarrava Amir e o encostava à parede de um centro comercial adjacente, outro grupo de guarda-cost as colocava o dirigente atingido dentro do carro e partia para o hospital Ichilov, situado nas imediações. Quando Rabin ali chegou, não tinha pulsação nem tensão arterial; após esforços heróicos para estancar a extensa hemorragia, os médicos reconheceram o fracasso. Às 23 e 15, EitanHaber, o chefe do pessoal do primeiro-ministro, assomou à porta do hospital gritando para todo a gente ouvir: «Rabin morreu!»
ISRAELITAS DIVIDIDOS
O primeiro assassínio político na curta história do país deixou os israelitas em estado de choque. Primeiro, havia a perspectiva de um judeu a matar outro judeu.
Num país em que a vida de cada cidadão é considerada preciosa, não podia conceber-se horror maior. E quando a vítima era um primeiro-ministro cuja corajosa política de do com questões de segurança o assassínio foi uma possibilidade praticamente desprezada. Os israelitas partiam do princípio de que estavam seguros uns entre os outros —afinal, o fundamento da constituição do Estado judeu. Mas claro que poderia ter sido prevista tal possibilidade. Nos dois anos transcorridos desde que Rabin se lançou na controversa paz com os palestinianos, os extremistas da direita radical tinham vindo a aumentar o tom das suas ameaças de subverter o processo e de preservar o seu sonho de um Grande Israel até ao Rio Jordão. Yigal Amir pode ter
actuado sozinho, como declarou à polícia, mas tem do seu lado muitos conspiradores ideológicos.
O desaparecimento de Rabin tem implicações profundas para todo o Médio Oriente, visto ter sido ele que tornou possível a aproximação israelo-árabe. Será suficiente para fazer parar o processo? O consenso inicial indicava que não. Mas ninguém sabe durante quanto tempo o pesar geral se irá sobrepor à profunda divisão de Israel acerca do conceito de entregar terras em troca da promessa de paz.
REACÇÕES ARABES
A reacção ao assassínio de Rabin em certos sectores do mundo árabe não foi prometedora. Mohammed Zahhar, um dirigente da organização terrorista Hamas, disse à Associated Press: «Praticou todas as formas de violência contra nós. Estou contente por ter sido punido.» E em Beirute, a estação de televisão da Hezbollah mostrou festejos pela «morte do criminoso sionista Rabin», como afirmou o locutor. «Os tiros que se ouvem são comemorativos, mas será preferível guardar as balas para os opressores israelitas no Sul do Líbano.»
Quando a reportagem mostrou um jornalista israelita a chorar, o locutor desatou a rir. Em Israel, a notícia do assassínio fez convergir milhares de pessoas para junto da Muralha Ocidental de Jerusalém, que Rabin ajudou a conquistar enquanto chefe do Estado-Maior do Exército, durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Muita gente levou vel aspara ficar de sentinela quer à residência privada de Rabin, na rua Rabbi Ashi de Telavive, quer à residência oficial em Jerusalém. «É o fim que podemos esperar para quem faz a paz: Ele
era forte, parecia que nada lhe podia acontecer», disse um dos particip antes no velório, o estudante de farmácia, Dganit Safrai. Se Rabin tivesse caído às mãos de um terrorista árabe, os israelitas teriam ficado furiosos, mas teriam compreendido. Porém, o facto de ter sido derramado sangue judeu por outro judeu mostrou ao país os perigos de tão profundas divergências políticas. O que se passou parece ter grandes afinidades com as ruidosas rigidas pelos principais partidos de criticas direita ao fanatismo de Amir. Durante meses, o Partido Trabalhista de Rabin advertira que a oposição do Likud, aliado psicológico dos extremistas narejeição do plano de paz, estava a fomentar um ambiente de violência. O dirigente do Likud, Benjamin Netanyahu, condenou o atentado, anunciando: «Vamos excluir do nosso seio aqueles que não respeitam uma das mais básicas regras da sociedade: não matarás.» Mas reafirmou a sua oposicão ao processo de paz, não mostrando sinais de conciliação.
AVANÇOS EXTREMISTAS
SS imultaneamente, os extremist asde direita estão a tornar-se cada vez mais impudentes: nos comícios de protesto contra o alargamento da autonomia palestiniana na Margem Ocidental, previsto nos acordos de Oslo, começaram a aparecer cartazes de Rabin com caflié, em uniforme nazi, ou com sangue nas mãos. Ehud Sprinzak, o principal especialista israelita na violência extremista judaica, disse que «uma sensação de
enorme desespero teológico e pessoal entre os colonos, fortemente intensificado pelo terrorismo árabe, acabou por conferir a Rabin a imagem de um monstro». O próprio Netanyahu não ajudou muito, ao comparar a táctica do Partido Trabalhista à do antigo ditador romeno, Nicolae Ceaucescu. Segundo Gadi Wolfsfeld, professor de Ciências Políticas na Universidade Hebraica, toda esta retórica viciosa pode ter inspirado o assassínio de Rabin. «A linguagem histérica segundo a qual o que Rabin estava a fazer era um acto de traição levou alguém a pensar que seria um herói se conseguisse pôr termo ao processo de paz matando Rabin.»
Esse alguém acabou por ser Amir, um estudante do 3.° ano de Direito da universidade religiosa de BarIlan. Um de oito filhos criados numa família ortodoxa de Herzliya, uma cidade a norte de Telavive, Amir era calmo e comedido, .excepto quanto à questão da paz com os árabes. Confraternizava com elementos de um grupo extremista denominado Eyal, também conhecido por Judeus Combatentes. Segundo um amigo, Amir teria dito que tinha de fazer alguma coisa para deter o processo de paz, mas o amigo considerou as palavras de
Amir como uma ameaça vã. Amir teria declarado à policia que andava a planear a morte de Rabin pelo menos desde Janeiro. O primeiro-ministro tinha prevista nesse mês uma deslocação a Yad Vashem, para visitar o memorial do Holocausto, mas quando a Jihad islâmica fez explodir uma bomba suicida na estação de autocarros de Beit Lid, no centro de Israel, c ancelou a visita. Vários meses mais tarde, Amir te ria planeado assassinar Rabin em Kfar Shmaryahu, masna altura não conseguiu furar a segurança do primeiro-ministro.
Dada a natureza do ódio extremista, e na vaga do assassínio de um dirigente terrorista em Malta, há duas semanas, atribuído à Mossad, a segurança de Rabin pareceu excessivamente frouxa durante o comício de
sábado passado, destinado especificamente a combater as manifestações extremistas. Mas era essa a opção de Rabin. Numa entrevista à televisão, dois dias antes do atentado o primeiro-ministro admitiu que «há por aí incitadores», mas nunca acreditou que judeus acabassem a matar judeus. Os serviços de segurança israelitas imploraram a Rabin que usasse colete à prova de bala e que se deslocasse no interior de um cordão de agentes de segurança, como os presidentes americanos, mas ele recusou-se a ceder ao medo.
E, então, o impossível aconteceu. Logo que os tiros foram disparados, os jornalistas políticos israelitas receberam telefonemas de uma organização que se identificava como AYIN, as iniciais em hebreu de Organização Judaica de Vingança. Aparentemente sem saberem que Rabin já morrera, os extremistas diziam: «Desta vez falhámos. Da próxima não falharemos.» Mas Amir disse aos investigadores ter actuado sozinho Segundo a polícia, Amir disse ter recebido «instruções de Deus para matar o primeiro-
-ministro Rabin». Mesmo depois de Rabin ter sido dado como morto, o ódio dos extremistas judeus não se dissipou. Um pequeno grupo de seguidores do falecido Meir Kahane reuniu-se em frente do hospital gritando «Rabin morreu», enquanto apedrejava os automóveis dos deputados que iam chegando. A multidão respondia: «Bibi (Netanyahu) é um assassino». Shimon Peres deu a nota certa numa declaração televisiva feita no sábado à noite. Referindo-se ao Cântico da Paz, disse: «Ele pôs este cântico no bolso, e a bala atravessou-o. Mas o cântico da paz que soa nos nossos ouvidos não acabará.» Pouco depois da meia-noite, o governo reuniu de emergência com uma cadeira vazia. O conselho de ministros destinou-se a preparar os funerais e a estabelecer um governo de transição; segundo a lei israelita, o governo torna-se automaticamente de gestão. Após dois dias de luto nacional, o presidente Ezer Weizman convocará todos os líderes partidários e solicitará a formação de um novo governo por Peres, o homem que ajudou Rabin a executar o plano de paz. E quase ce rto que o sucessor será Peres, apesar de a maioria parlamentar ser tão ténue, que o Partido Trabalhista depende dos cinco votos árabes para se manter no poder. No domingo, Netanyahu anunciou que o Likud não iria contestar um novo executivo trabalhista. «Numa democracia, disse, o governo muda através de eleições,
não por assassínio.»
ESPERANÇAS EM PERES
A esperança de que as perspectivas de paz possam melhorar em virtude do assassínio de Rabin pode vir a tornar-se mais do que um simples desejo. Amos Oz, o romancista e principal porta-voz da esquerda, referiu que «isto não vai liquidar o processo de paz, pois o novo governo de Peres vai prosseguir a mesma política e talvez actuar ainda com maior determinação e raiva. Creio que a oposição de direita em Israel se vai tornar retoricamente mais responsável. A curto prazo, haverá uma espécie de contenção e talvez uma relativa unidade, que há muito não temos»
Mas, para os palestinianos empenhados no processo de paz, a morte de Rabin significa problemas. As forças de segurança palestinianas estão em estado de alerta por recearem que o assassínio inspire os palestinianos inimigos da paz a tentarem matar Arafat, que declinou estar presente no funeral de Rabin exactamente por essa razão. Politicamente, Arafat acabara por confiar em Rabin, e embora Peres seja visto como um adversário mais brando, os palestinianos receiam que não consiga congregar o apoio de Israel. «Os políticos israelitas estão agora tristes», disse um funcionário superior da autoridade palestiniana, «mas daqui a três dias vamos vê–los novamente aos gritos no Knesset (parlamento). Vamos voltar à estaca zero, e a vítima vai ser o nosso acordo de paz com os israelitas».
Perante as dificuldades logísticas de fazer convergir os dirigentes mundiais para Israel dentro do tradicional prazo de 24 hor asentre a morte e o funeral, asexéquias de Rabin foram adiadas por um dia – até segunda–feira à tarde. Mas, no domingo, os israelitas deram largas às suas emoções confusas num notável rito de homenagem. Quando o cortejo motorizado conduziu o corpo do estadista de Telavive para a Cidade Santa, a auto–estrada encontrava–se ladeada de gente com lágrimas nos olhos. E quando os restos mortais foram
depositados em frente do Knesset, centenas de milhares de israelitas fizeram uma bicha de dois quilómetros para prestarem a sua última homenagem ao estadista.
Talvez se mais gente tivesse apoiado o seu lider nos últimos e duros anos da sua vida, este momento nunca tivesse chegado. Como referiu na semana passada o antigo secretário de Estado americano, Lawrence Eagleburger Rabin era um dirigente «que não estava apenas a tentar preservar, m as a construir». Agora, compete aos que lhe sobreviveram construir esse legado. «O processo de paz», diz o antigo embaixador americano em Israel, Edward Djerejian, «foi sempre uma corrida contra a violência no terreno e contra os extremistas». A morte de Rabin não terá sido em vão se contribuir para que o Médio Oriente vença essa corrida.