Não me recordo como é que percebi que aquele senhor já de idade avançada e aspeto discreto na multidão era português. Talvez ele tenha respondido ao telemóvel, e eu estivesse a passar ao lado. Ou talvez a filha ainda estivesse com ele e a conversa entre ambos tenha sido o descodificador da sua origem. Esta segunda hipótese é menos provável, porque não recordo jamais ter visto a filha; apenas sei que ele a tinha acompanhado a Istambul para um congresso. Eram ambos médicos, isso recordo, mas ele já aposentado. A filha tinha vindo por motivos profissionais; ele por puro deleite pessoal.
Há duas razões para que este episódio tenha ficado bem registado na minha memória. Uma é imediata: aquele senhor era o meu primeiro português depois do Equador, teriam passado uns dez meses, uns 17 fusos horários, desde que eu tinha encontrado esse capitão de traineira do Algarve em Guayaquil, vivia lá. Mas isso é outra história. A explicação da distância é que efetivamente entre o Equador e a Turquia, se formos em direção oeste, sucedem-se 17 fusos horários; e a explicação do tempo é que eu não estava a viajar de avião e, entre a travessia de dois oceanos, o Pacifico e o Índico, e dois continentes, a Oceânia e a Ásia, mais as cidades, os desvios e os encontros, realmente quando vamos a dar por ela demoramos num instante dez meses.
Há outra razão mais subtil mas mais indelével que mantém o senhor português em Istambul na minha memória: ele representava uma forma que desaparece de viajar e ver o mundo. Com cerca de 80 anos na altura, imagino que teria efetuado as suas grandes viagens entre os vinte e tal e os 60 anos, portanto foi durante as décadas de 40 a 70 que ele esteve mais ativo a percorrer o mundo.
Corrijo: ele não percorreu o mundo, isso não o interessava particularmente. Ele percorreu o mundo antigo, o berço da nossa civilização, a nossa origem comum.
Visitou com carinho e cuidado tudo o que resta desses lugares definidores da História do Ocidente, quase sempre vendo coisas que não estão ao alcance da vista, mas da imaginação. Viu Persépolis vestida outra vez de gente, sorriu no entulho de Troia com a porta aberta na muralha impenetrável, navegou o Eufrates cintilante pintalgado de velas assírias, trocou sestércios nos mercados esplendorosos de Cartagena, acariciou as paredes ausentes nas basílicas de Éfeso e nos templos de Palmira, pasmou pelos deuses novamente vivos nos altares vazios de Agrigento. Que outra cidade mais adequada para o encontrar do que Istambul, a antiga Constantinopla, a ainda mais antiga Bizâncio?
Evelyn Waugh não tinha o dom da diplomacia. Ou talvez cultivasse a falta dela. As suas posições conservadoras e intransigentes, no entanto, eram defendidas através de uma eloquência e linha lógica que demonstravam bem o calibre de escritor em que se tornara. Entre outras opiniões acutilantes e indefensáveis do autor, que era um católico intolerante, está a de que o Concílio Vaticano II nunca devia ter “facilitado” a missa, alterando-a do latim para a língua corrente de cada comunidade onde é celebrada. Ou a de que a invasão da Abissínia pelas tropas fascistas de Mussolini iria por fim trazer um pouco de ordem a uma terra de bárbaros. Ainda hoje, o autor de Reviver o Passado em Brideshead continua a ser considerado um dos melhores escritores ingleses do século XX.
Waugh viajou bastante durante as décadas de 30 e 40, quase sempre on assignment, ou seja, com o encargo de escrever sobre essas viagens, coisa que fez de um modo sarcástico e impiedoso, não poupando nem a mentalidade dos indígenas, muito menos a dos seus compatriotas que viajavam com e como ele. Waugh visitou vários países do Mediterrâneo, da África Oriental inglesa, da costa leste da América do Sul e naturalmente da Europa. No final dos anos 50 saiu uma recolha do material que tinha publicado nessas viagens, When the Going Was Good, livro que possuo na edição italiana, cujo título é ainda mais elucidativo: Quando Viaggiare era un Piacere.
O tema mais obsessivo ao longo dos 40 anos de carreira de Waugh é o imparável crescimento económico e capacidade decisória da classe média Ocidental. Waugh via o futuro a nossa época, portanto como uma nova Idade das Trevas ditada pela mediocridade e pela ignorância das massas, pela futilidade das causas e sobretudo por uma “falsa” democracia baseada no voto dos commoners, da plebe iletrada. Neste contexto, é fácil entender o tom sarcástico do título Quando Viajar era um Prazer. Era um prazer nos anos 30, antes do turismo de massa colorido e anafado, antes da banalização das viagens e da banalidade dos destinos, antes da homologação dos gostos, antes de encontrarmos os mesmos hambúrgueres e molhos e bebidas à venda nas rouloutes à saída de todos os monumentos, antes dos souvenirs baratos feitos na China, antes dos guias de bolso que direcionam toda a gente para o mesmo lado. No tempo de Waugh o mundo não era tão fácil, mas era mais interessante. E quem viajava era, por sua vez, mais interessado na viagem.
Ficámos a conversar à sombra nos jardins que rodeiam a Mesquita Azul. Porquê tanta viagem, perguntei-lhe. Sempre tinha lido e amado os clássicos, estudara profundamente a Antiguidade, percecionava o mundo como um fluir contínuo de diferentes épocas históricas interligadas de tal maneira que não fazia sentido olhar para a nossa sem ter em conta as que lhe antecederam.
O pai insistira para que fosse médico, uma tradição de família que a filha tinha mantido. Mas ele, se tivesse podido escolher, teria sido arqueólogo. Claro que nem sequer existia a profissão, em Portugal, na altura. Eis a razão de tanto viajar: reportar à luz o passado. Não como arqueólogo mas como reconstrutor.
Colecionava a vida tal como ela acontecera há milénios. E eu fiquei a pensar como era diferente viajar na altura em que ele viajou, e da forma como viajou. Mas que difícil, mas que prazer. Difícil: os anos e anos de estudo e reflexão sobre os lugares e os povos que os ergueram; os meses e meses de preparação com os itinerários, os tempos de percurso, os intérpretes, as divisas, os vistos; uma incerteza sobre o destino e sobre cada dia que passava entre a partida e o regresso. Prazer: chegar a qualquer um desses lugares fundamentais da Humanidade e visitá-lo em silêncio e em paz, respirar tranquilamente a poeira dos séculos, recriar tanta História com a segurança e a precisão de um virtuoso da eternidade.
O telemóvel tocou, a filha esperava-o no hotel. Despediu-se de mim com uma cumplicidade reservada, de um jeito antiquado, como se também eu tivesse 80 anos e percebesse por onde ele tinha andado e nada mais nos unisse senão a nostalgia de um mundo que desaparece.
Fiquei a vê-lo afastar-se entre as tendas de souvenirs, as roullotes de hambúrgueres, a massa disforme de excursões sinuosas e coloridas que seguiam um altifalante.