A Índia não é feita para passear. Chegamos com expectativas de essencialidade e pureza, de ascetismo e abnegação, e colidimos numa muralha de merda e miséria. O cheiro a lixo está em todo o lado, as moscas saltam da bosta de vaca para o prato de lentilhas, as crianças olham-nos com um ar esgazeado de fome, os cães são esqueléticos e têm as feridas em carne viva. A poeira é infernal, o calor também. Os pedintes seguem-nos em silêncio, sem pressa, sem mais nada que lhes ocupe o dia, têm todo o tempo para esperar a nossa esmola.
Gostaria de passear, mas não existe um passeio. Há buracos, bueiros abertos, saneamento por completar. Os parques e jardins estão degradados, os carros não respeitam os peões, os riquexós ainda menos, as ilhas pedonais não fazem parte do planeamento urbano. O espaço falta.
O conceito é absurdo – passear, como quem areja, como quem faz exercício físico, como quem namora. Na Índia, ninguém passeia. Caminha-se com um objetivo: fechar um negócio, encontrar um trabalho, arranjar um matrimónio, visitar um templo. Caminhar não é passear.
A vida é precária, a existência compartimentada em castas, subcastas, preconceitos e deveres familiares.
A condição humana é regularmente atroz, a morte uma aspiração. Aspira-se a uma melhor reencarnação ou, talvez um dia, ao desaparecimento total, ao fim do ciclo das transmigrações da alma, ao Nirvana. Há um atalho para se chegar mais rapidamente ao Nirvana: morrer em Varanasi.
Passeio em Varanasi, no único pedaço da cidade e talvez de toda a Índia onde passear parece fazer sentido. Passear como quem medita, ao longo da margem do Ganges, o mais sagrado e um dos mais poluídos rios do mundo. Passear como quem pensa na vida e na morte, entre pedaços de corpos ainda por arder nas fogueiras da cremação, bosta a secar, lixo por todo o lado, moscas também, os edifícios a desagregarem-se com os séculos, um ou outro cadáver a boiar, um calor infernal, um cheiro revoltante. E, no entanto, é verdade que a Índia é metafísica e espiritual.
Mas, para um olhar europeu, sob a forma de antítese e paradoxo. Afinal, onde é mais aguda a noção do efémero da existência, a noção da inevitabilidade da morte? Num sorriso injetado de botox ou num nariz carcomido pela lepra? Num centro histórico recuperado e protegido da especulação imobiliária ou num centro histórico arrasado e substituído por qualquer outra coisa que seja mais barata e mais prática? Numa igreja intacta, parada no tempo e no estilo em que foi construída, ou num templo milenário que perdeu toda a importância arquitetural com as sucessivas modificações, acrescentos, arranjos, incluindo o pvc, o alumínio, o betão e o aço? Varanasi, uma das cidades mais antigas do mundo, mais antiga que a própria civilização europeia, é precisamente o lugar onde as diferenças da civilização indiana melhor se expõem ao olhar europeu.
“Alguém me está sugerindo que tudo isto em que habito, carne e ar e hotel, não passa de um projeto de sarcófago?”, pergunta o escritor Giorgio Manganelli, no seu livro Esperimento con l’India. Tudo é transitório – a vida é, certamente; e quem sabe se a morte também não o é? Erguendo as suas estátuas, preservando as suas cidades, protegendo os seus museus, dogmatizando os seus cânones culturais, consolidando as suas certezas religiosas, acreditando na salvação eterna, a Europa tenta contrariar a passagem do tempo a Índia entrega-lhe tudo.