“Pó pô pó”, diz um.
O outro responde: “pó pô”.
Noite cerrada na fazenda Santa Marina, bem no interior de Minas Gerais, perto de uma terrinha bucólica, cheia de mudez e tranquilidade, chamada Santana dos Montes. Silêncio absoluto, escuro absoluto. A única luzinha que se avista é esta mesmo, de uma fazenda dos recuados tempos coloniais, que servia de abastecimento ao tráfego da Estrada Real, e que agora se abre ao turismo não massificado.
“Lá faz frio à bessa”, tinham-nos avisado com antecedência. “Tragam agasalhos.” Mas o que é “o frio à bessa” brasileiro, comparado com as nossas gélidas referências meteorológicas do hemisfério norte? Pois… bem lamentámos o cliché interiorizado de quem acha que Brasil é só sol, calor, praia e trópicos.
Esta é uma viagem ao outro Brasil, àquele que não costuma aparecer nos solares cartazes das agências de viagens. Esta é uma viagem de quebrar preconceitos e estereótipos. Estrada Real abaixo. A que foi trilhada pelos pés dos índios Guianás e pelos facões incansáveis dos bandeirantes, há mais de 300 anos. Através da temida Serra da Mantiqueira, transpondo rios e a montanha do Espinhaço, por esta estrada, hoje parcialmente coberta de mato, passaram bandeirantes, imigrantes, boiadeiros, escravos, tropeiros, contrabandistas, garimpeiros, piratas, ladrões, e os representantes da Coroa Portuguesa, encarregues de trazer ouro de Ouro Preto e diamantes, de Diamantina (a 300 quilómetros de Belo Horizonte, a capital de Minas), até bom porto, no litoral, onde embarcavam os navios para a metrópole primeiro em Paraty, e, mais tarde, no Rio de Janeiro.
E faz “frio à bessa, mesmo”, Junho é o pico do Inverno em Minas Gerais, valem-nos muitos édredons em cima e a lareira instalada em cada quarto, nesta fazenda do século XIX, como as que aparecem nas novelas, em que o soalho range à passagem e a suposição de fantasmas atormenta o motorista, que prefere dormir na “van”.
“Pó pô pó?”. À chegada, o caseiro da fazenda dá-nos esta lição de “minarês “, esta maneira de falar à mineiro antigo, humilde, das regiões isoladas, e das montanhas, que engole as últimas sílabas e economiza as frases. Na sua versão longa, este diálogo entre dois mineiros quer dizer: “Posso pôr pó de café na sua chávena?”, pergunta, enquanto segura a colher. “Pode pôr”, responde o convidado. Os mineiros têm este hábito de dizer “Uai!”, quando querem manifestar a estranheza, usam diminutivos para tudo, comem as palavras (“ocê” em vez de “você”, “passarim”, em vez de “passarinho”), chamam “engasga-gato”, “quebra-guela” e “mata-bicho” à cachaça e dizem “trem” a propósito de tudo. Mas mesmo tudo. “Que diabo é esse trem?” “Tem um trem no meu carro”, quer dizer “tem um barulhinho qualquer no meu carro “. “Trem bão”, quer dizer “mulher bonita”. “Tem um trem no meu olho”, quer dizer: “Tenho um cisco no olho.” Por isso, se diz, brincam, que “os mineiros têm os maiores olhos da humanidade”.
“Cariocas nascem bambas/ cariocas nascem craques/ cariocas têm sotaque/ Cariocas são alegres/ cariocas são atentos/cariocas são atentos/cariocas são tão sexys/ cariocas são tão claros/ cariocas não gostam /de sinal fechado.” Nunca a canção de Adriana Calcanhoto, que por acaso é gaúcha, fez tanto sentido, como quando abandonamos o Rio de Janeiro, pela serra de Petrópolis, até nos “interiorizarmos” cada vez mais nos interiores mineiros. Mineiro não é tão dado, não é tão alegre: observa, sem ser arrogante. “Come calado e de pé atrás.” É do género de ficar quieto, não diz que tem dinheiro, como nos tempos em que silenciava a pepita de ouro descoberta. “Mineiro é ‘bicho sabido’, é minerador, é aventureiro, é homem lá da montanha, tem de ver onde pisa para não cair”, explica um autóctone. E sempre “brigou” contra o jugo português.
Aqui é terra dos “inconfidentes”, os revolucionários do século XVIII que se rebelaram contra a metrópole portuguesa. A severa repressão colonial ficou-lhes na memória colectiva. “Mineiro conversa no pé do ouvido, três é conspiração.” Por isso, se diz que estes outros brasileiros, implantados em zona de confluência (os 853 municípios de Minas Gerais têm sete fronteiras com os outros estados) são os mais centralistas, os mais políticos, mais diplomatas, mais conciliadores de todos os outros brasileiros.
“O mineiro sempre vai impondo o que quer dizer, mas não diz.”
A passarada é quem desperta na fazenda Santa Marina. O café da manhã prepara-se num fogão de lenha. Estamos na terra dos famosos pães de queijo. Ali a natureza é para ser levada a sério, há um grande lago que espelha o velho casarão, e toda a imensa fazenda só se conhece a cavalo pelas valadas, como antigamente. Os donos, que têm ligações familiares a políticos de Brasília, também trouxeram o seu toque espiritual e exótico à região, e há uma espécie de local de purificação budista, nos anexos do edifício histórico. Aqui, os hóspedes são convidados a perder tempo na melhor acepção que a expressão pode conter.
Outra vez na estrada, travamos conhecimento com os célebres “quebra-molas” brasileiros (lombas de abrandamento) e com o sentido de humor sinalético dos mineiros. Nas bermas uma placa adverte : “Devagar!”. Mais adiante, lê-se: “Devagar Mesmo!” Quilómetros mais à frente: “Atenção, formigas na pista!” “Tive ouro, tive gado, tive fazendas… hoje sou funcionário público”, é outra das anedotas que os mineiros costumam contar para explicar aos forasteiros a sua história. No século XVI, os bandeirantes mais afoitos embrenharam-se no mato do interior, e fundaram pequenos assentamentos.
Durante os séculos seguintes, a exploração de ouro enriqueceu a região e impulsionou um progresso acelerado. Em finais do século XIX e princípios do século XX assiste-se à decadência da mineração. Foram os tempos das grandes vagas de migração para o litoral, e do “coronelismo ” os grandes fazendeiros que, rodeados pelos seus jagunços, se associavam ao poder local e “cacicavam” os restantes.
Nas imediações da estrada real permanecem muitas das fazendas que serviram de apoio, e de abastecimento agro-pecuário, à intensa circulação de outrora.
Bate-se à porta de outra destas fazendas, O Solar dos Montes, um casarão com 200 anos, situado bem no largo central de Santana dos Montes. A lindíssima casa com janelas de guilhotina (o alumínio ainda não chegou ali), está decorada ao estilo colonial, e respira-se, outra vez, aquela sensação de tempo parado, em que o proprietário parece ter toda a disponibilidade do mundo para “prosear” com os visitantes.
Depois dos dourados séculos de glória, a Estrada Real volta a ver algum do brilho de outrora. Não do ouro nem dos diamantes, mas do turismo.
Hoje já não é pisada por garimpeiros esforçados mas por turistas folgados.
Hoje já não é estrada real, mas pode ser “estrada dos reais”. O maior projecto turístico da História do Brasil, o Instituto Estrada Real, proporciona às comunidades de 177 municípios a auto-sustentação através do turismo, e foi considerada prioridade pelo governador Aécio Neves. Por ano, atrai 9 milhões de turistas estrangeiros, gera 1,2 milhões de postos de trabalho e é responsável por 65 milhões de desembarques internos, e até já foi samba-enredo da Escola de Samba da Mangueira.
Chegamos a Ouro Preto. Dantes (antes da independência) não se chamava assim: era a Vila Rica. “Faça as malas para ir e volte com muita bagagem cultural.” Isto diz o slogan turístico e tem razão. Ouro Preto é uma espécie de relicário patrimonial. Ficou parado no tempo, com o velho (mas impecavelmente remodelado) casario e as 32 igrejas barrocas, com seus anjos e querubins negros esculpidos pelo Aleijadinho e Manuel da Costa Ataíde (os dois grandes mestres da arte sacra). Aqui existe o mais antigo teatro da América do Sul (1707), ainda no activo, com o seu maravilhoso interior em madeira completamente restaurado.
Nos tempos da explosão mineira do século XVIII, durante a corrida ao ouro, esta cidade, de entre os montes, chegou a ser como uma região do faroeste, cheia de rebelião e gatunagem, pejada de 30 mil garimpeiros, sem rei nem ordem. Diz-se que cada habitante em Ouro Preto tem uma mina no quintal. As montanhas são um queijo suíço, perfuradas por todos os lados. “Estes brasileiros daqui”, confidencia um outro mineiro conhecedor da região, “não são que nem caranguejo, que não saem nunca da costa. O espírito deste povo conjuga o intrépido dos bandeirantes que se atreveram a vir a este local e a intensa religiosidade do barroco”. Construía-se igrejas e capelas a cada canto, como que a lavar culpas de tanta riqueza e tanto ouro. Nas cidades históricas, Ouro Preto, Mariana e Congonhas, reúne-se a maior expressão do barroco português além-mar. A preservação do acervo valeu-lhe a nomeação de Património da Unesco, em 1980. As cidades parecem sitiadas pelas montanhas, esconderijo de tesouro guardados por sentinelas de pedra.
Foi o ouro de aluvião que as fez desabrocharem em desfiladeiros. A própria topografia acidentada e confusa de Ouro Preto convida à turbulência e assimetria do barroco.
Na rua, cruzamo-nos com um “empresário” de pedras preciosas. Diz que existem 350 entradas de minas na cidade, fora aquelas que estão ocultas nos tais quintais. Mostra-nos um topázio integral laranja, que só existe em Ouro Preto, de 35 quilates: 27 mil reais.
Horas depois, já nos encontramos 400 metros abaixo do solo, numa daquelas velhas minas há mais de 20 anos abandonada. Por este túnel do garimpo só passam turistas, o ouro em pó ainda lá existe, visível à lupa nas paredes, mas a proporção de quatro gramas por tonelada torna a sua exploração inviável. Não é aconselhável a claustrofóbicos esta descida a pique em direcção ao centro da Terra, a bordo de um elevador que funciona sobre carris, em sistema de contrapeso. Ainda só estamos no primeiro nível, no primeiro meio quilómetro de profundidade, o ar é denso, sufoca-se, e ainda há outros nove por baixo, cinco deles imersos em água.
Come-se bem e muito naquela terra de ouro e igrejas. Costuma dizer–se por ali: “Barriga de padre é cemitério de frango.” À mesa, o dono de um dos mais famosos restaurantes da cidade, Bené da Flauta num belo sobrado com 39 janelas, com vista para a obra-prima do Aleijadinho, a Igreja de São Francisco de Assis , desfia as muitas histórias que rodeiam esta figura popular da cidade. Bené da Flauta era um indigente, alcoólico, vivia aos caídos. Era dono de alguns talentos musicais e de uma lucidez invulgar: “Quem é muito no começo, chora saudades no fim.” Mas nem só de História, e figuras lendárias vive Ouro Preto. À noite a praça principal enche-se: 8 mil pessoas juntam-se a assistir ao concerto da banda Blitz. Afinal, também ela já lendária. Estamos numa cidade universitária, como Coimbra, há muitas repúblicas como na cidade portuguesa e os estudantes garantem a animação nos bares e nos concertos.
É frio, mas animado, o Inverno em Ouro Preto.
“A paisagem tira o fôlego, a hospitalidade devolve-a.” Ainda mais a norte, ainda mais para o interior. O slogan vai penetrando fundo, à medida que nos adensamos na cultura mineira. Estamos a 370 quilómetros de Belo Horizonte, em Araxá, terra de lamas sulfurosas, águas radioactivas e de Dona Beja, a tal que se banhava nua nas lagoas e que Maitê Proença protagonizou numa novela, em 1988. Em pleno Julho, período de férias escolares, o turismo familiar dá um alento demográfico à cidade. Vêm de longe os turistas, até de São Paulo (a 567 quilómetros), mas poucos se lembram de ter visto por ali portugueses. Por isso, a vinda da equipa da VISÃO é notícia de telejornal e de dois jornais diários concorrentes. Neste fim do mundo, entre a mata atlântica, centenas de cachoeiras e chapadões de pedra de mais de mil metros, o insólito de uma estância termal megalómana. Um hotel de um gigantismo esmagador, no meio do nada, com 283 quartos (entre os 369 e os 443 reais), que nesta época se esgotam com 60 dias de antecedência. Com 49 mil metros quadrados só do edifício central (toda a estância engloba um grande lago e floresta, com fontes e ruínas), três restaurantes (40 reais por pessoa no buffet), salões, cinema, teatro, centro de exposições para 2 mil pessoas, o Grande Hotel de Araxá merece, só por si, uma expedição turística. Aliás, há visitas guiadas através dos longos corredores, de salão em salão, daquela mastodôntica estância, que foi inaugurada por Getúlio Vargas. Por estes corredores passaram muitos chefes de Estado da América Latina. Diz-se que durante seis anos, 20% das receitas de Minas reverteram para a sua construção. Em 1993, a sua sobredimensão ditou-lhe o encerramento. Mas, antes disso, foi centro de jogo e de casino, foi local privilegiado para os militares e políticos da ditadura passarem férias com as suas famílias.
“Cada torneira avariada, tinha um monte de papelada e burocracia para resolver.” Há seis anos reabriu, já sob gestão privada.
Estamos numa das zonas mais ricas do Brasil, Araxá vive do minério, as favelas estão controladas, “a prefeitura dá casa popular para os faveleiros “. Outro estereótipo que se quebra. Aqui o Brasil é seguro, “não precisa estar de olho na carteira”. Não tem roubos, “nem flanelinhas” (os meninos de rua que nas grandes cidades perguntam aos condutores se podem limpar o vidro dos seus carros: “Se eles respondem que não, os garotos arranham o carro todo”.) Em Araxá, os prefeitos também constroem muita rotatória (rotundas). E é proibido por lei que os organismos estatais usem papel não reciclado.
Um salão no grande hotel pode ter 443 metros quadrados, há listas de espera para realizar aqui os casamentos da classe alta do país.
O empreendimento dá emprego a quase 500 pessoas. É possível percorrer quilómetros sem sair do Grande Hotel. Os empregados comentam que “andam mais do que político em época de eleição”.
E porque os brasileiros, sempre acrescentam algum esoterismo ao spa, ao banho de lama negras, ao ritual de águas sulfurosas, à piscina de água mineral aquecida a 37º, há um centro magnético onde uma senhora toca cítara, exactamente no centro de uma estrela de oito pontas, no exacto ponto onde um fio de cobre desce até 30 metros de profundidade, e restaura um foco de energia. Pelo menos, aqueles que experimentam garantem sentir esta experiência de equilíbrio e conforto com os elementos.
Nas paredes de Araxá, desenhos algo kitsh retratam em painéis a história de Araxá. Primeiro o sertão virgem da tribo dos Araxás, famosa pela ferocidade como defendia o seu território, lançando flechas com os pés. Depois o início do extermínio, com a chegada dos primeiros colonos. Finalmente o episódio da Dona Beja, a figura mais conhecida da terra, senhora muito influente na manutenção de Araxá no triângulo mineiro no século XIX, adorada pelos homens, invejada pelas mulheres, por ter aquelas insólitas rotinas higiénicas de se banhar nas fontes sem roupa alguma. No centro da cidade há um museu, num encantador sobrado, totalmente dedicado à personagem.
A segunda personalidade mais famosa em Araxá é Joana d´Arc de Almeida, mais conhecida por Joaninha, a doceira, cujas compotas e doces cristalizados são recomendados pelo Guia 4 Rodas. E aqui é altura de introduzir outra das minas deste Brasil, em que os utensílios para a desbravar se resumem ao garfo e faca. Mas para isso nada melhor do que se estar instalado à mesa na capital, Belo Horizonte, também conhecida como a cidade dos botecos. Diz-se que aqui se encontra o maior IBH (índice de boteco por habitante) do Brasil. Mas isso é “conversa para boi dormir”. O certo é que existe um bar para cada 200 pessoas. Fazendo as contas são 12 mil botecos, por 331 quilómetros de área para 2,4 milhões de habitantes. Em Bê-agá (toda a gente fala da capital através deste nickname, citando apenas as iniciais, BH), “não tem mar, mas tem bar, uai!”.