Visão
A história nunca se repete, aprendemos a decorar, mas em França, sinceramente, há sempre coincidências que nos obrigam a repensar alguns conceitos e verdades absolutas. No país das contínuas mudanças de regime (já vai na quinta república em dois séculos), de muitas revoluções e de permanentes estados de revolta, tudo pode parecer imprevisível, mas tem também, tantas vezes, uma relação quase simétrica com o passado.
A derrota da extrema-direita na segunda volta das eleições legislativas francesas pode ter sido a recompensa que Emmanuel Macron esperava, quando decidiu fazer uma das jogadas mais arriscadas de sempre: dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas, após a vitória do partido de Marine Le Pen nas europeias. À partida, perante os primeiros resultados conhecidos, Macron conseguiu afastar o espetro da coabitação com um governo antidemocrático, que poderia ter consequências devastadoras para o equilíbrio da União Europeia e a defesa dos seus valores humanistas. Mas, no entanto, não conseguiu assegurar um final tranquilo para o final do seu segundo mandato como presidente.
Na frente da votação e, correspondentemente, com mais deputados eleitos, ficou a renovada Frente Popular, uma amálgama de partidos de esquerda, de que ninguém consegue prever quanto tempo durará a sua unidade – como ficou, de resto, bem demonstrado na forma como os líderes das várias organizações que a compõe se atropelaram em declarações de vitória, na noite das eleições.
A esquerda ganhou, mas ninguém sabe ainda como poderá formar governo. Da mesma forma, que o partido de Macron, mesmo ficando em segundo lugar, irá perder, naturalmente, o protagonismo e a centralidade que alcançou nos últimos anos, na política francesa.
A realidade é eloquente: não há uma maioria clara no governo, para qualquer partido ou coligação formar governo. E, segundo a Constituição francesa, Emmanuel Macron não pode voltar a convocar eleições no prazo de um ano.
Como se resolve o mais provável impasse que se aproxima? Só há uma forma: conseguir um entendimento entre várias forças políticas que permitam a formação de um governo que seja aprovado no parlamento. Até porque, mesmo que perante o chumbo de vários primeiros-ministros e dos seus executivos, se avance para um governo de tecnocratas, como sucedeu há bem poucos anos em Itália, será sempre necessário que a Assembleia Nacional dê a sua aprovação.
Se isso não acontecer, teremos, provavelmente, de recuar exatamente 100 anos para encontrar uma situação semelhante. O momento, em junho de 1924 em que Alexandre Millerand, o 11.º presidente da III República, se sentiu obrigado a renunciar ao cargo, depois de todos os chefes de governo que propôs terem sido chumbados no Parlamento.
Não sabemos se a história se repetirá, mas as coincidências entre Millerand e Macron são evidentes. Ambos vieram das fileiras socialistas e enveredaram, depois, por percursos próprios, mais à direita.
Macron enfrenta agora a vitória da Frente Popular, da mesma forma que Millerand ficou numa posição complicada perante a vitória do então chamado Cartel des Gauches (coligação de esquerda, que uniu os socialistas a outros movimentos radicais).
Finalmente, tanto em 1924 como em 2024, Paris é a sede dos Jogos Olímpicos. Há um século, nos últimos organizados pelo barão Pierre de Coubertin, o Presidente Millerand foi obrigado a abandonar o seu gabinete no Palácio do Eliseu poucas semanas antes da sua programada subida ao púlpito para proferir o discurso de inauguração – onde foi substituído pelo seu sucessor, Gaston Doumergue. No caso de Macron, a apenas duas semanas da cerimónia de abertura de Paris 2024, dificilmente a história olímpica será igual. Já em relação ao seu destino político, de curto e médio prazo, ninguém consegue assegurar o desfecho.
É verdade que aprendemos que, apesar das aparências, a história nunca se repete. Mas em França, sinceramente, nunca se sabe.
Esteve morto e enterrado durante sete dias, mas Macron e a Frente de Esquerda conseguiram o «joker» na 2ª volta. Derrota pesada para a União Nacional e o jovem aspirante a novo primeiro-ministro. Os franceses perceberam o que se jogava neste domingo, e foram votar maciçamente.
Conviria, agora, que os partidos ao centro e à esquerda se entendessem sobre o novo Governo, já que nenhum deles, isoladamente, teve a maioria absoluta. É a geringonça à francesa, mas que salvou Macron de um sarilho político impensável. Vai ter de deixar a Frente Popular governar – Mélenchon já pediu a cadeira de PM – mas o partido presidencial terá um papel relevante na Assembleia para conter a «nova» Frente Popular.
É inequívoco que a União Nacional de Le Pen e Jordan Bardella ganhou peso na Assembleia Nacional, mas a desilusão é grande para quem sonhava com uma maioria absoluta. A 2ª volta das eleições francesas é um modelo eleitoral que permite reviravoltas frequentes. Antes assim. A vitória da extrema-direita em França seria um desastre para a União Europeia, para a NATO e para a Ucrânia. E era nisso que Putin apostava e investia.
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As primeiras projeções das eleições em França dão uma vitória surpreendente para a coligação de esquerda Nova Frente Popular, seguida da coligação presidencial Juntos. A União Nacional, que venceu a primeira volta, ficou em terceiro, ao contrário do que indicavam todas as sondagens das últimas semanas.
Em constante atualização, as projeções indicam assim que a Nova Frente Popular terá mais de 180 lugares no Parlamento, seguido o Juntos com pelo menos 166 deputados e a União Nacional obteve 143 lugares. Sem atingir a maioria absoluta – 289 deputados – nenhum dos blocos partidários está em condições de formar um governo.
A participação estimada foi de 67%, a mais alta registada durante um segundo turno em mais de 40 anos e ligeiramente maior do que no primeiro turno.
Recorde que na primeira volta, a União Nacional (RN, extrema-direita) obteve 33,10%, a Nova Frente Popular (NFP, coligação de esquerda) 28% e o Juntos (Ensemble, coligação presidencial) 20%.
Gabriel Attal: “Foi uma honra ser primeiro-ministro”
O primeiro-ministro francês, Gabriel Attal, anunciou que irá apresentar a demissão a Macron na segunda-feira. “Mantivemo-nos firmes e continuamos firmes”.
Presidente não vai nomear um primeiro-ministro hoje
O Palácio do Eliseu já confirmou que Emmanuel Macron não vai falar esta noite, preferindo aguardar pela “estruturação” da nova composição da Assembleia Nacional para “tomar as decisões necessárias”, lê-se em comunicado. O Presidente refere ainda que é importante ter “contenção” face aos resultados que ainda são provisórios.
Mélenchon: “O Presidente tem o dever de chamar a Nova Frente Popular para governar”
O líder da França Insubmissa (partido que lidera a coligação Nova Frente Popular), Jean-Luc Mélenchon, já reagiu e falou diretamente para Macron. “O Presidente deve inclinar-se e admitir a derrota. O primeiro-ministro deve ir embora, nunca recebeu a confiança da Assembleia Nacional”, disse.
Os resultados surpresa são um “imenso alívio para a maioria das pessoas no nosso país”, afirmou. “O nosso povo rejeitou claramente a pior solução possível”.
Le Pen: Vitória ficou “apenas adiada”
Marine Le Pen, líder do União Nacional, afirmou que apesar do resultado está a ser feito “progresso”. “A maré está a subir. Desta vez não subiu suficientemente alto, mas continua a subir. E, por isso, a nossa vitória só tarda”, disse. “Tenho demasiada experiência para ficar desiludida com um resultado em que duplicamos o nosso número de deputados”.
Le Pen diz ainda que Macron está agora “numa situação insustentável”.
Bardella: “Estes acordos eleitorais atiram a França para os braços da extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon”
Jordan Bardella diz que “a aliança da desonra e os arranjos eleitorais perigosos negociados por Emmanuel Macron e Gabriel Attal com as formações de extrema-esquerda impedem os franceses de uma política de recuperação nacional”.
“Esta noite tudo começa. E eu estarei lá, por vocês, com vocês, até a vitória. Esta noite, um velho mundo caiu e nada pode deter um povo que voltou a ter esperança”, salientou.
Faure: “França merecia mais do que a alternativa entre neoliberalismo e fascismo”
O líder do Partido Socialista francês, Olivier Faure, que faz parte da coligação de esquerda Nova Frente Popular, avisa que não aceitará “coligação de opostos que traia o voto dos franceses”. “França merecia mais do que a alternativa entre neoliberalismo e fascismo”, declarou.
[Artigo atualizado às 00h]
Assume, sem rodeios, que um dos objetivos do livro Liberdade e Igualdade (Presença, 464 págs., €24,90) é o de desenvolver “uma verdadeira alternativa ao neoliberalismo”, um sistema económico com princípios “errados”, gerador de “desigualdades” e que está na base da “ascensão do populismo autoritário”. Para mudar a sociedade e permitir que todos tenham “uma vida boa” propõe uma “utopia realista”, assente em ideias radicais como a criação de um rendimento básico universal, uma herança mínima universal ou um fundo de riqueza dos cidadãos, que investiria dinheiro público em empresas privadas para distribuir dividendos pelos cidadãos. Defende também o reforço do poder dos trabalhadores dentro das empresas, o fim das escolas privadas, para que todos possam ter “um começo justo”, e a entrega de vouchers para acabar com a crise nos media. Economista e filósofo, Daniel Chandler dirige o programa Cohesive Capitalism na prestigiada London School of Economics (LSE). Diz que é cedo para balanços, mas acredita que o programa pode transformar-se no seu contributo para um novo modelo de capitalismo, mais justo.
A edição portuguesa de Liberdade e Igualdade tem a seguinte pergunta como subtítulo: “O que será uma sociedade justa?” Como é que pensa que será?
Escolhi esse subtítulo porque, embora seja fácil apontar o que está errado na sociedade – guerras culturais, perda de confiança na democracia, desigualdade, crise climática e assim por diante –, é surpreendentemente difícil encontrar uma imagem coerente do que seria uma sociedade melhor e mais justa. É como se tivéssemos perdido a capacidade de imaginar maneiras genuinamente diferentes de fazer as coisas, além de pequenos ajustes no statu quo. Nos últimos anos, tem-se escrito muito sobre a “crise da democracia liberal”, mas tem sido principalmente ao nível do diagnóstico – sobre como, e porquê, acabámos na confusão atual. Queria escrever um livro sobre soluções, para expor o que chamo de “utopia realista”, uma visão prática do melhor que uma sociedade democrática pode ser. No centro dessa visão, estão os valores da liberdade e da igualdade, daí o título [Liberdade e Igualdade]. Por liberdade, não estou a falar da economia do laissez-faire [deixa fazer, a ideia central do liberalismo económico], mas de uma sociedade onde todos são livres de praticar a sua religião, de dizer o que pensam, de se apaixonar e de participar na democracia em condições de igualdade. Estas liberdades fundamentais são a base de qualquer sociedade justa.
E a igualdade?
Como a liberdade, por si só, não é suficiente, precisamos de uma verdadeira igualdade de oportunidades, para que todos possam desenvolver os seus talentos e perseguir os seus sonhos, independentemente da classe, raça, género ou orientação sexual. Um certo grau de desigualdade é bom, dá às pessoas incentivos para trabalharem arduamente e inovarem, mas não basta que chegue algum dinheiro aos que estão na base. Precisamos de garantir que todos partilham os benefícios de uma economia de mercado dinâmica, e de concentrar os nossos esforços em melhorar a vida dos menos favorecidos, não apenas em termos de dinheiro mas também em termos de dignidade e autoestima. Em suma, uma sociedade justa teria liberdades iguais, oportunidades iguais e uma distribuição justa do poder. E, claro, teria de ser sustentável, reconhecendo as nossas obrigações para com as gerações futuras e enfrentando a emergência climática e ecológica.
Acredita que os conceitos de liberdade e igualdade defendidos pelo filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002) são adequados ao mundo de hoje. Como é que ideias divulgadas há 50 anos podem salvar a democracia e contribuir para uma sociedade melhor?
Estamos claramente a viver um momento de transição. O neoliberalismo está amplamente desacreditado, mas uma alternativa progressista está ainda a tentar emergir. Parte do problema é a falta de referências intelectuais e filosóficas. Acredito que as ideias de John Rawls oferecem uma visão da sociedade baseada não no interesse próprio e na competição – as ideias na base do neoliberalismo – mas na reciprocidade e na cooperação. Publicado em 1971, o livro Uma Teoria da Justiça, de Rawls, revolucionou a filosofia política. É amplamente reconhecido como o filósofo político mais importante do século XX, pelo menos na tradição anglófona, e é frequentemente comparado a nomes como Platão, Hobbes, Kant e Marx. O que adoro em Rawls, e o que torna as suas ideias tão vitais, é que são otimistas e construtivas. Oferecem uma alternativa ao cinismo que hoje prevalece no discurso político e mostram-se também muito práticas. Assentam num conjunto de princípios simples, mas poderosos, relacionados com liberdade, igualdade e sustentabilidade. Como economista e filósofo que sou, e tendo trabalhado para o governo do Reino Unido, nomeadamente na Unidade de Estratégia do primeiro-ministro [criada por Tony Blair em 2002], o meu livro é fundamentalmente sobre como poderíamos colocar estes princípios em prática, recorrendo às melhores ideias e exemplos do mundo inteiro.
Se, como diz, somos tão diferentes – na religião, na política, nos valores, na orientação sexual… –, como poderemos criar uma sociedade igualitária? A ascensão do populismo autoritário não será um sinal de que nem todos partilham dos mesmos valores?
É claro que há um enorme debate sobre muitas destas questões. Mas, se cavarmos mais fundo, penso que há mais espaço para um acordo do que pode parecer. A teoria de Rawls consiste em recuar para tentar encontrar um patamar comum, e esse é também o espírito do meu livro. O ponto de partida de Rawls é uma ideia, com a qual quase todos concordam, de que a sociedade deve ser justa. Mas claro que justiça significa coisas diferentes para pessoas diferentes! Rawls sugeriu um exercício hipotético que poderia ajudar-nos a resolver algumas diferenças. Se quisermos saber como seria uma sociedade justa, deveríamos imaginar como iríamos organizá-la se não soubéssemos qual seria a nossa posição dentro dela – se seríamos ricos ou pobres, negros ou brancos, gay ou hétero, e assim por diante. É uma interpretação secular da “regra de ouro”, que diz que devemos tratar os outros como gostaríamos que nos tratassem. Faz-nos pensar sobre a sociedade de uma forma imparcial e tomar em consideração as perspetivas dos outros. E, quando nos afastamos do calor do debate, descobrimos que a maioria das pessoas reconhece que todos deveriam ser livres de praticar a sua religião, de escolher quem amar e de viver as suas vidas livres de discriminação. E que todos devem ter acesso igual à educação, a bons empregos e a um rendimento digno. Claro que há quem rejeite estas ideias, mas felizmente continua a ser uma pequena minoria.
Precisamos de dar aos trabalhadores um poder real para moldar a forma como as empresas são geridas, adotando um modelo de cogestão pelo menos tão ambicioso como o da Alemanha
Mas parece ser cada vez mais difícil concordarmos sobre tudo…
Numa sociedade livre, as pessoas discordarão sempre sobre questões morais e religiosas – sobre o significado da vida, se Deus existe, como viver, e assim por diante. A liberdade de chegar às nossas próprias conclusões sobre questões pessoais é a essência do liberalismo. Mas quando se trata de questões sobre os nossos direitos e liberdades básicos, ou sobre como organizamos a nossa economia, temos de tentar chegar a acordo. As ideias de Rawls podem agradar a pessoas com crenças morais e religiosas muito diferentes. A construção de um maior consenso não acontecerá automaticamente – é algo em que temos de trabalhar, e o objetivo do meu livro é fornecer ideias e argumentos para isso.
Afirma no livro que o neoliberalismo está na base da ascensão do populismo autoritário de Donald Trump nos EUA, Viktor Orbán na Hungria, Modi na Índia, etc. Como podemos defender as democracias desse fenómeno?
O neoliberalismo significa muitas coisas para diferentes pessoas, mas baseia-se em três ideias: os humanos agem de acordo com o seu próprio interesse, os mercados orientarão essa característica para o bem comum e o papel do Estado é simplesmente deixar que os mercados façam a sua magia. Estas ideias têm sido utilizadas para justificar um sistema económico com níveis crescentes de desigualdade, mas estão erradas. Na maior parte das vezes, as pessoas não são nem egoístas nem altruístas. São motivadas por um sentido de reciprocidade, um desejo de cooperar com os outros de forma justa, e essa capacidade de cooperar está na base do nosso sucesso como espécie. Mas os mercados, quando deixados à sua sorte, não são eficientes nem justos. O papel do Estado é regulá-los, para que funcionem bem e todos possam partilhar dos benefícios. A ligação ao populismo autoritário reside no facto de líderes como Trump e Orbán terem conseguido explorar a raiva contra os atuais sistemas políticos e económicos para minar as bases da democracia liberal e incitar o ódio contra os migrantes e outras minorias. Frequentemente, a resposta tem sido condenar os populistas e defender o statu quo, em vez de abordar os problemas subjacentes. Para defender a democracia liberal, precisamos de reconhecer os seus problemas, de recordar o potencial transformador dos ideais liberais e democráticos e de adotar um programa de reformas para que as nossas sociedades voltem a merecer o apoio dos seus cidadãos.
Propõe medidas como um fundo de riqueza dos cidadãos para reduzir as desigualdades, ou um maior poder dos trabalhadores nas empresas para democratizar o trabalho. Como é que o capitalismo deve ser reformado para eliminar as desigualdades e preservar os recursos do planeta?
Um dos objetivos do meu livro é desenvolver uma verdadeira alternativa ao neoliberalismo. Temos de ir além do paradigma da redistribuição, que dominou o pensamento progressista durante uma geração, como se os impostos e as transferências sociais pudessem resolver todos os problemas do capitalismo. É claro que são essenciais para apoiar quem não pode trabalhar. Mas, embora as prestações sociais possam aumentar os rendimentos das pessoas, não lhes dão o sentimento de independência e dignidade que é tão importante para ter uma vida boa. Em vez de “compensar” as pessoas com baixos rendimentos, o nosso objetivo deveria ser transformar a estrutura básica da economia para que todos tenham acesso a bons empregos, a uma distribuição justa da riqueza e também uma palavra a dizer sobre a forma como o trabalho é organizado. Investir na educação é crucial, tal como o são os salários mínimos generosos e os sindicatos mais fortes. Mas se quisermos realmente fazer a diferença, precisamos de algo mais radical, como um rendimento básico universal, uma herança mínima universal paga a cada cidadão aos 18 anos de idade, ou um fundo de riqueza dos cidadãos, de capital público, que investiria em ações de empresas privadas e pagaria um dividendo anual a cada cidadão. Qualquer um destes modelos teria de ser financiado por impostos progressivos sobre as heranças e a riqueza. Por último, precisamos de dar aos trabalhadores um poder real para moldar a forma como as empresas são geridas, adotando um modelo de cogestão pelo menos tão ambicioso como o da Alemanha, onde os trabalhadores das grandes empresas têm um terço, ou metade, dos lugares no conselho de administração e podem eleger um conselho de trabalhadores para tomar decisões sobre as condições de trabalho. A evidência sugere que a cogestão tem pouco ou nenhum custo em termos de rentabilidade ou competitividade, é popular entre os gestores e pode até aumentar o investimento e a produtividade.
É mesmo necessário acabar com as escolas privadas, como defende no livro, para que todos possam ter um “começo justo”?
Se quisermos combater a desigualdade, precisamos de garantir que todos tenham igual acesso à educação, uma vez que o nível de educação é um fator-chave que determina o quanto as pessoas podem vir a ganhar no futuro. A prioridade deveria ser garantir o acesso universal à educação pré-escolar de elevada qualidade, uma vez que é aí que começam a surgir disparidades entre as crianças de famílias ricas ou pobres, e é onde podemos ter o maior impacto de cada euro que gastamos. Mas também penso que deveríamos eliminar gradualmente as escolas privadas – ou, para sermos mais específicos, as que cobram propinas –, como fez a Finlândia na década de 1970. Porquê? Quase todos apoiam a ideia da igualdade de oportunidades e, se essa ideia significa alguma coisa, é que o acesso à educação não deve depender da riqueza das famílias. Como defendo no meu livro, trazer as escolas privadas para o sistema público é perfeitamente compatível com os princípios liberais, e é uma ideia que deveríamos levar a sério.
Também propõe a criação de vouchers para combater a crise dos media. Como é que funcionariam?
As empresas de comunicação social têm um papel vital em qualquer democracia e não são simplesmente um veículo para obter lucro. Se confiarmos simplesmente no mercado, acabaremos por ter um sistema de media onde o poder e a propriedade estão concentrados nas mãos de alguns multimilionários, como acontece na maioria das democracias. O financiamento público tem claramente um papel, mas temos de ter cuidado para não deixar que os partidos políticos possam utilizá-lo para influenciar os media. Através da criação de vouchers, financiados pelos impostos, cada cidadão poderia doar, a um ou mais meios de comunicação, uma quantia igual de dinheiro por ano. Para serem elegíveis, esses meios teriam de produzir notícias de interesse público (as revistas de moda, por exemplo, não seriam elegíveis!). Poderia também ser-lhes exigido que cumprissem padrões básicos de rigor, honestidade e responsabilidade. Isto aumentaria os recursos para melhorar a cobertura noticiosa sem comprometer a liberdade da imprensa face à interferência governamental.
É professor na London School of Economics (LSE) e diretor do programa Cohesive Capitalism. Como é que o capitalismo pode ser coeso?
O programa é uma nova e estimulante iniciativa, que reúne filósofos, economistas e outros cientistas sociais na LSE para desenvolver um novo modelo de capitalismo destinado a servir o interesse comum. Nos próximos anos, exploraremos toda uma variedade de novas ideias e políticas com o objetivo de desenvolver uma alternativa clara ao paradigma neoliberal que dominou o pensamento, tanto à esquerda como à direita, nas últimas décadas. É um esforço coletivo, por isso não quero pré-julgar o resultado, mas as ideias práticas do meu livro – desde novas formas de democracia participativa até um rendimento básico universal, fundo de riqueza dos cidadãos e democracia no local de trabalho – ajudariam a aproveitar os benefícios de uma economia capitalista para o bem comum.
Palavras-chave:
Há quem diga que Joe Biden se aprisionou à ideia de que os dois mandatos como vice-presidente de Barack Obama e um único mandato enquanto principal inquilino da Casa Branca apenas lhe confeririam uma nota de rodapé nos livros de História. Por isso, explicam os defensores de tal tese, Biden voltou atrás com a palavra dada em 2020, quando venceu Donald Trump nas presidenciais (disse então que só cumpriria um mandato, o qual terminaria já com 81 anos), e abalançou-se a uma segunda corrida à Casa Branca, contra o mesmo e perigoso adversário, até à meta de 5 de novembro próximo, data das eleições.
Mas a questão da sua idade avançada, que há quatro anos Biden aceitava ser um entrave para tentar um segundo mandato presidencial, e que agora pôs de lado, já fez das suas – e da pior maneira possível. O incumbente desafiou Trump, 78 anos, para um debate inédito na história das presidenciais dos EUA, porque nunca tinha havido nenhum tão longe da ida às urnas. E Biden chumbou com estrondo no teste a que ele próprio se propôs: no debate, realizado no passado dia 28 e transmitido pela CNN, mostrou-se fragilizado, hesitante, incoerente, com frases inacabadas e incapaz de aproveitar os muitos deslizes do prolixo opositor.
Uma sondagem realizada após o debate pela CBS News-YouGov indicou que 72% dos eleitores inquiridos consideram que Biden não tem saúde mental e cognitiva para ser Presidente
Tamanho “pesadelo” deixou o Partido Democrata em pânico. E com razão. Uma sondagem realizada após o debate pela CBS News-YouGov indicou que 72% dos eleitores inquiridos consideram que Biden não tem saúde mental e cognitiva para ser Presidente e que 64% acham que o incumbente devia afastar-se e dar o lugar a outro candidato democrata. Neste particular, Trump também não se saiu propriamente bem: 49% dos inquiridos naquela sondagem dizem que o candidato republicano não tem saúde mental e cognitiva para servir como Presidente e 54% consideram que ele não deve concorrer.
O certo, porém, é que, com o debate, e segundo o barómetro do site FiveThirtyEight, Trump recuperou, nas intenções nacionais de voto, a vantagem que tinha perdido desde que, a 30 de maio último, um tribunal de Nova Iorque o considerou culpado de 34 acusações de fraude às leis eleitorais, devido à forma ilegal como a sua campanha, em 2016, escondeu o pagamento de uma quantia a Stormy Daniels, ex-atriz de filmes pornográficos, para que ela não revelasse o envolvimento sexual com o candidato republicano (que ganharia as presidenciais à democrata Hillary Clinton). Antes do embate na CNN, Biden conseguira ultrapassá-lo, mas, dois dias depois do debate, Trump já surgia, no barómetro do FiveThirtyEight, 1,3 pontos percentuais à frente do democrata. Analistas políticos dos EUA lembram, a propósito, que numa eleição tão renhida como a de novembro próximo, que se decidirá em seis estados-chave (Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Georgia, Arizona e Nevada), um ponto percentual a mais pode representar a conquista da Presidência.
“Não pode continuar”
A leitura da sentença do caso Stormy Daniels está marcada para o próximo dia 11, mas ninguém acredita que Trump seja o primeiro ex-Presidente dos EUA a ser condenado a uma pena de prisão efetiva – além de que o fim do processo se encontra ainda longe, à conta dos recursos que os advogados do candidato republicano já anunciaram ir interpor.
Biden, “um homem decente”, como o definem os seus partidários, não tem problemas destes. Tem, agora, outros, que para Trump seriam o veneno “antissistema” de que se alimenta. Numa iniciativa inédita, após o debate na CNN, o conselho editorial do The New York Times publicou um artigo no qual se lê que o “maior serviço público que Biden pode prestar agora é anunciar que não vai continuar a concorrer à reeleição”. Órgão independente da redação daquele jornal, composto por cronistas, o conselho editorial apela a Biden que reconheça que “não pode continuar” e que viabilize a criação de “um processo para selecionar alguém mais capaz, para o substituir e derrotar Trump em novembro”.
Aqueles influentes cronistas afirmam que “Biden tem sido um Presidente admirável”, mas sublinham que há no Partido Democrata “líderes mais bem preparados para apresentar alternativas claras, convincentes e enérgicas a uma segunda Presidência de Trump”. Apelos no mesmo sentido, dirigidos a Biden para que abdique, foram feitos pelo The Wall Street Journal, pelo Financial Times, pelo The Washington Post e pela publicação britânica The Economist.
Mas o incumbente não está pelos ajustes. Num discurso que proferiu em Raleigh, na Carolina do Norte, com aspeto mais vigoroso, logo a seguir ao debate na CNN, afirmou: “Já não ando tão bem como antes. Não falo tão bem como antes. Não debato tão bem como antes, mas sei aquilo em que sou bom. Sei como dizer a verdade.” E acrescentou: “Não me candidataria se não acreditasse verdadeiramente que posso fazer este trabalho. Há muitas coisas em jogo.”
Barack Obama foi dos primeiros a expressar o apoio à continuidade da corrida de Biden. “É alguém que dedicou toda a sua vida a lutar pelas pessoas”, enquanto Trump “é alguém que só se preocupa consigo mesmo”, escreveu o ex-Presidente na rede social X. Até ver, pois é improvável que Biden desista e que a convenção de Chicago, em agosto, não o consagre como candidato democrata. Há um grande motivo para isso, como escreve o The New York Times: “Ninguém quer ser a pessoa que dividiu o partido e ajudou a eleger Trump.”
Banco de suplentes
Cinco alternativas no Partido Democrata, caso Joe Biden desista da candidatura

Kamala Harris
De 59 anos, a vice-presidente não é muito mais popular do que Biden. Mas, diz Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia, seria a sucessora natural: “Ao escolhê-la não estaríamos, de maneira nenhuma, a contentar-nos com menos.”

Gavin Newsom
Governador da Califórnia, 56, é acusado por republicanos de dinamizar na “sombra” uma campanha que lhe permita entrar na corrida. Há democratas satisfeitos com isso.

Josh Shapiro
Político experiente, o governador da Pensilvânia, 51, tem tido choques com Biden, devido à sua pouca sensibilidade por assuntos ambientais.

Gretchen Whitmer
A governadora do Michigan, 52, foi exemplar no combate à Covid-19 e conseguiu aprovar uma lei de controlo de armas e legislação favorável à energia limpa.

J.B. Pritzker
O governador do Illinois, 59, é bilionário e não teria dificuldades em arranjar orçamento para uma campanha–relâmpago.