Quando, quatro horas e cinco comboios depois de sair de Quioto, fui largado na estação de Uno, amaldiçoei o Ricardo. Tinha arrastado cinco pessoas para um lugarejo industrializado e cinzento na costa do mar interior de Seto. Pela frente, até ao nosso destino final em Naoshima, esperava-nos ainda um ferry com uma decoração deprimente. “Anita vai ao barco”, disse alguém.
Tadao Ando, nome maior da arquitetura japonesa, autodidata vencedor de um Pritzker, confessou ter tido o mesmo tipo de deceção angustiada com o lugar. “Fiquei desapontado pela dificuldade de acesso a esta ilha isolada e pela Natureza devastada pelas atividades industriais metalúrgicas que constituíam o ganha-pão dos habitantes do lugar.” A deceção não durou muito tempo. Estávamos em 1987, e Ando tinha sido desafiado pelo bilionário Soichiro Fukutake a embarcar no seu sonho. “Queria fazer de Naoshima, no mar interior de Seto, um polo cultural que valorizasse a Natureza e de que pudéssemos orgulhar-nos de mostrar ao mundo.” Os olhos brilhavam-lhe, e Ando deixou-se comover. Juntos haveriam de embarcar numa aventura extraordinária que dura há mais de 25 anos. Muito mais do que arquitetura, trata-se de “fazer um lugar”. Aberto a todas as possibilidades da Arte, da Natureza e do ser humano.
Museu só para nós
Também a nossa deceção foi coisa fugidia. Não há estados de alma que resistam ao Benesse House Museum. Museu, hotel de dez quartos, edifício minimal onde se cruzam espaços interiores e exteriores com a elegância única dos projetos de Ando. Princípio
e fim de todos os caminhos em Naoshima. Logo a seguir à receção, em direção ao quarto, na escuridão silenciosa de um vão gigantesco de cimento polido, um murro intermitente em forma de néon de Bruce Nauman. Kill and die. Suck and Live. Ora azul ora verde ora um negro absoluto para se voltar a fazer amarelo e depois roxo.
E a coisa era só o princípio. A partir das seis, o museu era só nosso. Noite dentro, noite espantosa. Christo, Giacometti, César, Basquiat, Klein, Wesselmann, e o diabo a quatro. Só para nós, cruzando em total liberdade os espaços austeros de Ando. Todo o tempo do mundo. E nós, subitamente miúdos de tanta liberdade, por pouco não fizemos derrapagens pelos corredores desertos.
Mas foi preciso esperar pelo dia seguinte para perceber todo o alcance do conceito de “fazer um lugar”. Em Honmura, lugarejo minúsculo a poucos quilómetros da Benesse House, o quotidiano continua a fazer-se intocado – ou quase. No contexto do Art House Project ali lançado, sete artistas contemporâneos (Miyajima, Ando/Turrell, Rei Naito, Sugimoto, Senjyu, Suda e Otake) foram desafiados a intervencionar outros tantos edifícios abandonados e espalhados pelo acaso da história na aldeia.
O projeto haveria de ser um marco fundamental na transformação de Naoshima. Mais do que preservar casas centenárias, mais do que expor a criação artística, o projeto haveria de conduzir ao crescimento orgânico de um novo modelo de comunidade marcada pelo cruzamento harmonioso entre “o novo e o velho, o rural e o cosmopolita, o residente e o visitante”. A ideia, generosa utopia de Fukutake e Ando, era, aliás, precisamente essa: “Devolver vida e esperança aos habitantes de uma aldeia ameaçada pelo despovoamento e pelo envelhecimento da sua população.”
O lado negro da lua?
O lugar fazia-se, de facto. E nós fazíamos parte dele. Mergulhámos – mergulhar é a expressão exata – na escuridão profundíssima da casa Minamidera concebida por Ando para albergar as indizíveis ilusões luminosas do norte-americano James Turrell e do seu projeto Backside of the Moon. Nunca antes experimentáramos o negro absoluto, nunca antes tínhamos visto a luz fazer-se matéria. Será assim o lado negro da Lua? Vamos. Temos de ir andando. E lá fomos. Em pasmoso silêncio. Subimos a colina fronteira à aldeia para nos determos na contemporânea recriação do santuário Go’o, onde Hiroshi Sugimoto (esse mesmo, o fotógrafo do tempo exposto que já encontrara na noite fria de um dos pátios exteriores da Benesse House) nos conduziu, amparados na segurança dos seus espantosos degraus de vidro bruto, até ao que eu ia jurar ser o centro da Terra. “Esta viagem está a ficar cada vez mais barata.” Ou nós mais ricos, não sei dizer. Sei que voltámos às trevas quase absolutas na casa Kadoya, reconstruída no mais tradicional dos estilos japoneses e em que Tatsuo Miyajima substituiu o soalho por um negro lago interior onde uma galáxia invertida de LED vermelhos e verdes contava, incessante e circularmente, de um até nove. E já a manhã se fazia tarde quando nos deitámos (terei sido só eu?) no silêncio horizontal da casa Ishibashi, mesmo à beira da cascata de papel desenhada por Hiroshi Senju. Por mim, teria adormecido.
Triângulos e cubos
Mas o melhor estava para vir. E o melhor foi de novo projetado por Tadao Ando em 2004. O Chichu Art Museum é um edifício sem um exterior. O que é outra forma de dizer que é um edifício totalmente enterrado numa das colinas de Naoshima, preservando integralmente o espaço natural circundante. Só do céu se observam as largas aberturas geométricas que rasgam o edifício em triângulos e cubos de nada que ora são pátios espaçosos ora permitem a projeção de luz natural nalgumas das suas salas. O museu é dedicado à exposição permanente de três artistas: o impressionista Claude Monet e os contemporâneos Walter De Maria e James Turrell (que já víramos na casa Minamidera) que trabalharam com Ando na conceção do museu. A escolha destes últimos não é obviamente obra de um acaso. A escala, claro. E a Natureza como inspiração.
Monet está representado por cinco óleos da sua série Nenúfares (o maior dos quais com dois por três metros), e o espaço que os alberga é pensado de acordo com o plano arquitetónico que o próprio pintor, já semicego, concebera para as suas grandes décorations: paredes sem ângulos, luz natural e indireta, uma brancura intensa feita de estuque e mármore de Carrara (curiosamente, da mesma pedreira que servira Michelangelo). Se aqui estivesse, Monet estaria descalço, tal como nós. E haveria de reconhecer o espaço infinito, a ondulação incessante da água e o lento crescer das plantas do seu jardim em Giverny.
James Turrell está representado com três obras. Mas é Open Field, mais do que qualquer outra, que nos marca de fora, indelével. Estamos frente a uma escadaria que nos conduz a uma imensa tela azul. Subimos os degraus a medo e somos convidados a penetrar a tela. O espaço que projeta é de dimensão inescrutável e nós flutuamos no azul que de novo se faz matéria. Mais do que espreitar o lado escondido da tela, mais do que olhar a arte a partir do seu reverso, penetramos a luz que é objeto. Passa um minuto, passam dois, talvez dez. Somos miúdos outra vez.
Mas o dia caminha rapidamente para o fim e é preciso visitar ainda De Maria. Apressados, cruzamos o pátio triangular em que Ando rasga as paredes de 12 metros de altura com uma fenda que nenhuma estrutura suporta. Estamos nas profundezas da colina e a porta parece minúscula. Mas eis que – espanto e surpresa inomináveis – esta se abre para um vão colossal e para uma escadaria sumptuosa. No fim do primeiro lanço de escadas, antes ainda de estas continuarem a sua caminhada até à parede de betão que marca o fim do espaço, uma gigantesca esfera negra de granito, impecavelmente polida, reflete a luz indireta que nos chega através de uma abertura escondida nas extremidades do teto abobadado. À nossa volta, pousado nas paredes maciças, um sem-número de paralelepípedos de madeira dourada parecem fazer as vezes de santos estilizados nesta enorme catedral afundada. Tudo é peso, tudo é leveza, e só a marcha implacável do tempo nos tirou dali para fora.
Ia jurar que foi ainda ali, sentado à saída do indescritível Chichu Art Museum, que me cruzei, num qualquer livrinho, com as palavras com que Tadao Ando celebra o sonho do sr. Fukutake. “A vontade do homem é por vezes, literalmente, capaz de furar a rocha e de mover a montanha.”