Passavam 25 minutos das 4 da manhã, quando o despertador tocou. Continuamos em Mandalay, segunda maior cidade de Myanmar, situada na região centro do país. Esfregámos os olhos, vestimo-nos com o que estava mais à mão e arrancámos de moto em direção a Amarapura para visitar a ponte de U-Bein, a maior travessia em madeira de teca do mundo.
O título impõe respeito e não é de agora. A passagem foi mandada construir no século XIX e une as duas margens do Lago Taung Tha Man, a pouco mais de 10 quilómetros de Mandalay. Demorámos cerca de 20 minutos a chegar ao local e no percurso ladeado de árvores cruzámo-nos com camiões, autocarros e fomos surpreendidos com os sucessivos pagodes, os seus pórticos iluminados com néones intermitentes de mil cores, e tabernas de beira de estrada em estágio para a alvorada. Atravessámos muitas nuvens de mosquitos e aproveitámos o vento refrescante da velocidade sobre rodas, até ao destino final. Quando parámos as motos, já o céu se tingira de rosa e laranja, prenúncio do nascer do sol. Caminhámos até ao centro da ponte para ter a melhor perspetiva dos primeiros raios solares. Os nossos passos apressados ecoavam lago fora, à medida que pisávamos as velhas tábuas da travessia de cerca de 1,2 quilómetros. A ponte é usada apenas por peões e mesmo quem utiliza bicicleta tem de a levar caminhando. A passagem é indispensável para as populações circundantes que cruzam o lago de uma ponta à outra para ir e vir de Mandalay. Ao redor, jovens pescadores amanham redes de pesca e nas margens lodosas observam-se várias embarcações, pequenas e de muitas cores, famílias de camponeses que cuidam dos cultivos nos aluviões e troncos despidos, majestosos, que transformam o sítio num autêntico postal. Também muitos monges atravessam U-bein entre partidas e chegadas dos templos de Mahar Gandar Yone, Kyauktawgyi e a Universidade de Yadanardon. O céu cada vez mais iluminado e ardente e o perfil das montanhas em contraluz alertavam-nos para o nascer do sol iminente. Bastaram apenas alguns segundos para que ele surgisse e o dia se afirmasse em toda a sua plenitude. “Mingalabar!” dizia quem passava por nós. Ouvimos o cumprimento do primeiro ao último dia no país. A expressão birmanesa é equivalente ao “bom dia” português e pode ser usada de manhã até ao final da tarde. O foco de luz intensa e a neblina de evaporação que pairava sobre o espelho de água do Taung Tha Man descontrolaram a minha vontande de fotografar, como se as imagens pudessem congelar no tempo, tudo aquilo que vi e senti naquele preciso instante. Miguel Sousa Tavares escreve no livro “Sul”: “Declaro que vi coisas extraordinárias, de que nenhuma fotografia poderia dar testemunho real”. Como o Miguel, espero um dia largar a máquina e olhar, tendo apenas a memória como último garante desses instantes que não perdi. Percorrida a ponte em toda a sua extensão, era tempo de sentar e tomar o pequeno-almoço no meio do casario de colmo e palha do lado de lá de Amarapura. As estradas esburacadas e de terra batida tinham acabado de ser regadas pelos moradores e donos dos restaurantes para evitar que a poeira se levantasse à passagem de motas, carros e camionetas apinhadas de gente. Sentámo-nos numa das esplanadas cobertas de madeira e abertas para a rua principal. Todas têm os seus fogões a carvão ao ar livre onde são fritas as chamuças doces, o queijo, as farturas e fervida a água para o chá. Tivemos um pequeno-almoço de reis, o primeiro tipicamente birmanês, regado a chá verde com leite condensado. Estávamos satisfeitos por ter cumprido o primeiro sol nascente. Não sabíamos que o dia, ainda no início, nos havia de reservar um pequeno dissabor. O imprevisto aconteceu ainda ao pequeno-almoço. Um safanão na mesa bamba fez entornar o chá quente sobre a máquina fotográfica. Ficámos sem reação mas o aparelho aparentava estar a 100%. Os problemas começaram a surgir passados alguns minutos, já na travessia de regresso às motos, para Mandalay. A objetiva não recolhia, a lente não fechava e o ecrã tinha morrido. Estávamos no início da viagem a Myanmar, na segunda paragem no país e com metade da rota por percorrer. Ficámos mudos, constrangidos, sem saber bem o que fazer perante a hipótese de ficar sem fotografias. A prioridade seria encontrar rapidamente uma loja para resolver o problema mas o Bernardo insistiu em visitar o pagode de Mahamuni, um dos mais imponentes do território. O templo guarda no interior um Buda datado de 554 a.C. Inicialmente feito em bronze, foi sendo coberto de folhas de ouro pelos crentes mais dedicados. Apenas os homens podem fazê-lo. As mulheres observam à distância, normalmente em oração e ajoelhadas diante da estátua. O dourado está presente um pouco por todo o templo, principalmente nas fachadas, nas arcadas e nas coberturas piramidais trabalhadas ao pormenor. Vagueámos descalços pelo recinto sagrado e misturámo-nos nos ritos religiosos. Um deles consiste em banhar pequenas imagens do buda: primeiro o ombro esquerdo, depois o direito e finalmente as costas. Existe uma figura para cada dia da semana (na verdade, existem dois para quarta-feira e que representam a manhã e a noite). Cumprimos o dever pedindo entre dentes que a avaria da máquina se dissipasse. Há também quem deposite flores de lótus, símbolo de pureza e fertilidade ou acenda paus de incenso. De Mahamuni seguimos para Mandalay, onde acompanhámos o processo de fabrico de folhas de ouro, as mesmas que os birmaneses depositam nos pagodes em honra de Buda. O Francisco e o Bernardo entraram e viram como os jovens artesãos martelam as pepitas, envolvidas em papel de bambu, até que elas se tornem mais finas do que uma folha de papel. Estão sentados horas e horas e fazem sempre o mesmo movimento, carregando a marreta para cima e para baixo. Uma metade de casca de coco com um pequeno furo para a água entrar vai emergindo e dando conta do tempo que passa.
Não me entusiasmei com o ânimo deles, não me fascinavam as folhas de ouro. Preferi ficar cá fora, sentado numa cadeira de lona, debaixo do alpendre, refugiado do calor húmido e sufocante daquele dia que parecia não ter fim. Eram 10 e tal da manhã. Nesse preciso momento desvio o olhar das paragonas do jornal que estava a folhear e vejo uma jovem rapariga e um bebé que presumi ser o seu filho. Ambos sem cabelo, com olhos rasgados, morenos, esguios e exaustos. Ouvi-a tossir, vi-o chorar. No meio daquela atmosfera confusa, quente e poluída, ali estavam, desesperados, sem voz, apenas protegidos pela sombra de uma acácia verde e florida. Abstraí-me dos problemas do mundo, esqueci-me do resto e fui dar-lhes a garrafa de água fresca que acabara de comprar minutos antes. Sentei-me. Voltei a levantar-me. Abri a mão da mulher e fechei-a novamente, com todas as notas soltas que tinha no bolso. Não trocámos uma única palavra. Sou incapaz de esquecer o olhar vazio daquela jovem e a rapidez e satisfação com que o bebé bebia a água que a mãe ia doseando na pequena tampa verde da garrafa de plástico que lhes tinha dado. Depois de muitas voltas, contratempos, sempre sob sol escaldante, encontrámos enfim a loja de uma conhecida marca de máquinas fotográficas. Quando quis explicar aos técnicos o que se tinha passado a aparente avaria tinha deixado de existir. Rimo-nos, transpirámos de alívio e tivemos a certeza de que o feito tinha tido a mão de Buda.