“Costumo dizer, a brincar, que estamos aqui a devolver algum do ouro que levámos há uns séculos”, afirma Jorge Rebelo de Almeida, a propósito da inauguração do Vila Galé Collection Ouro Preto, que decorreu este sábado, 24, em Cachoeira do Campo, Ouro Preto, no estado brasileiro de Minas Gerais. “É um prazer enorme renovar património histórico”, acrescenta ainda o presidente e fundador do Vila Galé. “Há muitos anos que defendo que o Brasil tem um futuro promissor. E tem um potencial de crescimento tremendo”, remata.
Localizado na região de Ouro Preto, cidade que foi o centro primordial do Ciclo do Ouro no Brasil, conhecida pelas suas igrejas de arquitetura barroca e classificada património mundial pela UNESCO em 1980, o novo hotel do Vila Galé está integrado numa propriedade com 277 hectares, em Cachoeira do Campo (a 22 quilómetros de Ouro Preto). “Recuperar este edifício é mais do que abrir um hotel. É trazer de volta à vida um espaço com história e alma, contribuindo para o desenvolvimento do turismo e da economia local, como temos feito em Portugal e no Brasil”, diz também Jorge Rebelo de Almeida.
Em breve, no Vila Galé Collection Ouro Preto, serão, no total, 311 quartos: 95 no edifício principal e 216 em dois blocos adjacentes construídos de raiz (um dos blocos já está terminado, o outro só deverá ficar disponível no final de 2025). O hotel dispõe de cinco piscinas aquecidas, um spa, três restaurantes, uma biblioteca, um museu, uma capela e um clube para crianças. E ainda um anfiteatro com 130 lugares e uma área de eventos com capacidade para 900 pessoas. Na área da fazenda, também está previsto o planeamento de trilhos ecológicos com acesso a cascatas e a plantação de vinha, em cerca de 15 hectares (o grupo Vila Galé já produz vinho com a marca Santa Vitória no Alentejo, Val Moreira no Douro e Paço de Curutelo, em Ponte de Lima).
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O hotel, que representa um investimento de 30 milhões de euros, está inserido numa fazenda com 277 hectares
O Vila Galé Collection Ouro Preto representa um investimento de 180 milhões de reais (cerca de 30 milhões de euros), origina 120 empregos diretos e mais de 600 postos de trabalho indiretos na região. As primeiras negociações ocorreram em 2021, na Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) e, no ano seguinte, um acordo com os salesianos, proprietários do imóvel, permitiu a apresentação do projeto a grupos de hotelaria. Foi assinado um contrato de concessão com a Igreja Católica para os próximos 50 anos (renovável). Do lado do governo de Minas Gerais, o resort é visto como um projeto fundamental porque não só tem impacto na economia local e regional como permite “reposicionar” o estado brasileiro como “um destino competitivo, seguro e acolhedor”.
Novos projetos já em construção
O edifício do Vila Galé Collection Ouro Preto tem uma longa história para contar. Trata-se de um imóvel histórico onde funcionou o primeiro regimento de cavalaria de Portugal no Brasil, mandado construir em 1779 pelo então governador António de Noronha. O brasão da coroa portuguesa, ainda hoje localizado por cima da porta principal, costuma ser atribuído a Aleijadinho (1738-1814), mas não há certezas de que, efetivamente, tenha sido esculpido pelo conhecido artista do período colonial. Em 1789, o edifício foi também um dos focos principais da Inconfidência Mineira, a revolta de natureza separatista liderada por Joaquim José da Silva Xavier, o célebre “Tiradentes”.
O movimento da Inconfidência Mineira acabou reprimido pela coroa portuguesa e a maioria dos seus autores foram condenados ao degredo perpétuo. “Tirandentes” – hoje considerado um herói nacional, símbolo da identidade brasileira – foi executado no Rio de Janeiro, a 21 de abril a 1792. O corpo foi esquartejado e a cabeça foi exibida no cimo de um poste em Ouro Preto, que então se chamava Vila Rica.
Depois da revolta da Inconfidência Mineira, o edifício de Cachoeira do Campo teve ainda duas vidas: em 1816, começou a ser adaptado para a Coudelaria Imperial de Cachoeira do Campo, fundada a 29 de julho de 1819. E, no final do século XIX, em 1897, foi também ali que se instalou o Colégio Dom Bosco, uma escola agrícola orientada por salesianos. Funcionou até 1997 e, por isso, ainda hoje, muitos mineiros têm memórias familiares desse período em que ali esteve instalado o colégio.
O Vila Galé Collection Ouro Preto já é o segundo projeto de recuperação de património levado a cabo pelo grupo português no Brasil, depois do Vila Galé Rio Janeiro, um antigo hotel convertido em colégio nos anos 40 do século XX reconvertido, depois, novamente, para hotel pelo Vila Galé. No total, o grupo dirigido por Jorge Rebelo de Almeida conta com 12 hotéis no Brasil. Recentemente, antes da unidade de Ouro Preto, no final de 2024, foi também inaugurado o Vila Galé Cumbuco, no Ceará.
Ainda em 2025, em outubro, a tempo da COP 30, a reunião da ONU sobre alterações climáticas que juntará 140 chefes de Estado de todo o mundo, em Belém, no estado do Pará, também está prevista a abertura do Vila Galé Amazónia. Em construção, o grupo Vila Galé tem já quatro novos empreendimentos: dois em São Luís do Maranhão e dois em Coruripe, em Alagoas. Em conferência de imprensa, realizada este sábado, 24, em Ouro Preto, Jorge Rebelo de Almeida também confirmou um novo hotel em Inhotim, um museu de arte contemporânea a céu aberto em Brumadinho, no estado de Minas Gerais, a 60 quilómetros da capital de Belo Horizonte.
Tirando as pessoas que o conheceram pessoalmente, Herberto Helder era, para leitores e mesmo não leitores, um oceano misterioso e desconhecido. Como começou a navegar por essas águas? Quem começou por me orientar neste trabalho foi o tradutor Aníbal Fernandes, amigo de Herberto. Foi ele o meu primeiro contacto. Tivemos inúmeras conversas durante semanas, meses… E essas conversas fizeram-me disparar para vários sítios, pessoas, histórias. Foi uma espécie de bola de neve que começou aí. E as pessoas que segui a partir desse processo davam-me acesso a outras pessoas e histórias. O Herberto Helder é um biografado muito diferente do habitual porque houve um silenciamento em vida, promovido pelo próprio. Havia, a partir de certa altura, uma espécie de medo dos seus amigos e mais próximos de deixarem de conviver com o Herberto se violassem essa regra que ele impôs. E eu entendo que ele tinha todo o direito à sua privacidade.
Até agora. Sim, ninguém fez uma biografia em vida, e eu percebo isso. Mas achar que depois da sua morte não iria haver uma biografia do Herberto Helder não faz sentido. E esta, provavelmente, não será a única. Se a sua obra continuar a suscitar interesse junto das novas gerações, acredito que haverá outras biografias. Mas sem acesso a muitos destes testemunhos que eu tive. Das cerca de 70 pessoas que entrevistei, muitas já não estão vivas, outras têm uma idade avançada. Mas podem aparecer novos documentos, correspondência nova, há aqui questões que podem ser aprofundadas ou corrigidas.
Foi avançando quase como um detetive, a partir dessas conversas com Aníbal Fernandes? Sim, e percebi rapidamente, pelas histórias que ia ouvindo, que havia, de facto, matéria para uma biografia interessante.
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Outra fonte fundamental, que percorre o livro, é a viúva do escritor, Olga Lima. Sem dúvida. Foi muito difícil convencê-la a colaborar, de início, mas tenho dezenas e dezenas de horas de gravações com ela. Entre o primeiro telefonema e a primeira conversa para a biografia, ainda sem gravar, passou mais de um ano…
Foi persistente… Sim. E também aprendi a conhecer a Olga, que tem uma personalidade muito diferente da maioria das pessoas com quem falei. É uma pessoa muito frontal e interessante, com uma frontalidade de que a maior parte das pessoas não gosta. Percebi que a Olga era, de certo modo, desprezada pela intelectualidade, que a silenciaram por não ser uma pessoa com um curso superior, com interesses literários… E das poucas vezes que se encontravam com ela, encontravam uma mulher que não era submissa, antes pelo contrário.
Nesta biografia sentimos que Herberto era muito bipolar, com momentos depressivos e desesperados e outros eufóricos e de entusiasmo… Sim. Era instável nos seus humores. Tinha momentos obscuros e outros de grande luminosidade… De certa maneira, acho que todas as pessoas são bipolares. E ele nunca foi diagnosticado como bipolar ou maníaco-depressivo, como se dizia antes. Mas tinha, claramente, humores circulares, e a eles se refere muitas vezes.
Herberto Helder escondeu-se, a partir de certa altura não deu mais entrevistas, recusou prémios, mas tinha uma grande preocupação com o modo como era lido, recebido, procurava o “sucesso” à sua maneira… Queria ser amado pelo seus leitores, sim…
Acha que os extremos se tocam, neste caso? Uma pessoa que quer ser invisível, mas que se preocupa muito com a sua imagem como poeta… Isso também é uma forma de chamar a atenção. Eu acho que isso era genuíno no Herberto, e é fácil reconhecer que há aspetos da vida mundana que são muito aborrecidos e prejudiciais para quem quer escrever e desenvolver a sua criatividade. Mas claro que ele percebeu que essa atitude dele suscita muita curiosidade e chama a atenção, é diferente do que é comum.
Mas só funciona quando já se atingiu alguma notoriedade… Claro. E nessa fase ele já tinha, e sabia que tinha, reconhecimento. Julgo que foi, ao mesmo tempo, genuíno, com esse sentimento “estou farto disto, quero ter paz e sossego”, mas depois percebeu que aquilo o tornava mais interessante, o distinguia dos outros, o tornava mais autêntico. Ele tinha essa ideia de reduzir ao máximo os intermediários entre o texto e o leitor, de tentar que esse encontro com os poemas fosse o mais direto possível, sem interferências, sem badanas a explicar quem ele é, sem citações de outros autores a dizerem como ele é “maravilhoso.”
Ao contrário de muitos contemporâneos e amigos, politicamente, Herberto Helder era muito ambíguo. Politicamente, era um tipo escorregadio. Há uma carta à Maria Lúcia Dal Farra em que ele é muito crítico do Partido Comunista e, mesmo, do espírito revolucionário. E na PIDE, quando fez uma declaração de apoio ao Salazar, extravasou um bocado o que era normal nas declarações que os intelectuais eram obrigados a assinar sob coação para poderem continuar com as suas vidas.
Mas pode-se dizer que era um homem de esquerda? Eu presumo que sim. Mas como todos os homens de esquerda da geração dele, nos comportamentos e nas práticas tinha coisas muito conservadoras. Sabemos, aliás, que o PCP é um partido muito conservador.
O amor e as mulheres são o grande combustível da sua vida e da sua obra. Mas nesta biografia encontramos várias vezes uma visão bastante misógina e machista de Herberto Helder. Quanto mais escavamos e aprofundamos a vida de uma pessoa, mais rugosidades encontramos, mesquinhezes, contradições, defeitos… Isso não o desculpa, mas ele vivia numa época em que não havia o nível de consciencialização, nessa matéria, que existe hoje.
E há, ainda, a importância das prostitutas na sua vida ao longo de vários anos, desde os tempos de estudante em Coimbra… Chegou a viver em bordéis. Isso também tinha que ver com aquele imaginário do poeta maldito, que se dá com os bêbados, os loucos, as prostitutas… É uma coisa muito de época.
Há uma grande tradição de mulheres que têm muita importância na vida e na obra de escritores: Borges e María Kodama, Saramago e Pilar… Como vê o papel de Olga, que chega a dizer na biografia que a cultura portuguesa lhe deve muito? De certo modo, tem razão. Se ela quis responsabilizar-se pela parte toda da vida doméstica, da casa, dando todas as condições a Herberto Helder para escrever e viver a sua vida como queria, ninguém tem nada que ver com isso… É uma decisão pessoal dela. E acho que teve esse papel importante para a criação da obra de Herberto Helder, sim. Nesse aspeto, a cultura portuguesa também deve muito às mulheres do Vergílio Ferreira, do Jorge de Sena, de muitos escritores.
Este livro (o muito aguardado Se Eu Quisesse Enlouquecia, de João Pedro George, a partir desta quinta, 22, nas livrarias) devia ter um aviso logo nas primeiras páginas, ou mesmo na capa, como os maços de tabaco. Aí, podia alertar-se os muitos leitores e leitoras de Herberto Helder: se quiser manter uma imagem difusa, misteriosa e enigmática do poeta, valorizando só os seus fulgurantes versos e os seus extraordinários poemas, não comece a ler este livro. Depois de começarmos, já é difícil parar, entre revelações, surpresas, mundanidades, tricas, conflitos… “Sei uma quantidade de histórias terríveis” poderá dizer o leitor no final das quase 900 páginas, citando o segundo verso do célebre poema que dá título a esta biografia, Se Eu Quisesse Enlouquecia. E a ideia do biógrafo era mesmo essa. “Nos obituários feitos depois da morte de Herberto Helder [em 2015] havia sempre uma mitificação, como se fosse uma espécie de deus ou figura mitológica”, diz-nos João Pedro George, que fez um texto de análise sobre esses obituários. “E houve sempre esse discurso, sobretudo dos literatos e intelectuais, como se ele fosse uma figura fora deste mundo; julgo que isso é um mau serviço à cultura e à literatura, porque tende a afastar a maior parte das pessoas, passando a mensagem: ‘É tudo tão extraordinário e especial, vem de uma inspiração tão misteriosa, de um super-homem, que o comum dos mortais não tem acesso a isto, é só para especialistas’.” E conclui o sociólogo e biógrafo: “Eu quis trazer o Herberto à Terra.”
Não é preciso avançar muito nas páginas deste calhamaço para que o mito comece a diluir-se, para que a cortina que nos separa do grande poeta Herberto Helder caia com estrondo. De repente, estamos a visualizá-lo, já velho e cansado, a comer os seus cereais favoritos ao pequeno-almoço, All-Bran, enquanto mexe “vigorosamente” numa chávena “duas colheres de sopa de café solúvel” com uma “pequena porção de água a ferver.”
Os mitos, é sabido, não comem All-Bran.
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Algumas páginas mais à frente, somos obrigados a ver o nosso poeta, ainda jovem, em cima de uma “carripana” na Queima das Fitas de Coimbra, de garrafa na mão, desequilibrando-se constantemente e recitando versos a uma cantora mexicana, Ana Maria González, que assistia ao desfile a partir duma janela do café Nicola. Ou, também por esses dias, a meter-se em confusões num jogo de futebol entre a Académica de Coimbra e o Benfica. Episódio que anos depois, em 1972, Herberto recordaria assim num texto publicado na revista Notícia, de Luanda, onde então trabalhava: “Éramos um grupo que se tinha vindo a preparar desde muito cedo com copos de tinto e pasteizinhos de bacalhau. Foi uma boa preparação, porque, quando chegámos lá, estávamos prontos para uma quantidade de coisas. Começámos a gritar. De repente, alguém achou que era necessário as pessoas darem porrada umas nas outras. Depois, acabou. Nunca mais fui ao futebol. Tinha sido divertido de mais, e eu receava dedicar o resto da minha vida às fascinações do tinto, do grito e da batatada no meio da cabeça. Vê-se que foi breve, ainda que intensa, a minha formação desportiva.”
Eis Herberto Helder de Oliveira na Terra. Humano.
“Um anarquista pacífico”
Como em muitas biografias, sabemos de peripécias, reflexões, confissões, rotinas e episódios do dia a dia através da correspondência do biografado. E Herberto Helder desde cedo escreveu muitas cartas. Nascido em 1930, fazia parte de uma geração que valorizava muito, quotidianamente, essa prática. (Os biógrafos do futuro terão, certamente, mais dificuldade, na tarefa de vasculhar emails, mensagens digitais e presenças nas redes sociais, apagadas ou protegidas…). Além de ter ouvido cerca de 70 pessoas para esta primeira biografia de Herberto Helder, João Pedro George teve acesso a vasta correspondência. E teve a sorte de ver o seu biografado – com fama e proveito de fugidio e discreto, sobretudo na segunda metade da vida – a definir-se a si próprio em várias ocasiões, de acordo com os humores e os acontecimentos da vida e da “vidinha”.
Alguns exemplos: “Não me ligo a ninguém. Como artista (e como homem também) prezo quase fanaticamente essa coisa admirável (e tão frágil!) que se chama Liberdade. Já vês portanto que grupos, escolas, correntes, modas, tertúlias – não são para este teu pobre amigo que prefere a solidão à limitação que todas essas coisas impõem. Faz-me a justiça de acreditar que te falo sinceramente”, em carta a Carlos Cristóvão, escrita quando tinha 22 anos. “Sou um desesperado em quase todos os dias da minha vida, embora sinta em mim grandes forças de alegria. Falta-me só o motivo forte e ando à procura. Penso no amor, mas o amor num sentido muito profundo. Enquanto não aparece, vou enchendo a solidão de prostitutas e literatura. Impuro na vida, vou sendo puro noutros planos”, escrevia, em 1956, a Eurico de Sousa. Também ao mesmo amigo, e pela mesma época: “Sou daqueles que fazem coisas extremas, que jogam tudo para possuir o que amam. Mas talvez em criaturas assim as fraquezas sejam ainda mais radicais. Aceite você o que sou – um forte com intermitências.”
“Se eu quisesse, enlouquecia”
(Contraponto, 897 págs., €24,90)
Quando João Pedro George, ao fim de oito anos de trabalho, entregou o texto final à editora, esta biografia de Herberto Helder tinha quase duas mil páginas. Apesar de ter sido reduzido para metade, este é um livro exaustivo, que revela, com a ajuda de muitos testemunhos e correspondência, uma vida que até agora estava na sombra.
Já em março de 1975, escrevia à investigadora e poeta brasileira Maria Lúcia Dal Farra (que fez a tese de doutoramento A Poética de Herberto Helder), possuidora de uma vasta e rica correspondência escrita pelo poeta: “Sou uma espécie de anarquista pacífico, um cidadão da indisciplina ociosa, um militante marcusiano do erotismo.”
Tantas frases escritas na primeira pessoa do singular, em forma de autorretrato, são um tesouro para qualquer biógrafo. E também na obra poética de Herberto Helder, sobretudo em prosa, há uma escrita do eu, certamente com pendor autobiográfico. Um exemplo entre muitos, saído de um conto/poema de um dos seus livros mais célebres, Os Passos em Volta: “Sou uma criatura devastada pelo egoísmo”, escrevia em Duas Pessoas. Mais: “Sou um porco. Estas mãos mexeram na merda.” “Não gosto de ninguém.”
No princípio, era a culpa
Ao longo desta muito aguardada biografia revela-se um homem instável, capaz do mais exacerbado estado de paixão e de momentos sombrios; confiante na qualidade da sua produção literária, grande prioridade da sua vida, e ao mesmo tempo inseguro, ao ponto de várias vezes, ciclicamente, declarar que iria deixar de escrever para sempre e que nada do que tinha escrito lhe agradava (Herberto Helder era conhecido pelo modo quase obsessivo e minucioso com que reescrevia e corrigia a sua obra). De onde vinha tanta inquietação e instabilidade?
Há respostas que podem vir dos primeiros anos de vida. De certo modo, há uma espécie de maldição que vem da infância na Madeira, acontecimentos funestos que marcam toda uma existência, impossíveis de apagar.
Herberto Helder nasceu no dia 23 de novembro de 1930, um domingo, no Funchal, ilha da Madeira. Seria registado como Herberto Elder de Oliveira, e só a partir da adolescência passou a acrescentar um agá ao segundo nome próprio. O seu pai, filho de um tanoeiro, era Romano Carlos de Oliveira, que se tornaria uma figura respeitada na burguesia funchalense, com uma vida dedicada ao comércio. A sua mãe era Maria Ester Luís Bernardes. O casal teve duas filhas: Maria Regina Gisela, nascida em 1923, e Maria Elora, três anos depois, irmãs mais velhas de Herberto. Ter um rapaz era um desejo antigo de Maria Ester, mas o nascimento desse menino a que chamariam Herberto Elder foi um ato de desafio e rebeldia. Os médicos avisaram que ela correria risco de vida se engravidasse uma terceira vez. Maria Ester insistiu e teve o seu sonhado menino.
Sempre que a mãe, de frágil saúde, piorava ou apresentava sintomas de doença, o nascimento de Herberto era visto como causador desses padecimentos. E isso era algo que ele não ignorava quando foi ganhando consciência de si, ouvindo as irmãs, o pai e outros familiares (também a avó materna Matilde vivia com eles). A relação com a mãe foi breve, mas forte e intensa. Ela lia-lhe histórias e poemas e gostava de os comentar com o curioso rapazinho. Tinha, ainda, um estranho hábito: Maria Ester escrevia cartas para si própria, que enviava pelo correio, recebia e lia. Certo é que a relação entre filho e mãe era muito próxima, ao ponto de ele faltar à escola com a cumplicidade da mãe e às escondidas do pai, até chegar violenta e abruptamente ao fim. Herberto tinha apenas oito anos quando a sua mãe, em abril de 1939, morreu em casa, não resistindo mais aos seus problemas de saúde. Os tais que supostamente tinham sido causados pelo nascimento do terceiro filho. Como lidar, ao longo da vida, com um tal sentimento de culpa? E como é que ele se forma numa criança de oito anos, que, de repente, se sente perdida no mundo, na ilha?
Entre os textos inéditos de Herberto Helder, João Pedro George encontrou esta passagem: “Apenas sussurrada crónica de família dizia que eu fora filho do erro, macho querido desde o princípio tendo vindo sempre fêmeas, duas, e aos médicos que aconselhavam não impor a paixão materna de mais uma gravidez, e sim, agora fora um filho, mas a mãe, já abalada, não morrera logo não. Desfuncionava agora em tudo e foi morrendo durante oito anos. E eu fui crescendo com a morte dela que também ia crescendo. Quando eu morrer não os deixes enterrar-me sem me cortarem as veias dos pulsos, tens de jurar, não os deixes, quero a tua palavra, quero ter agora a certeza de que não serei enterrada viva. Este senhor, que em tempos foi caoticamente intenso, sou eu agora.” Parece quase uma mitológica tragédia grega.
A quinta edição de Encontros Para Além da História decorre em torno da obra de Herberto Helder
Para piorar a situação, a relação com o pai começou logo aí a deteriorar-se (mas o pequeno e franzino Herberto seria, por alguns anos, mimado pelas irmãs mais velhas, em esforço maternal). Romano Carlos apressou-se a mudar de casa, para grande desgosto do filho, e não demorou muito a arranjar outra companheira, com quem se casou em 1941, uma madrasta que Herberto rejeitou, o que só aumentava a irritação e as zangas do pai. O afastamento parecia inevitável, e aconteceu mesmo ao longo da vida; mesmo quando muitos anos depois o pai, então a residir no Brasil, onde moravam as duas irmãs de Herberto Helder, tentou uma reaproximação, depois de perceber que o filho se tinha tornado numa prestigiada figura das letras em Portugal. A desilusão e o gradual corte com o filho acentuou-se quando Romano Carlos, respeitado homem de negócios no Funchal, percebeu que o seu único filho não estava, afinal, a cursar direito em Coimbra, como ele imaginava, e tinha optado por uma vida boémia alimentando a ambição de ser poeta… Herberto Helder esteve inscrito no curso de Ciências Pedagógicas, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e, depois, em Filologia Românica, na mesma faculdade. Não avançou muito em nenhum dos cursos e nunca completou uma licenciatura, criticando várias vezes, ao longo da vida, o academismo e o Ensino Superior tal como o conheceu. “Tive 23 desempregos”, diria. Foi funcionário das bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian, foi um relapso delegado de propaganda médica, angariador de publicidade, trabalhou em forjas de metal, guiou marinheiros chegados ao porto de Antuérpia às casas de prostituição… Nunca ficou muito tempo em cada “desemprego”, aceitava-os por necessidade urgente. “Os empregos dele eram só para o desenrasca”, contou Olga Lima, viúva do poeta, com quem casou em 1973, ao biógrafo. “Quando estava muito aflito, aceitava um emprego, estava dois, três meses para pôr as continhas mais ou menos em ordem. Depois, quando recebia o dinheiro, escapava-se. Era preguiçoso? Não. O número de títulos que ele tem mostra que ele não era preguiçoso. Agora, ele não queria um trabalho convencional e sistemático como as outras pessoas.”
“Uma libido hiperativa”
O amor, as mulheres, o erotismo e o sexo e, claro, o discurso poético, a palavra, parecem ser o núcleo central da vida e obra de Herberto Helder. Os seus mais atentos leitores e admiradores sabem-no. E é mesmo por isso que algumas das passagens mais surpreendentes desta biografia, e que mais podem chocar sobretudo as muitas leitoras apaixonadas, são aquelas que nos dão acesso a um Herberto misógino e machista com declarações (em cartas privadas…) que se fossem ditas hoje, publicamente, seriam motivo para críticas ferozes e cancelamentos. Exemplos? Ainda muito jovem, escrevia assim a um amigo na Madeira que tinha conseguido comprar um carro: “Um carro é um animal, uma nesga somente abaixo na escala da tentação – da mulher. Um carro é uma mulher bonita em metal. Mas é necessário não se lhe entregar demasiado, tal qual como à mulher.” E já adulto, dirigia-se assim ao amigo Eurico Sousa, num momento em que estava interessado na sua irmã, Alice: “Você é um homem, e um homem é um ser poderoso. A mulher é sempre uma criatura pobre. A sua força provém de qualidades negativas, dos poderes da fragilidade, da sujeição, da ternura. Julga que um ser, assim organizado, poderá resistir ao abandono, à entrega a si próprio que é fundamentalmente a solidão?” É precisamente Alice Sousa, uma das primeiras grandes paixões do poeta, que conta, a páginas tantas: “O Helder escreveu-me uma carta onde essa faceta aparecia, mais ou menos: ‘A mulher deveria sempre acatar as recomendações do marido.’ Em resposta, escrevi-lhe: ‘Sim, deve acatar se forem recomendações razoáveis, lógicas, caso contrário, não.’ Mas, segundo ele, mesmo que fossem ilógicas, a mulher devia acatar. Ele não conseguiu superar essas convenções.
“Penso no amor, mas o amor num sentido muito profundo. Enquanto não aparece, vou enchendo a solidão de prostitutas e literatura. Impuro na vida, vou sendo puro noutros planos”, escrevia Herberto Helder, em 1957, ao amigo Eurico de Sousa
”Além de frequentar prostitutas em várias fases da vida (a proximidade era tanta que, quando era estudante em Coimbra, chegou a ficar instalado num bordel numas férias de Natal em que decidiu não ir à Madeira, e anos depois também seria acolhido num bordel em Antuérpia), Herberto Helder teve inúmeros casos e affairs, muitos deles depois do casamento com Olga Lima, respeitando (quase sempre…) o acordo que tinha com a mulher: ela não queria saber desses casos por terceiros. Os amigos recordam essa faceta do poeta. “Havia uma característica estranha nele, que era a desenvoltura com que contava as suas peripécias sexuais. Era algo que não se ajustava a essa faceta misteriosa. Falava de sexo como se estivesse a discutir o preço das batatas” contou ao biógrafo o tradutor Aníbal Fernandes, amigo do poeta ao longo de décadas. E, mais à frente, também nas palavras de Aníbal: “Gostava dos amigos, mas principalmente das mulheres dos amigos. Uma vez, depois de ter estado com o Manuel Alegre, só me falava da mulher do Alegre, quando me falava do [Augusto] Abelaira, falava-me só da mulher do Abelaira, quando era o Carlos de Oliveira falava-me da mulher do Carlos Oliveira.”
Olga Lima, a mulher ao longo de mais de 40 anos, di-lo com toda a clareza, no seu estilo frontal e sem meias-tintas: “Muitas mulheres, muitas admiradoras teve aquele cabrão. Dava-me cabo da cabeça com as admiradoras dele. Acho que o Herberto tinha uma tesão por mulheres um bocado doentia, devia ter uma libido hiperativa. (…) O Herberto era assim, se uma saia lhe fizesse frufru, ele estava sempre pronto.”
Muitas decisões e viragens no seu percurso estiveram relacionadas com relacionamentos com mulheres. Como quando viajou para Paris e depois para a Bélgica, onde vadiou, trabalhou e sobreviveu com dificuldades. Tinha-se casado, em 1958, com Maria Ludovina, de quem teve uma filha, Gisela (em homenagem à irmã), mas mantendo uma relação com Alice Sousa, e vendo-se perseguido pela sogra, decidiu dar um salto para a Europa (de que resultaram, aliás, vários textos poéticos).
O outro filho de Herberto, Daniel Oliveira (o conhecido comentador, com óbvias parecenças físicas com o pai) nasceria em julho de 1969, do relacionamento com Isabel Figueiredo. Nos dois casos, nunca foi um pai muito presente.
“Uma intoxicação ideológica”
Num momento em que os bons costumes tinham força de lei, também teve a PIDE à perna por várias vezes. Mas eram as suspeitas de comunismo e más companhias que mais vezes o colocaram no caminho da polícia política do Estado Novo. Nesse aspeto, Se eu Quisesse, Enlouquecia revela-nos um homem livre e sem compromissos partidários nem convicções políticas muito claras e profundas. Detestava a corrente neorrealista que, a certa altura, dominava a vida literária nacional ligada a uma oposição comunista. E dizia, mesmo: “Eu atiro-me para a poesia com a mesma convicção com que vocês vão para a clandestinidade.” Escreve João Pedro George: “Os posicionamentos ideológicos de Herberto não eram reconhecíveis nem à primeira, nem à segunda, nem à terceira vista. Produziam até uma certa estranheza.” Em 1965, o poeta colaborou, com uma tradução, numa revista declaradamente de extrema-direita, a Sulco. Mas também é verdade que chegou a inscrever-se no Partido Comunista Português (ver entrada sobre Saramago na caixa H.H. e os Outros), onde resistiu poucos meses.
Em março de 1975, em pleno fervor revolucionário nacional, analisava assim a situação em carta dirigida a Maria Lúcia Dal Farra: “Este desejo de paz e segurança favorece perigosamente o projeto das direitas. A verdade é que os militares e os partidos políticos da esquerda não têm sabido resolver, sequer, abordar, com alguma eficácia os problemas concretos postos. Há uma intoxicação ideológica que impede a visão objetiva das coisas. Grandes contradições, programas irrealistas, vontades frenéticas de poder. E agora, com a campanha eleitoral, tudo irá decerto exacerbar-se. Estás a ver? Não me admiraria que uma direita implacável e vingativa viesse a tomar conta do País. A esquerda tem vindo a fazer cegamente por isso.” Os grandes poetas são sábios e visionários? Ou a História repete-se sempre, entre mitos e homens?
H.H. e os outros
O poeta tinha fama de eremita, mas, apesar de tímido, foi também muito sociável e cruzou-se com várias figuras do seu tempo. Alguns exemplos, saídos das páginas de Se Eu Quisesse, Enlouquecia
SOPHIA DE MELLO BREYNER “Nesta época, era já um grande leitor de poesia. O próprio dizia-o numa carta à poetisa Sophia de Mello Breyner, enviada de Santarém, em 5 de junho de 1962 (Herberto tinha 31 anos e estava a pouco mais de cinco meses de completar os 32): ‘A cada livro novo seu que leio, reata-se o antigo encantamento da minha primeira juventude, quando descobri a sua poesia. Nunca lhe contei? Uma tarde, na ilha da Madeira, tinha eu a idade maravilhosa que já não sei, descobri numa livraria a sua Poesia. E foi um dos mais belos encontros da minha vida. Não há aqui literatura: tudo isto é verdadeiro.’”
LOURDES CASTRO “Depois de um Natal passado na Madeira, Manuel Rosa [editor na Assírio & Alvim], na véspera de regressar ao continente, recebeu das mãos de Lourdes Castro algumas plantas e frutos (pitangas, anonas, etc.) que ela colhera no jardim de casa, alguns deles para que oferecesse a Herberto. Quando abriu a caixa com as pitangas, começou por cheirá-las e, de imediato, deflagrou nele um movimento regressivo, uma nostalgia proustiana. Quando Olga, a mulher, se aproximou para ver os frutos, Herberto, que desde a infância provavelmente nunca mais os provara, afastou a caixa: ‘Não! Ninguém mexe!’”
[Herberto Helder e a artista plástica Lourdes Castro nasceram no Funchal no mesmo ano, 1930. Chegaram a ser colegas de turma, e quando eram crianças as suas famílias passavam férias no mesmo local madeirense, o Monte, e ao longo da vida nunca se perderam de vista]
MANUEL ALEGRE “Nessa altura [1958], Herberto voltara a Coimbra, como disse Manuel Alegre, que o acolheu em sua casa: ‘Ele tinha chegado a Coimbra debilitado. Contava as suas deambulações pelas ruas de Lisboa, as noites dormidas nos bancos dos jardins, por vezes em albergues, os dias sem comer e a beber água das fontes. Contava com um certo deleite, como se falasse de uma espécie de iniciação. Tinha cortado com os estudos e o pai deixara de lhe enviar a mesada. Vinha um bocado em baixo, minha avó e minha mãe engraçaram com ele e obrigaram-no a comer. Passámos o tempo a falar de poesia e a ler poemas um ao outro.’”
JOSÉ SARAMAGO “Olga diz que ‘inscrever-se no PCP foi daquelas gracinhas que o Herberto gostava de fazer. Para saber como era aquilo por dentro, ele gostava de conhecer as coisas por dentro, não tinha nada a ver com elas, mas gostava de conhecer. E gostava do Manuel Gusmão, que estava lá. Mas o Herberto inscreveu-se no PCP depois de muitos terem saído do partido após terem visitado a URSS. Depois de terem visto como era o Sol da Terra, perceberam que aquilo era um filme de terror. Portanto, quando todos os intelectuais estavam a sair do Partido Comunista, à boa maneira do Herberto, entrou ele. Eu pus as mãos na cabeça. Passados dois ou três meses, disse-me: ‘Vou-te dar uma alegria. Pões isto no correio?’, ‘O que é isto?’, perguntei. ‘Vou devolver o meu cartão ao PCP’, ‘Deixaste!?’, ‘Deixei.’ A atividade dele era ir uma ou duas vezes por semana ao Hotel Vitória, na Avenida da Liberdade. Quando lhe perguntei o que ele ia lá fazer, disse-me que ficava a discutir literatura com o Saramago. Ficavam ali os dois a serrar presunto. Era essa a atividade política dele’. Herberto nunca pareceu ter tendências ideológicas ou partidárias muito vincadas.”
TOMÁS TAVEIRA “O Tomás Taveira costumava dizer que aprendeu tudo com o Herberto, mas depois, quando apareceram as cassetes de vídeo, eu dizia ao Herberto, a gozar com ele: ‘Também lhe deves ter ensinado as poucas-vergonhas.’ ‘Lá estás tu com as tuas coisas’, dizia-me ele. Mas eram sobretudo as mulheres que o assediavam. Estava sempre a receber cartas de doutoras. ‘Ó Herberto, não me tragas cá a Faculdade de Letras’, dizia-lhe eu.”
[Citação de Olga Lima, viúva de Herberto Helder, com quem casou em 1973. O poeta conheceu o arquiteto Tomás Taveira, em Santarém, em 1961, e até chegaram a colaborar no projeto de uma loja de discos da Valentim de Carvalho, em Cascais.]
Cinco livros marcantes
Herberto Helder tinha uma abordagem perfeccionista à sua poesia e ao modo como era editada, sem reimpressões. Alguns dos seus livros são hoje preciosidades difíceis de encontrar e que podem atingir preços muito altos nos alfarrabistas
O Amor em Visita Contraponto, 1958
Depois de ter tido vários poemas publicados em revistas literárias, quase todas efémeras, e de já ter dado nas vistas no meio restrito da poesia portuguesa (António Ramos Rosa foi o primeiro a reconhecer publicamente o seu génio), esta é a estreia em livro de Herberto Helder. Luiz Pacheco, sempre atento a novos autores, foi o editor, na sua Contraponto. O título é uma referência direta a um texto do francês Alfred Jarry (L’Amour en Visites). Está aqui um dos seus poemas mais célebres. Aquele que começa assim: “Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue. Com ela/ encantarei a noite.”
Os Passos em Volta Portugália, 1963
Não sendo menos poético, é o primeiro livro em prosa de Herberto Helder, e um dos mais celebrados da sua bibliografia, com vários contos, muitos com pendor surrealista, mas também com um marcado cariz autobiográfico. A sua deriva por Paris, Bruxelas e Antuérpia, no fim dos anos 50, está aqui presente em vários textos. “Uma daquelas obras que toda a gente que gosta de literatura deveria ler”, escreve João Pedro George em Se Eu Quisesse, Enlouquecia. “É um livro de uma indiscutível singularidade estética e estilística.” A partir da terceira edição (na Editorial Estampa), Os Passos em Volta passou a contar com mais cinco contos em relação à primeira.
Cobra & Etc, 1977
Não sendo uma das mais (re)conhecidas obras do autor, é o primeiro livro de Herberto Helder na editora de Vítor Silva Tavares, a histórica & Etc, fundada em 1974. Era apresentado como um “opúsculo, com um mínimo de circulação comercial”. Em carta ao poeta Gastão Cruz, o seu autor descrevia o que aqui tinha procurado fazer: “Uma espécie de ‘carnificina da escrita’, o que não ser confundido com ‘prosaísmo.’ Antes alguma coisa como um estilo canhestro, desajeitado, grosso, e ao mesmo tempo rebarbativo.” E terminava essa missiva bem ao estilo herbertiano: “Nesta perspetiva, estes textos não me dececionam. Não me agradam, claro, mas isso não posso pretender: nada do que fiz me agrada.”
Aqui, o poeta recupera o título da primeira coletânea de poemas seus (publicada em 1967, na Portugália). É uma excelente porta de entrada no universo de Herberto, contendo os poemas escritos (e, muitas vezes, reescritos) até A Faca Não Corta o Fogo – Súmula e Inédita (2008).
Poemas Canhotos Porto Editora, 2015
Publicado já depois da morte de Herberto Helder, é o seu derradeiro livro com novos poemas. Um ano antes, tinha surpreendido muita gente com a transferência da Assírio & Alvim, onde editava desde o fim dos anos 70, para a Porto Editora. Começava fazendo pensar na ilha onde nasceu – “a amada nas altas montanhas/ o amador ao rés das águas” – e em certas páginas soava a despedida – por exemplo, aqui: “em boa verdade houve tempo em que tive uma ou duas artes poéticas/ agora não tenho nada (…)”.
António tem 21 anos e já é uma estrela internacional do ballet. Assim que terminou os estudos na Academia Annarella Sanchez, aos 18 anos, foi à Alemanha fazer audições para uma companhia de bailado chamada Bayerische Staatsballett.
A professora Annarella sugeriu que fizesse audições com a colega Margarita Fernandes, para mostrar que não era bom apenas a dançar sozinho, mas também a pares (ou pas de deux, como se diz no ballet). O diretor da companhia gostou tanto de os ver dançar que contratou ambos, apesar de António só ter 18 anos e Margarita 16!
Margarita Fernandes e António Casalinho dançam juntos desde os 12 anos, por isso conhecem-se bem. Foto: José Oliveira
“Cumpri um sonho. Mas claro que não se trata só de sorte, é o resultado de muito trabalho”, diz-nos António. Margarita nem queria acreditar, e ri-se ao recordar aquele dia: “Como o diretor só falava inglês, pensei que ele não tinha percebido que eu tinha só 16 anos. Só acreditei quando me deram o contrato, mas aí pensei que os meus pais talvez não me deixassem ir por ser tão nova.”
Mas foram e, nos últimos quatro anos, protagonizaram vários bailados e encantaram o público com o seu talento e a sua cumplicidade. Até que, em novembro de 2024, António recebeu mais um “presente”: foi nomeado primeiro solista, ou seja, o bailarino que interpreta os papéis principais nos bailados da companhia.
“Foi o reconhecimento do meu trabalho, mas também uma grande responsabilidade.”António não ficou por aí e no final de abril anunciou que vai trabalhar para outra companhia, desta vez na Wiener Staatsballett, em Viena de Áustria.
E Margarita vai com ele. Os dois são namorados e gostam muito de dançar juntos. “Mais importante do que sermos namorados é conhecermo-nos há muito tempo, por isso, é muito confortável trabalhar com a Margarita.”
Uma cena de Coppélia ou a Rapariga dos Olhos de Esmalte, no Teatro Camões
No mês passado, os dois regressaram a Portugal para um espetáculo muito especial. Convidados pela Companhia Nacional de Bailado, vieram dançar Coppélia ou a Rapariga dos Olhos de Esmalte. Os espetáculos no Teatro Camões, em Lisboa, foram uma grande alegria para António, que teve a oportunidade de dançar pela primeira vez com a companhia portuguesa.
Com o amigo Francisco (Kiko) Gomes, quando estudavam na Academia de Annarella Sanchez, em 2016. Foto: José Oliveira
É ali que estão alguns dos seus melhores amigos de infância, com quem estudou em Leiria, como Francisco Gomes (Kiko), Emma Sicilia e Núria Fernandes. “Foi estranhamente familiar, porque além de antigos colegas de escola, reencontrei outros bailarinos com quem me cruzei ao longo dos anos em várias competições. Senti-me muito feliz.”
Vida saudável
Ser um excelente bailarino implica talento, mas também trabalho e cuidado com a saúde e a alimentação. “É como os atletas: não comemos muitos açúcares, mas comemos muitas proteínas para recuperarmos do esforço. Para manter o corpo saudável, fazemos fisioterapia, Pilates e musculação. E temos de dormir bem.”
E ainda…
António tem 21 anos
Começou a dançar aos 8 anos
Em 2017, venceu o Got Talent Portugal, o programa da RTP1. Tinha 13 anos
Ganhou vários prémios internacionais
Os seus bailarinos preferidos são Mikhail Baryshnikov e Rolando Sarabia
Quando foi capa da VISÃO Júnior, em 2016
É isso mesmo: o Zoo Santo Inácio, em Vila Nova de Gaia, está de parabéns, assim como os seus habitantes, animais de cerca de 150 espécies diferentes, dos felinos aos anfíbios, passando por aves tropicais ou pelos carismáticos macacos- aranha.
Aliás, dois dos macacos-aranha que podes conhecer vivem no zoo desde a sua abertura, são os mais antigos “inquilinos” deste parque. Entre os mais recentes, encontram-se os pandas-vermelhos. Mas há tantos outros animais para descobrir: cangurus, zebras, girafas, serpentes, capivaras, pinguins…
Os curiosos macacos-aranha prendem a atenção dos visitantes
A VISÃO Júnior visitou este zoo e ficou a conhecer, não só os animais, mas as pessoas que ali trabalham. Por exemplo, sabias que as girafas, por serem originárias de regiões quentes, quando está frio, são levadas para um espaço interior onde a temperatura é mais amena, de forma a sentirem-se confortáveis?
Mas há mais para descobrir. Como são tratados os animais, o que comem, como são planeados os seus habitats: contamos-te tudo na edição de maio da tua revista preferida!
Quase de certeza que já leste uma obra de Luísa, ou leste nos manuais da escola excertos dos seus textos e poemas. Por outro lado, a escritora gosta muito de visitar escolas por todo o País e de conhecer os seus leitores, pelo que também já te podes ter cruzado com ela.
Cada Macaco no Seu Galho, Meninos de Todas as Cores, Aventuras do Zé Peninha e O Rapaz do Nariz Comprido são alguns dos mais de duzentos livros que já escreveu. Diogo quis saber onde vai desencantar tantas histórias.
Quando começou a escrever?
Foi aos 10 anos, comecei a escrever poesias. Tive uma professora que era mesmo fantástica, porque fazia de cada aula de Português uma festa, e nós começávamos a adorar os sons das palavras.
Ela fazia-nos representar os textos e declamar poesia e resolveu publicar alguns dos meus poemas no jornal da minha escola, o Liceu Francês. E eu, claro, fiquei um bocadinho contente.
Mais tarde, aos 13 anos, comecei a escrever pequenos contos, mas como medida de autodefesa, porque eu tinha um irmão mais novo que era diabólico, portava-se muito mal. Gostava de fazer de mim um cavalo e dizia: “Galopa, cavalo!”
Comecei então a inventar histórias com os seus heróis preferidos e algum humor à mistura. Ele gostou tanto que me dizia: “Se eu me portar bem, amanhã contas-me outra?” E foi assim que inventei muitas histórias, mas essas nunca as escrevi.
Era boa aluna a Português?
Era, sim, mas nada de excecional.
Onde se inspira para escrever as suas histórias?
Em tudo, até me posso inspirar agora em ti e nos teus bonitos caracóis e transformar-te numa personagem! Tenho, por exemplo, um poema chamado A Menina Feia [do livro Os Poemas da Mentira e da Verdade], inspirado numa menina que conheci numa visita a uma escola. Ela era vítima de bullying porque era careca, tinha um olho desfigurado e várias cicatrizes.
No intervalo, fui falar com ela e pedi-lhe para me contar a sua história. Ela contou então que vivia num bairro de lata, que a casa da sua família tinha ardido e os pais e os irmãos tinham morrido no incêndio. Mas a menina tinha uma voz tão bonita e doce, e um sorriso tão contagiante, que pensei que tinha de escrever um poema sobre ela.
Quais são os temas sobre os quais gosta mais de escrever?
Gosto é de variar, porque a monotonia aborrece-me! Gosto de escrever tanto sobre assuntos reais como fantasiosos e gosto imenso da tradição oral da língua portuguesa. Quando trabalhava na Biblioteca Nacional, durante sete anos consultei muitos livros de lengalengas, trava-línguas, anedotas, adivinhas e contos tradicionais. Recolhi tantos, que decidi escolher os mais apropriados para crianças e propus à editora Livros Horizonte publicá-los.
Foi o livro que demorou mais tempo a escrever?
Sim, foram sete anos de investigação. E o livro que escrevi em menos tempo demorou apenas duas horas, porque me saiu da imaginação. Chama-se Mãe, Querida Mãe. Fala da mãe-formiga, que é aquela que está sempre a trabalhar; a mãe-pata, que leva os filhos todos atrás; a mãe-leoa, que os defende com unhas e dentes; a mãe-foca, que está sempre a dizer “Vai tomar banho!”; a mãe-águia, que ensina os filhos a voar… Qual é o tipo da tua mãe, Diogo?
Sinceramente, é uma mãe-águia, que nos ensina a voar e nos dá autonomia para aprender. Tenho muito orgulho nela.
E fazes muito bem!
Luísa, dos livros que escreveu, qual é o seu preferido?
Isso é que não sei responder, porque, quando os começo a escrever, não sei o que vai sair dali e, quando os acabo, ponho-lhes todos os defeitos. [Risos.]
Porque é que escreve livros para crianças?
O primeiro livro que escrevi era para adultos, mas um dia, não sei porquê, decidi escrever um para crianças. Era A História da Papoila (Editorial Estúdios Cor, 1972), a minha flor preferida, símbolo da alegria e da espontaneidade.
A História da Papoila, o primeiro livro editado por Luísa Ducla Soares
Como não estava muito mal, fui a uma editora mostrá-lo. Quem estava na editora era o José Saramago, ainda pouco conhecido naquela altura. Disse-me para deixar o livro e voltar daí a um mês. Quando lá voltei, disse que tinha gostado muito e que o iam publicar rapidamente.
Para meu espanto, quiseram depois atribuir-lhe o maior prémio de literatura infantil daquela época, o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho. Ora, eu que costumava escrever muitos contos para o jornal Diário Popular, numa secção chamada Doutor Sabichão, pus-me a pensar: “Então eles [a Censura] cortam-me os contos no jornal e agora querem dar-me um prémio? Então expliquei que não aceitava o tal prémio.
O dono da editora ficou furioso, mas o Saramago disse: “Ó Luísa, faz muito bem, e para o ano quero que nos escreva seis livros!” E eu, que pensava que iria escrever para adultos, escrevi os seis, entusiasmei-me e continuei.
Prefere escrever à mão ou no computador?
Margot, a gata que gosta de poesia
Comecei por escrever tudo a lápis, porque gosto de apagar as palavras e não gosto de ver um texto todo riscado. Agora estou a ficar viciada no computador, mas poesia ainda escrevo à mão. Aliás, devo ser a única pessoa que escreve poesia em cima de uma gata.
A Margot gosta de se sentar no meu colo e eu, para não a afastar, comecei a pôr o caderno em cima dela. E não é que a gata gosta?
Costuma ler os livros que escreve?
Geralmente, não. Passo só os olhos quando estão prontos. Sabes quantos já escrevi? Mais de duzentos! Com tantos livros bons para ler, ia agora perder tempo a ler os meus! [Risos.]
Além de escritora, que outras profissões teve?
Quando estudava na faculdade, fazia traduções para ganhar algum dinheiro; fui consultora em algumas editoras; estive na direção de uma revista chamada Vida; trabalhei num jornal médico durante dez anos; depois estive no Ministério da Educação e trabalhei durante 30 anos na Biblioteca Nacional. Quando me reformei, comecei a andar em visitas pelas escolas por todo o País.
Para terminar, diga-me: para sermos bons escritores, em que é que temos de ser bons?
Essa é uma grande pergunta… E difícil de responder. Mas penso que o principal é amar a língua em que se escreve, senti-la e dominá-la. Imaginação também faz falta, e claro que ajuda ler outros escritores. Além disso, é preciso ter sensibilidade e os olhos abertos para o mundo, não só para o que se passa à nossa volta, mas também dentro de nós.
Diogo ficou a conhecer algumas das peripécias vividas pela escritora, que lhe disse que talvez um dia se inspire nos seus caracóis para uma nova personagem de um livro
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Vamos rir Anedotas e adivinhas que te vão fazer rir à gargalhada
Acordamos com o coração acelerado, a mente cheia de tarefas por cumprir e a sensação de que o tempo não chega para tudo. A ansiedade instala-se de forma subtil e vai-nos ocupando por dentro – sem pedir licença.
Todos temos dias difíceis. Mas quando a ansiedade se torna rotina, o corpo e a mente começam a dar sinais. O problema é que, muitas vezes, ignoramos esses sinais porque achamos que “não é nada”. Só que é. E quanto mais cedo cuidarmos dela, mais leve se torna a vida.
Newsletter
A boa notícia? Cuidar da ansiedade não tem de ser um processo demorado ou complexo. Às vezes, bastam pequenas ações – microdesafios – que, repetidos diariamente, ajudam-nos a recuperar a sensação de controlo.
O que são microdesafios e como funcionam?
Na prática, são pequenas atividades com intenção. Segundo a neurociência, o cérebro responde muito bem a ações curtas e repetidas que envolvam foco, segurança e bem-estar. Ao darmos pequenas pausas intencionais à mente, ensinamo-la a sair do piloto automático e a entrar no presente.
O segredo está na consistência, não na duração.
5 Microdesafios para Começar Já
1. Respirar para reiniciar Durante 1 minuto, inspire pelo nariz em 4 tempos, segura 2, expira pela boca em 6. Repete. É o atalho biológico para sair do modo “stress” e entrar em modo “presente”.
2. Dizer um “não” consciente por dia Aprender a colocar limites reduz a sobrecarga e melhora o foco. Pôr limites é como pôr protetor solar: no início parece opcional, mas depois percebe-se que salva a pele. Por isso, afirme mais vezes: “Não, hoje não vou responder a e-mails depois das 19h.”
3. 20 minutos longe de ecrãs Afasta-te dos dispositivos e foque-se num estímulo real: ouvir uma música, olhar pela janela, conversar com um amigo ou vizinho. A exposição contínua a estímulos digitais aumenta a tensão e o cansaço cerebral.
4. Criar uma âncora Escolha uma palavra que lhe traga segurança (“agora”, “foco”, “força” “apressadamente”) e repita-a mentalmente nos momentos de maior ansiedade. A repetição ativa o córtex pré-frontal e ajuda na regulação emocional.
5. Tarefa mínima com propósito Quando tudo parece demasiado, escolha uma só tarefa concreta e termina-a. A sensação de conclusão liberta dopamina e reforça a autoconfiança.
A mente não precisa de grandes soluções. Precisa de pequenos gestos com intenção.
Estes microdesafios não substituem terapia, mas podem ser o primeiro passo para reconstruir a sua autorregulação emocional.
E isso tem um impacto real e duradouro.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
No dia em que acordou da cirurgia de reconstrução mamária pós-mastectomia, Cláudia Kieffer sentiu-se bem como nunca. “Foi como se uma brisa de primavera tivesse soprado na minha cabeça e limpado todo o lixo que se acumulara durante anos”, contou ao Guardian.
E não era apenas por estar prestes a recuperar a sua autoestima. “Quando se sofre de depressão durante tanto tempo como eu, parece que estamos a afogar-nos”, comparou a norte-americana. “Por isso, ao aparecer algo que nos faz sentir muito diferentes e saudáveis, queremos saber que droga é essa.”
O ano era 2011 e Claudia acabara de se encontrar por acaso com a cetamina, um conhecido anestésico, com propriedades psicadélicas, que por aquela altura andava a ser testado em cada vez mais ensaios clínicos por causa dos seus efeitos antidepressivos.
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No currículo, ela trazia três colapsos nervosos e outros tantos internamentos, uma dúzia de sessões de choques elétricos (terapia eletroconvulsiva) e muitos anos de automedicação. Já tentara todos os tratamentos disponíveis e pensava em suicidar-se todos os dias.
Claudia não descansou, por isso, até ser incluída num desses ensaios, passando mais tarde a receber infusões de cetamina uma vez por mês. Oito anos depois, ficava naturalmente feliz ao ver a Food and Drug Administration (FDA) aprovar o Spravato – um spray nasal com escetamina, que é uma forma de cetamina de ação rápida – como medicamento para a depressão.
“Agora tenho esperança”, dizia, então, a norte-americana ao Guardian. Além da facilidade em aceder ao novo tratamento, livrava-se do estigma de ter de recorrer a uma droga popular em festas e discotecas por provocar alucinações e experiências fora do corpo.
Milhares de euros
Há mais de três décadas que não havia uma novidade farmacêutica nesta área. A última tinha sido a fluoxetina, comercializada inicialmente como Prozac.
Março de 2019 entrou, por isso, para a História dos antidepressivos como o mês em que a agência norte-americana responsável pela regulação de fármacos autorizou finalmente um novo medicamento.
E o Spravato, da farmacêutica Janssen, apresentava bons resultados contra a depressão resistente, não era uma mera bravata.
Pouco depois, também a Agência Europeia de Medicamentos aprovou a sua utilização em caso de adultos com depressão grave, combinado com um antidepressivo convencional. E, logo no primeiro trimestre de 2020, vários países da UE avançaram com a comparticipação estatal.
Este componente da cetamina estimula áreas do cérebro ligadas às emoções, produzindo um efeito antidepressivo em poucas horas, em vez de demorar dias ou semanas
Era só uma questão de tempo até o spray nasal com escetamina chegar a Portugal, sabiam os médicos que logo em 2019 olharam com esperança para as notícias vindas do outro lado do Atlântico.
Mas foi preciso esperar até este mês de maio para o Infarmed autorizar o seu financiamento a 100%, especificando ser para uso em meio hospitalar e em adultos “com perturbação depressiva major resistente ao tratamento, que não responderam a pelo menos três tratamentos diferentes com antidepressivos”.
A luz verde da Autoridade Nacional para o Medicamento e Produtos de Saúde foi recebida como uma “excelente notícia para os doentes”, repete desde então Albino Oliveira-Maia, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, lembrando que o tratamento com Spravato era muito caro: “Correndo bem, podia chegar a várias dezenas de milhares de euros.”
A partir de agora, “a escetamina vai permitir tratar mais doentes, de uma forma equitativa, com maior rapidez e melhores resultados”, aplaude o também diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud.
O atraso de cinco anos em relação aos EUA e a tantos outros países explica-se pelo facto de o Infarmed repetir o processo de uma maneira muito rigorosa, sublinha o psiquiatra e investigador: “Temos um regulador com parâmetros técnicos de elevadíssima qualidade que aumentam as garantias do processo.”
Mudança radical
Percebe-se facilmente por que razão a comparticipação a 100% do Spravato é uma excelente notícia quando se pensa no problema que tenta resolver: a depressão refratária ou resistente ao tratamento.
Fala-se em depressão resistente quando a pessoa continua com sintomas apesar de ter sido tratada com dois medicamentos diferentes.
É uma situação clínica que preocupa os médicos porque existe evidência de que, depois de terem falhado dois medicamentos, a probabilidade de haver uma boa resposta a um terceiro é muito mais baixa.
“Ao segundo medicamento, um terço dos doentes vão ficar bem, mas, a partir do terceiro e para a frente, a probabilidade de uma remissão é apenas de 10% a 15%, ou seja, cai para metade”, faz notar Albino Oliveira-Maia.
Esses são os números dos antidepressivos convencionais. Depois, existem dois tratamentos não medicamentosos eficazes, mas de acesso difícil: a terapia eletroconvulsiva e a estimulação magnética craniana (ver caixa).
A primeira exige bloco operatório e a segunda uma máquina cara. “Os sistemas de saúde estão mal preparados para assegurar estes tratamentos”, lamenta o psiquiatra, “e, em paralelo, também devemos utilizar a psicoterapia, que é igualmente de difícil acesso”.
Já a escetamina apenas tem de ser administrada em ambiente clínico, sob supervisão médica, ficando o doente em observação durante cerca de duas horas após cada sessão.
Enquanto os chamados antidepressivos tradicionais atuam na bioquímica cerebral, interferindo em três neurotransmissores associados à sensação de bem-estar (serotonina, dopamina e noradrenalina), a escetamina atua sobre o glutamato, uma outra molécula da rede neural que estimula áreas do cérebro ligadas às emoções, produzindo um efeito antidepressivo em poucas horas.
Três décadas depois dos primeiros estudos sobre cetamina, liderados por John Krystal, psiquiatra chefe da Escola de Medicina de Yale, nos EUA, pode dizer-se que os psicadélicos vieram operar uma mudança radical no tratamento da depressão resistente.
Claudia sentiu isso mesmo na pele. Diz que a cetamina lhe devolveu a vida.
Terapias eficazes, mas de acesso difícil
Ambas visam modificar a atividade elétrica e química cerebral para tratar a depressão e outras doenças psiquiátricas
ELETROCONVULSO-TERAPIA Indicada para depressão grave com risco suicida, depressão com sintomas psicóticos, perturbação bipolar resistente, esquizofrenia refratária, entre outras.
Envolve estímulos elétricos controlados, sob anestesia geral curta e relaxante muscular.
Induz uma convulsão terapêutica que promove mudanças na atividadedos neurotransmissores, com a consequente melhoria rápida dos sintomas.
O protocolo padrão inclui 12 sessões de ciclo agudo.
Pode provocar perdade memória temporária.
ESTIMULAÇÃO MAGNÉTICA TRANSCRANIANA Indicada para depressão resistente, perturbação obsessivo-compulsiva (POC), tratamento de zumbidos, cessação tabágica, ansiedadee défice cognitivo ligeiro.
É um tratamento não invasivo que usa pulsos magnéticos para estimular repetidamente regiões delimitadas do cérebro, modulando a atividade cerebral e reduzindo os sintomas.
Na depressão estimula-se o córtex pré-frontal dorso lateral esquerdo e na POC estimula-se o córtex orbitofrontal.
O tratamento dura entre 20 e 30 sessões diárias ou bidiárias.
Pode provocar uma leve dor de cabeça nas primeiras sessões.
Diz-se que a melhor maneira de contar uma história é começar in media res. Do meio se compõe a tessitura dos acontecimentos, que se vão revelando, camada após camada, com fios entrecruzados, até se ver surgir o tecido completo de uma vida.
A história do economista de sucesso que abandonou tudo, o conforto, o dinheiro, a convivência prolongada com a família, para se dedicar à fotografia também pode iniciar-se nessa mina de ouro com que se abre o documentário O Sal da Terra, realizado por Wim Wenders e pelo filho do fotógrafo, Juliano Salgado. Wenders, que sempre teve uma fotografia de Salgado à secretária (o retrato de uma mulher cega, que mesmo assim nos fita com olhos de não ver), comprara, anos antes, uma cópia da imagem dos homens transformados, eles próprios, em terra, «pareciam esculpidos em barro», no fundo de uma mina a céu aberto. É que estas fotos de «homens-terra», formigueiro de gente, silhuetas ocre que sobem e descem em carreiros a acarretar torrões, em composições miniaturais, e ao mesmo tempo demoníacas, à Hieronymus Bosch, têm já qualquer coisa de genesíaco. De inicial. Apesar de a carreira de Sebastião Salgado, nessa fase, ainda só ir a meio (entre 1986 e 1992 percorreu 26 países para a sua série O Trabalho). Quando Salgado, nos anos 80, se aproximou da boca desta mina de ouro no Brasil, na Serra Pelada, no Pará, uma cratera maior do que um estádio de futebol, e ouviu todo aquele rumorejar de 50 mil vozes humanas, vindas das entranhas, a 70 metros de profundidade, e os ruídos secos das pás e picaretas, sem qualquer motor mecânico, teve esta mesma sensação de génese: viu, numa fração de segundo, conta no filme, a história do mundo, a construção das pirâmides, da Torre de Babel, as Minas do Rei Salomão.
Foto: Sebastião Salgado
Lentidão Mas estava muito longe de bater no fundo. Ali, «o gringo» (à época de barba e cabelo ruivo, impossível passar despercebido) viveu durante semanas com os mineiros. Sem mulheres num raio de 50 quilómetros, e uma violência latente. O trabalho era penoso, mas não eram escravos: «A não ser, talvez, da sua própria vontade de enriquecer», comentou a Isabelle Francq, no livro Da Minha Terra à Terra (lançado em Portugal em 2014, na editora Individual). Aliás, nesta mesma série dedicada ao trabalho, focada na produção em grande escala, em que procurou traçar «uma arqueologia visual» do que ainda restava da era industrial, de todos os trabalhos que testemunhou, em todos os continentes -desde a tecelagem no Bangladesh aos infernais po- ços petrolíferos em chamas no Koweit, o trabalho que mais o chocou encontrou-o nos EUA, num matadouro no Dakota, onde eram abatidos mil porcos por hora e duas mil vacas por dia: «Os trabalhadores repetiam incansavelmente o mesmo gesto sangrento, em salas sem janelas. O odor era insuportável. No primeiro dia, foi impossível tirar uma única fotografia, não parava de vomitar».
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Mas para perceber como Sebastião Salgado conseguiu chegar até às profundezas mais tenebrosas do planeta é preciso ir encontrá-lo menino, na fazenda dos pais, situada em Minas Gerais, num vale tão grande que cobria a dimensão de Portugal. Aí, o único rapaz de sete irmãs teve o seu primeiro ensinamento: o da luz e o da sombra. Tem a sensação de ter crescido com a contraluz, as palas dos chapéus, as sombras das árvores onde o colocavam para proteger a pele branca: «Nessa altura não havia protectores solares». «Essa luz, esses espaços são a minha história». A segunda lição foi a do espaço aberto: nadava em riachos cheios de jacarés, galopava a cavalo, saía de manhã e só regressava à noite, percorria sozinho distâncias equivalentes às de Paris a Lisboa. Só para transportar os animais da quinta ao matadouro, ele e o pai levavam mais de um mês, era comum para ele fazer 50 dias de estrada; habituou-se às transumâncias, e sobretudo à lentidão, ao tempo de espera para conversar e admirar a paisagem (terceira lição): «Essa lentidão é a mesma da fotografia». E acrescenta: «Se não se gosta de esperar, não se pode ser fotógrafo. É preciso descobrir o prazer da paciência». Com os homens, o tempo de chegar, de se apresentar, conversar, conhecer as pessoas, até se tornar parte da paisagem. Mas também os animais, conta, neste último seu projeto Génesis, em que, ao longo de oito anos, viajou pelos lugares ainda preservados do planeta. Até aqui só tinha fotografado uma única espécie: os humanos. Quando passou a fotografar animais, percebeu que era também essencial um pacto de respeito mútuo. No filme, vê-se a espera de Salgado, no Ártico, numa espécie de contentor de vigia, a aguardar que um urso branco lhe permita a passagem para uma comunidade de morsas. Ou, relata nesse livro, a vez em que levou um dia para se aproximar, nos Galápagos, de uma ancestral tartaruga de 200 quilos, que, quem sabe, até se cruzou com o próprio Darwin, na viagem do navio Beagle… De cada vez que se aproximava da tartaruga, ela afastava-se, não conseguia fotografá-la. Fez como com os humanos, nunca chegar de surpresa, ou incógnito; teria de travar também conhecimento com o monumental réptil: «Fiquei agachado e comecei a andar à mesma altura que ela, mãos e joelhos no chão. A tartaruga parou de fugir. Quando se deteve, fiz um movimento para trás, ela avançou na minha direção e dei eu mais uns passos atrás» o tempo necessário «para a fazer entender que respeitava o seu território». Em Génesis (ver caixa), Salgado não se comportou como zoólogo ou jornalista. Queria homenagear o planeta, constatar que, apesar de tudo, ele ainda está vivo. E a ideia surgiu após décadas a fotografar a crueldade e a loucura feroz mais extrema da humanidade, as catástrofes desnaturais, os 150 quilómetros de mortos no Ruanda, os campos de refugiados e fome em África, as atrocidades inimagináveis nos Balcãs. Voltou doente, nunca acreditou que pudesse reaparecer tanto ódio étnico e tamanha brutalidade na Europa, depois dos massacres e genocídios que presenciou em África.
Foto: Sebastião Salgado
Regressou à terra. Há sempre um regresso à terra. À sua terra de infância, onde dantes havia mata Atlântica que cobria metade do vale (o tal que era do tamanho de Portugal). A desflorestação descontrolada tornou-a feia, pobre, desolada. Ele e Lélia, sua mulher e sócia de sempre, criaram o Instituto Terra, projeto ambiental para repor o ecossistema, já com dois milhões de árvores plantadas. Foi daí que partiu a ideia de fotografar árvores, seixos, aves, os olhos dos gorilas, a mão de uma iguana como a de um soldado numa armadura medieval, as rugas de uma tartaruga do tempo de Darwin. Quase como se, ao fazer este outro trilho no seu percurso de fotógrafo, precisasse de uma desintoxicação, de uma limpeza por dentro. Encher-se de beleza, esperança e confiança depois de ter testemunhado tanta agrura, carência de quase tudo, mas também muita dignidade em sítios e circunstâncias onde ela se julgara impossível.
Uma forma de escrita universal Desde muito cedo, enquanto estudante de Direito (depois acabou por se doutorar em Economia), apercebeu-se de que o mundo está dividido em dois: «De um lado a liberdade para aqueles que têm tudo e do outro uma privação de tudo para aqueles que não têm nada».
A aproximação à «fotografia social» aconteceu-lhe como um prolongamento do seu envolvimento político e das suas origens. O que os escritores relatam com a caneta, ele retrata com as câmaras. Para ele, a fotografia é uma forma de escrita, talvez a mais universal, como a utopia do esperanto concretizada. Com a vantagem de poder ser lida em qualquer lado, sem tradução. O preto e branco é uma abstração, irreal: trata-se de reconstituir as suas emoções através das várias gamas de cinzento. Frações de segundo que contam a história de uma vida ou de um povo. «É uma paixão, porque amo a luz, mas também uma linguagem poderosíssima. Quando comecei, não tinha limites. Queria ir a todos os locais onde a minha curiosidade me levasse, onde a beleza me comovesse. Mas também a todos os locais onde houvesse injustiça social, para a descrever melhor».
O mais incrível é que um dos mais célebres e premiados fotógrafos do mundo pegou numa máquina fotográfica quase por acaso, e já adulto e casado. O pai queria-o fazendeiro ou estudante de Direito. Ingressou em Direito, acabou por terminar Economia. Eram os tempos do presidente Kubitschek, «o Brasil começava a despertar de um sono de 400 anos, tivemos a sensação de viver num país novo», e in teressava-lhe não a economia empresarial, mas a macroeconomia e as finanças públicas. O menino do interior vivia agora em São Paulo, onde integrava um grupo restrito de formação de altos quadros para fazer face às necessidades do país. Doutorou-se em Paris, já exilado, em fuga da ditadura militar pela sua militância ativista muito próxima dos partidos comunistas e de esquerda. Em Londres, arranjou um cargo internacional na Organização Internacional do Café. Começou a ganhar muito bem, o casal comprou um apartamento perto de Hyde Park, um magnífico carro desportivo. O trabalho de economista levava-o a África. Vinha de lá muito mais satisfeito com as suas fotografias do que com os relatórios económicos. Em África reencontrou-se com o Brasil que lhe estava interdito, e aos 29 anos desistiu da sua promissora carreira para se dedicar ao instável mundo da fotografia independente.
Foto: Sebastião Salgado
A importância de regressar Quando pegou pela primeira vez numa câmara, comprada pela mulher, estudante de arquitetura, teve de ler o manual de instruções para perceber como funcionava. O casal largou o apartamento, o carro, o salário e partiu para a zona do Níger, para as regiões onde as organizações internacionais combatiam a seca e a fome. Lélia estava grávida do primeiro de dois filhos Juliano, o corealizador do documentário. Foi duro, passaram por situações complicadas, «mas apaixonante, sentíamos que as nossas imagens podiam ser úteis». Ao fim de 40 incursões a África, em 30 anos, publicou o livro África (2007). Não lhe interessavam as paisagens, muito menos o foclore. Mas a fome, as migrações em massa. Sempre numa lógica de trabalho de longo prazo, em vez de saltitar de um tema para o outro. «A única forma de contar histórias é regressar ao mesmo local diversas vezes». Só os meses que passava com as pessoas, os percursos que palmilhava com elas, as noites em que dormia nos campos de refugiados, ou o acompanhamento a tempo inteiro do Movimento dos Sem Terra, davam coerência aos seus projetos. E é assim que procede há mais de 40 anos. Chegou a estar 18 meses no Mali, na Etiópia, no Chade, no Sudão. E as suas fotos são esmagadoras quando mostram vultos errantes nos campos onde se amontoavam 80 mil desterrados, ou a famosa imagem dos três bebés famélicos, envoltos, em que apenas pelos olhos opacos de um deles se pressente a morte. Os sete anos em que viajou pela América Latina parecem-lhe sete séculos: «Permitiu-me viajar através de culturas onde o tempo se desenrola ao ritmo do passado».
Por todo o seu percurso, por ter assistido de muito perto às gritantes injustiças sociais, por ter sido, também ele, um perseguido e exilado político, sente uma enorme alegria ao ver que os outrora torturados e presos, como Lula ou Dilma, estão agora no poder. Não se considera fotojornalista, nem ao serviço de uma militância. Rejeita a ideia de voyeurismo, apenas tem consciência do desequilíbrio mundial. «Todas as minhas fotos correspondem a momentos que vivi intensamente. Uma raiva dentro de mim levou-me àqueles locais». E não prega a objetividade: «Fotografo em função de mim mesmo e assumo-o». Geralmente fotografa as pessoas de frente, ninguém se furta às suas objetivas e tacitamente autorizam. Parte do seu trabalho prévio é dedicado a conhecer e falar com as gentes. «Nenhuma foto, por si só, pode mudar seja o que for na pobreza do mundo», admite no livro Da Minha Terra à Terra. Mas aliadas a textos e à ação das organizações humanitárias e ambientalistas, engrossa-se o vasto movimento de denúncia.