A China lançou o primeiro conjunto de satélites que irá constituir a Thousand Sails (Mil Velas, numa tradução para português), uma constelação que vai ter mais de 15 mil satélites em baixa órbita e que irá fornecer cobertura global de Internet. Se o conceito parece familiar, é porque é o mesmo que está a ser explorado pela Starlink de Elon Musk, assim como pela OneWeb, detida pela europeia Eutelsat.

As autoridades chinesas antevêem que a primeira fase só fique concluída em 2025, quando os 648 satéliltes do primeiro grupo estiverem no Espaço, noticia o canal chinês CCTV. No primeiro lançamento, um foguetão Long March 6A foi enviado a partir da província de Shanxi, tendo colocado 18 satélites em órbita, avança a Academia Chinesa de Ciências.

A decisão de criar uma constelação em nome próprio vinca a intenção de a China estabelecer alguma independência face aos Estados Unidos no que diz respeito à tecnologia. Recorde-se que em 2020 Pequim completou a rede BeiDou, um conjunto de satélites que forma um sistema de navegação global que rivaliza com o GPS.

Na sequência do tema da capa da última edição, e após ter questionado 10 músicos brasileiros sobre as razões que os levaram a trocar a terra natal pelo nosso país, o Jornal de Letras estendeu o questionário também às artes plásticas e performativas, conversando com Isa Toledo e Keli Freitas.

1. Porque escolheu viver em Portugal?

2. O que Portugal trouxe para a sua arte?

3. O que a sua arte trouxe a Portugal?

4. Acredita que Portugal pode ser um ponto privilegiado para intercâmbio de culturas, nomeadamente, no mundo lusófono?

Artes plásticas

Mirrors (2023) integrou a exposição Casa Commedia (2024), na galeria Miguel Nabinho

Isa Toledo

Ano e local de nascimento: São Paulo (1990)

Ano da chegada a Portugal: 2016

Mestre das palavras e da ironia, matérias-primas da sua prática artística, Isa Toledo é senhora de um sentido de humor refinado.

Através de vídeos, colagens, bordados, ilustrações, objetos do quotidiano que recolhe em mercados e feiras tradicionais, performances ou instalações, a artista “molda” as palavras qual ferreiro na bigorna.

Do sentido à fonética, a palavra escrita e falada dá origem a trocadilhos que sugerem reflexões, arrancando inevitavelmente sorrisos a quem com eles se depara.

Em 2015, um ano antes de chegar a Portugal, co-fundou o ButchCamp com o designer gráfico Rosen Eveleigh, um projeto de investigação centrado na estética contemporânea dos acampamentos, cujas entrevistas e artigos foram publicados pela Teen Vogue, Another Magazine, Dazed e Girls Like Us.

Em Portugal, onde atualmente é representada pela Galeria Miguel Nabinho, reside desde 2016, ano em que iniciou o mestrado em pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, após ter estudado ilustração no Camberwell College of Arts – Universidade de Artes de Londres, e de ter vivido também em Berlim.

Além de ilustrações para a Revista Electra e para dois livros da editora Sr. Teste, destacam-se duas exposições individuais – pick one card any card (2021) e Casa Commedia (2024) – ambas na Galeria Miguel Nabinho.

Assim respondeu ao nosso inquérito:

1. Como a minha família vivia toda dispersa, costumávamos voltar todos os anos para o Brasil. Em 2012, depois da morte da minha avó materna, passamos a nos encontrar sempre em Lisboa. Em 2016, depois de morar alguns anos em Berlim, onde achava um saco não falar alemão, vim viver aqui de vez.

2. O mestrado trouxe tempo e espaço, a Baixa trouxe carimbos e papelarias e cordões, o país trouxe interesses novos, tipo a lã, bons exemplos, tipo a Ana Jotta, e trouxe enfim um galerista, o Miguel Nabinho!

3. Lata.

4. Isso depende de como defines privilégio, intercâmbio e cultura. J

Artes performativas

Madrinhas de Guerra, o mais recente projeto de Keli Freitas, encerrou o ciclo Abril abriu do TNDM II

Keli Freitas

Ano e local de nascimento: Três Corações (1983)

Ano da chegada a Portugal: 2017

Com uma licenciatura em Letras pela Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e formada em Artes Cénicas pela CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), Keli Freitas tem ainda o mestrado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa.

Entre as suas criações, destacam-se Osmarina Pernambuco não consegue esquecer (2019), Adicionar um lugar ausente (2020), Fábrica de matar baleia (PANOS, 2022) e Outra Língua (2022). Trabalhou também como dramaturga com Tita Maravilha, no projecto Es tr3s irms, e com Gaya de Medeiros no projeto BaqUE.

Em 2024, venceu a 2.ª edição do Projeto CASA, iniciativa promovida pel’O Espaço do Tempo, A Oficina, e pelo Cineteatro Louletano, com Volta para a tua Terra, um projeto no qual, a partir da busca pela sua bisavó portuguesa, desafiou as ideias de imigração e pertença.

Kelly Freitas define-se ainda como “colecionadora de correspondência de pessoas anónimas”, que compra em feiras de antiguidades, a partir da qual, desde 2013, desenvolve trabalhos autorais.

O mais recente fruto de tal atividade foi o espetáculo Madrinhas de Guerra, em cena de 25 a 28 de julho no Amphiteatro Chimico do Museu de História Natural e da Ciência, em Lisboa, no âmbito do ciclo Abril Abriu, do Teatro Nacional D. Maria II, construído a partir da figura destas mulheres que se dispuseram a consolar soldados por correspondência, durante a guerra colonial portuguesa em África.

Assim respondeu ao nosso inquérito:

1. Cheguei a Portugal em 2017 para fazer um semestre de intercâmbio entre a minha Faculdade de Letras no Rio (pontifícia universidade católica do rio de janeiro – PUC – Rio) e a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). Também era uma das autoras do laboratório de escrita para teatro do TNDM II, coordenado pelo Rui Pina Coelho, na turma de 2017/2018.

2. A experiência de ser estrangeira dentro da minha própria língua.

3. Acho que isso só Portugal poderá dizer.

4. A presença e permanência de artistas estrangeiras é hoje parte essencial da produção e circulação de outros discursos dentro tecido artístico português.

Inquérito JL a 10 músicos brasileiros

1. Porque escolheu viver em Portugal?

2. O que Portugal trouxe para a sua arte?

3. O que a sua arte trouxe a Portugal?

4. Acredita que Portugal pode ser um ponto privilegiado para intercâmbio de culturas, nomeadamente, no mundo lusófono?

Mais do que partilhar uma língua

Couple Coffee (Luanda Cozetti e Norton Daiello)

Ano da chegada a Portugal: Agosto de 2005

Discografia: Puro (2004), Co’as Tamanquinhas do Zeca! (2007), Young and Lovely – 50 Anos de Bossa Nova – Ao Vivo no MusicBox Lisboa (2008), Quarto Grão (2010), Fausto Food (2017)

1. Eu tinha um convite para editar um disco em Portugal. Entre o convite e a vinda passaram-se dois anos, nos quais a vida deu muitas voltas e impôs decisões. E assim viemos, eu e o Norton, com seu baixo, o “Tobias”, muitas malas, as crianças, e a base do primeiro disco do Couple Coffee nas mãos, o Puro.

2.  A possibilidade de exercê-la em plenitude e criatividade. O Couple Coffee nasce no Brasil, mas passa a existir de facto aqui em Portugal. Quando apresentamos o Puro ao Gonçalo Riscado e ao Alex Cortez, da Ed. Transformadores, com as canções brasileiras reinterpretadas por nós só com o baixo e a voz, partiu deles a ideia iluminada e lusófona de chamar artistas portugueses para participar no disco: o Vitorino, o JP Simões, o Jorge Palma, o Gabriel Gomes e o Sérgio Costa.

Isso foi fundamental para nós, como uma bênção de benvindança dos companheiros do ofício que jamais esqueceremos. Gonçalo, Alex e os convidados tornaram-se grandes amigos, nos deram de presente a nossa liberdade. Aqui em Portugal somos artistas livres. É reconfortante afirmar isso após cinco discos editados e a caminho do sexto, só com originais, quase 20 anos depois.

3.  Talvez seja a pergunta mais difícil de responder porque enquanto estamos fazendo – em bom gerúndio – não olhamos muito para o que já fizemos.

Por outro lado, cada vez mais acontece de artistas muito jovens, portugueses e não só, nos dizerem que são influenciados por nós pela música, arranjos, interpretação, conceito, e principalmente por nossa forma de estar e ser no ofício, na lida. Acho que é por aí. Daqui a dez anos responderemos outra vez… com mais estrada percorrida. Oxalá!

4. Não só acreditamos como essa tem sido a nossa prática desde o quase analógico e longínquo ano de 2005. O caminho é agregar mais ainda, olhar para o país todo, que tem criadores de todos os cantos, e perceber e pressentir que em breve o tal mundo lusófono será muito maior do que partilhar uma língua e ancestralidades.

O importante é sermos verdadeiros na sinceridade das intenções artísticas, que mais do que nunca não devem servir às vaidades vãs. Neste agora um tanto aflito que nos cerca, o que nós artistas fizermos conta e contará para sempre na construção desta nova e necessária identidade cultural e social.

Aprendi a cantar de olhos fechados

Pierre Aderne

Ano e local de nascimento: 1965, Toulouse

Ano da chegada a Portugal: 2011

Discografia: Casa de Praia (2006), Alto Mar (2007), Água Doce (2011), Bem me quer, Mar me quer (2012), Caboclo (2014), Da Janela de Inês (2017), Vela Bandeira (2022) e Mapa dos Rios (com Moacyr Luz, 2024)

1. Por ser o berço da nossa língua. Para estar mais perto da música que se faz em Portugal e da África que soa em português.

2. Novos sotaques, o fado e as mornas, abriu meus ouvidos para outros batuques e outras macumbas. Aprendi a cantar de olhos fechados e hoje enxergo bem melhor a música que faço.

3. Alegria e comunidade.

4. Lisboa tornou-se a capital da música de língua portuguesa. A verdadeira sede da CPLP e do Instituto Camões é o que se ouve na coluna vertebral musical das sete colinas.  Só falta o Moedas enxergar o ouro que temos na ponta dos dedos e da língua e proclamar o título com uma escultura na praça do comércio.  Eu assino!

Um mundo de possibilidades

Carlos Cavallini

Ano e local de nascimento: 1984, Vitória, Espírito Santo

Ano da chegada a Portugal: 2007

Discografia: O Tamanho do Tempo (2024)

1. Eu me mudei para Portugal em 2007 para fazer um mestrado em Etnomusicologia na Universidade Nova de Lisboa. Dois anos antes, conheci um grupo de artistas num festival de música e teatro no interior do Espírito Santo, Brasil. Na época, eu tinha uma banda e estávamos no festival para uma apresentação.

Uma das atrizes que conheci me contou que estava se mudando para Lisboa para fazer um mestrado em Cinema. Ficamos em contacto e ela foi partilhando sua experiência, o que me animou cada vez mais para vir também. Eu já buscava uma mudança de trabalho e queria ter a experiência de morar fora de Vitória, com o objetivo de me aproximar da música profissionalmente.

Uma das integrantes da banda, Joana Bentes (que agora segue uma carreira linda como cantautora), precisou sair para prestar o vestibular. Éramos muito novos e a música ainda não era nossa profissão. Com o fim da banda, a vontade de viver em Lisboa aumentou.

Nesse período, recém-formado em jornalismo, eu trabalhava com assessoria de imprensa em Vitória. Quando vi o programa de mestrado em Etnomusicologia da NOVA, achei ideal para o que eu queria: uma pesquisa que analisasse o discurso dos media portugueses sobre a música brasileira.

Fiquei muito feliz quando meu projeto foi aprovado e acabei estendendo minha estadia para o doutoramento, também na NOVA, muito encorajado pela Profª. Salwa Castelo-Branco, minha orientadora. Depois disso, não quis mais viver em outra cidade.

2. Portugal me abriu os olhos para a música de outros países de língua portuguesa, algo com que não tinha contacto no Brasil. Quando pergunto para amigos, ouço o mesmo – no Brasil, quase não conhecemos a música portuguesa e dos outros países lusófonos.

Na primeira festa que fui na casa de uma colega da faculdade em Lisboa, estava tocando o álbum Navega, de Mayra Andrade. Fiquei maravilhado com o primeiro disco da Mayra e fui conhecendo outros artistas como Tito Paris, Bonga, Paulo Flores e Aline Frazão, para além de nomes da música portuguesa que entraram para o meu imaginário e passaram a ser também minhas referências – Jorge Palma, Sérgio Godinho, Luísa Sobral, Os Clã, Márcia, António Zambujo, entre tantos outros nomes. Isso me abriu um mundo de possibilidades, não só na sonoridade, mas também na escrita.

3. Acredito que o meu trabalho se insere num cenário musical “ainda em construção” aqui em Portugal, composto por músicos brasileiros que não só vivem aqui, mas também se consideram daqui.

São músicos que já incorporaram palavras e os cenários locais e, após viverem em Portugal, adquiriram uma sonoridade influenciada por tudo que passa a nos rodear. Quando Leo Middea participou do Festival da Canção, eu torci muito. Foi incrível ver, pela primeira vez, um brasileiro representando Portugal, e já era hora, afinal ele também é daqui.

Estamos caminhando para ver cada vez mais exemplos assim e ainda bem!i. Quando me mudei para Lisboa, havia alguns exemplos de músicos brasileiros que já vivam aqui como é caso dos Couple Coffee, mas agora temos uma abordagem diferente onde estes artistas também passam a representar Portugal.

4. Não acredito nisso, tenho a plena certeza! Aliás, esse era justamente um dos pontos da minha pesquisa no doutoramento e tenho visto cada vez mais Portugal representar este intercâmbio.

Apesar da crescente onda de xenofobia e discursos de ódio aqui também, é essencial ressaltar que existe uma presença significativa de artistas de outros países de língua portuguesa nas rádios, premiações, festivais e eventos diversos.

Existe uma abertura para isso, uma tentativa de pessoas e empresas sérias e comprometidas com essa interação. Claro que, num mundo ideal, poderíamos estar muito mais avançados nesse tema, mas sinto, tanto pelas pessoas que conheço aqui quanto nos media e eventos culturais, uma grande abertura e um certo orgulho de uma parcela significativa dos portugueses em representar esse intercâmbio. E que cresça, para reforçar os laços e dirimir barreiras. Há muita coisa bonita nessa interação e todos ganham com isso.

Calma e maturidade

Bernardo Lobo

Ano e local de nascimento: 1972, Rio de Janeiro

Ano da chegada a Portugal: 2016

Discografia: Nada Virtual (2000), Sábado (2006), Sábado ao vivo (2008), Valentia (2012), C’Alma (2018), Uma Viola mais que Enluarada (2019), Zambujeira (2021), Bons Ventos (2023)

1. Me apaixonei por Lisboa depois de ter cantado aqui em 2010 e 2013. A beleza da cidade e a segurança foram também fatores importantes.

2.  Trouxe calma e maturidade para minha música.

3. Acho que minha música tem muito do que ouvi na minha vida toda e tem uma grande mistura de ritmos e uma liberdade de criação. Minha música vem mostrar isso tudo. As fontes que bebi mas com uma assinatura própria.

4. Acredito que sim e vejo que tem sido cada vez mais assim.

Fundir e compreender diferentes linguagens

Nilson Dourado

Ano e local de nascimento: 1980, São Paulo

Ano da chegada a Portugal: 2009

Discografia: Sabiá (2012), Silêncio (2022)

1. Pela qualidade de vida, que hoje já está um bocado afetada pelo aumento do custo de vida, comparado com 2009/2010, quando cheguei por aqui para uma primeira experiência. Mas para além da qualidade de vida também me interessava o intercâmbio cultural e novas conexões artísticas.

2. Trouxe uma rica ampliação da linguagem musical, começando pela música portuguesa que já é naturalmente um rico mosaico cultural e seguindo pelo imenso balaio que abarca as várias culturas envolvidas pelo que chamamos de lusofonia, e se estendendo ainda, por todo um universo mais amplo de fusões e encontros de culturas, pela maior proximidade com o norte da África, o mediterrâneo, ou mesmo das variações culturais que integram o que talvez possamos chamar de música europeia.

3. Provavelmente de uma forma mais generalizada trouxe algo de sensibilidade, alguma habilidade para fusionar e compreender diferentes linguagens musicais, considerando essas que são características mais ou menos inerentes à minha personalidade musical.  

4. Sem dúvida nenhuma que sim. Esse aliás tem sido um tema recorrente nas conversas que tenho com o meu amigo e um dos principais parceiros de trabalho que tenho por aqui, o luso-brasileiro Pierre Aderne.

Penso que por questões relacionadas, quer à história ou à geografia, Lisboa, por diversos motivos, talvez tenha tido sempre esta aptidão; agora é evidente que nos últimos dez anos, com toda essa renovação populacional que pela qual passou e continua a passar Portugal, que essa potência se amplie e se redimensione incluindo toda uma nova população de artistas que escolheram, assim como eu, viver ou pelo menos passar uma grande temporada por aqui.

Porta de entrada para o mundo

Leo Middea

Ano e local de nascimento: 1995, Rio de Janeiro

Ano da chegada a Portugal: 2017

Discografia: Dois (2014), A Dança do Mundo (2016), Vicentina (2020), Beleza Isolar (2020), Gente (2023)

1. Eu sempre quis explorar minha música de uma forma que me permitisse circular por diferentes culturas, podendo viajar além do Brasil. A ideia de vir para Portugal surgiu pela primeira vez na minha cabeça quando eu estava em um retiro de silêncio em Bangalore, na Índia, em 2016.

Lá, tive a sensação de que era possível concretizar essa ideia, até então embrionária. Portugal apareceu como uma porta de entrada para o mundo, por já estar na Europa e ser tão próximo de tantas culturas. Acabei me apaixonando pelo país, por Lisboa, e aos poucos fui conseguindo essa expansão por diferentes territórios, que era o meu foco desde o início.

2. Trouxe muitas coisas, começando pelas diferentes influências artísticas e musicais que nunca tinha absorvido quando estava no Brasil. Por exemplo, o jazz. No meu primeiro ano em Portugal, frequentava muito os clubes de jazz, escutando e me fascinando com aquilo. Nunca tinha ido a um clube de jazz no Brasil, e essa experiência certamente me encantou.

Outra coisa que Portugal me proporcionou, e que pode parecer engraçado, foi que estar longe do Brasil trouxe muitas sensações, como a saudade dos familiares e do clima. O mais interessante é que essa distância também me deu uma visão mais distanciada e, ao mesmo tempo, mais próxima do meu próprio país.

Isso fez com que sentisse uma presença maior do Brasil em mim, ajudando-me a entender melhor minha relação com a música como brasileiro e a mesclar essa sensação com as referências de vida e musicais que estava vivenciando em Portugal naquele momento.

3.  Não consigo dizer isso com total clareza, pois acredito que uma pessoa de fora poderia oferecer uma perspetiva mais assertiva. Mas sempre gostei de fotografar a vida em forma de canções, e com certeza as praias, os bairros e as cidades me inspiraram.

Hoje vejo pessoas que viajam para Lisboa postarem reels e stories com a música “Lisbon Lisbon”; ela quase virou uma trilha sonora para alguns turistas. Já vi comerciais de divulgação da cidade de Lisboa com essa música. Além de “Freguesia de Arroios” e “Banho de Mar” – nesta canção menciono as praias de Carcavelos, Caparica, Ericeira, dos Coelhos e Galé – já recebi algumas mensagens de pessoas que visitaram essas praias por causa dessa canção, quase como um “checklist”.

Então, não sei exatamente o que minha música trouxe a Portugal, mas com certeza ela reflete, de certa forma, um pouco de Portugal.

4. Com certeza, é muito bonito ver, principalmente em Lisboa, a lusofonia à flor da pele, com a língua portuguesa de diversos lugares se encontrando e celebrando esse intercâmbio em forma de parcerias, encontros e admirações.

Um certo artesanato da canção popular

Fred Martins

Ano e local de nascimento: 1969, Niterói

Ano da chegada a Portugal: 2017

Discografia: Janelas (2001), Raro e comum (2004), Tempo afora (2007), Guanabara (2008), Acrobata (com Ugia Pedreira) 2012, Para Além do Muro do Meu Quintal, 2015, A música é meu país (2017), Ultramarino (2021), Barbarizando Geral (prestes a sair)

1. É natural que um brasileiro como eu, que ama o próprio (ao menos uma parte deste), se encante com Portugal. O espaço cultural comum entre os dois países cria um sentimento de familiaridade tão forte que fica difícil não desejar estar por aqui por um tempo prolongado. E, desde meu ponto de vista, a música popular tem sido um dos elementos centrais nesse espaço comum.

2. Creio que sempre esteve lá.  A música do Rio de Janeiro, de onde venho, é especialmente marcada pela presença portuguesa na cidade. Há quem lembre da importância da passagem da corte portuguesa pelo Rio, com a presença do piano como elemento fulcral na formação da cultura musical da cidade.

Os tambores dos terreiros afro-cariocas moldando a rítmica das harmonias e melodias tocadas ao piano nos salões e casas das famílias, cinemas, saraus, eventos institucionais. E essas melodias pianísticas, por sua vez, espraiando-se pelos violões e cavaquinhos, pandeiros (impregnado ouvidos e alma) dos sambistas do morro e do asfalto.

Claro que desde que estou por cá esses elementos foram se decupando, tornando-se mais conscientes. E os ritmos locais e certos melismas do canto (alguns novos para mim) foram se tornando mais presentes em minhas canções.

3.  Ah, acho que nesse caso só posso dizer sobre o que está dentro de meu campo de visão. Não posso falar pelos que estão do outro lado do cenário, os ouvintes de Portugal. Apenas espero eles gostem da música que apresento. Que seja para eles de algum interesse.

Posso dizer que o que tenho mostrado é resultado da minha formação em certo artesanato da canção popular. Algo que traz muito de uma linhagem específica de cancionistas brasileiros. E que, no melhor dos casos, espero com isso continuar uma “conversa” musical e poética que atravessa mais de um século de canção brasileira e remonta aos primeiros sambistas como Sinhô, Pixinguinha, Noel Rosa e segue pelas seguintes gerações de artistas como Geraldo Pereira, Nelson Cavaquinho, Vinícius de Moraes, Jobim, Chico Buarque, Aldir Blanc e João Bosco, Ivan Lins, Gilberto Gil, entre tantos.

O grande Paulinho da Viola compara o ofício do sambista, ou cancionista, com o do mestre artesão. E a forma de transmissão do conhecimento se dando e forma direta, no tête-à-tête, de uns a outros.

4. Penso que sim. Aqui temos acesso às referências de base que povoam o imaginário de cada comunidade ligada a determinado país lusófono. Além do possibilidade de convívio entre pessoas de diferentes grupos, troca de informações e criação de práticas comuns a diversas nacionalidades.

A História do ponto de vista do outro

Luca Argel

Ano e local de nascimento: Rio de Janeiro (1988)

Ano da chegada a Portugal: 2012

Discografia: Bandeira (2017), Conversa de Fila (2019), Samba de Guerrilha (2021), Sabina (2023)

1. Inicialmente não era uma mudança para Portugal, era apenas uma passagem durante o período de estudos, de um a dois anos. A permanência em Portugal aconteceu por motivos pessoais (não me queria separar da minha namorada na época), e depois profissionais (comecei a conseguir sustentar-me com a música, o que nunca acontecera no Brasil).

Não posso dizer que “escolhi” Portugal para viver, a priori. Faria mais sentido dizer que Portugal é que me escolheu a mim.

2. Novas perspetivas de se pensar e usar a nossa língua e a nossa história. Além de uma visão mais distanciada, e por isso mesmo talvez mais bem definida, do valor da cultura e identidade brasileiras que eu já trazia na bagagem, e que dava de barato.

3. Espero que tenha trazido precisamente as mesmas coisas. Ampliado os horizontes em relação ao que é a cultura brasileira, as nossas histórias, e um espaço de trânsito criativo mais livre entre as nossas formas de usar a língua portuguesa.

4.  Sim, Portugal tem todo esse potencial. Mas nunca vai conseguir realizá-lo plenamente se não pensar a lusofonia de forma mais profunda. Persiste, por exemplo, a ideia do mundo lusófono como um presente que Portugal ofereceu generosamente ao mundo.

São mínimas as tentativas de pensar esta história do ponto de vista do outro, para o qual a lusofonia foi sobretudo uma ferramenta de dominação. Sem abraçar radicalmente este exercício de alteridade, coisa que Portugal tem extrema dificuldade em fazer, nenhum intercâmbio cultural pode ser pleno. Isto é, horizontal, sem hierarquias.

Diálogo, reflexão e intervenção

ÁKILA AKA PUTA DA SILVA

Ano da chegada a Portugal: 2016

Discografia: EPI Travesti (2022)

1. Eu estava a viver em Barcelona quando resolvi me mudar para Portugal para cursar o mestrado em teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema, percorrendo um sonho antigo de me profissionalizar nas áreas de teatro, cinema e comunidade.

2. Minhas canções autorais foram todas criadas em Portugal e revelam a minha relação com a cidade de Lisboa e com o País. A geografia, a arquitetura, as políticas públicas e a cultura portuguesa, bem como qual é a real situação da população imigrante em Portugal foram pontos de observação importantes para as minhas pesquisas e composições. A minha música e arte são um convite para o diálogo, para a reflexão e intervenção. Eu canto um novo tempo bem como uma nova Portugal.

3. A possibilidade de ver o país, entrando em contacto com outras vivências, experiências e epistemologias que até então não eram discutidas. Minha música  transforma o silenciamento em grito e o grito em conhecimento.

Minha música vem para fazer o país se movimentar e refletir acerca de outras existências que não são necessariamente brancas europeias e cisgêneras e conscientizar sobre nossas potências e necessidades vitais em sociedade. Um país multicultural valoriza o power da diferença e da multiplicidade de ser, pensar e existir.

4. Com toda a certeza estamos muito bem geolocalizadas em Portugal, o que permitirá o intercâmbio de diversas  culturas. Quanto mais Portugal se abrir para essas novas culturas mais fortalecida e interessante ficará a cultura portuguesa. Afinal uma sociedade é composta e se ergue cultural e intelectualmente sobre o alicerce de saberes e conhecimentos diversos.

Outras matrizes musicais

Antônio Villeroy

Ano e local de nascimento: 1961, São Gabriel

Ano da chegada a Portugal: 2022

Discografia selecionada: Totonho Villeroy (1991), Trânsito Independente (1995). Juntos ao Vivo, com Bebeto Alves, Gelson Oliveira e Nelson Coelho de Castro (1997),  Juntos 2 : Povoado das Águas (2002), Totonho Villeroy & Orquestra de Câmara Theatro São Pedro (2004), José (2010). Samboleria (2014). Novelas (2019), Gravidade do Amor (2021), Luz Acesa (2021), Banquete (2023)

1. Eu faço turnês pela Europa desde 1994, mas sempre estive mais focado na Espanha, Luxemburgo, Suíça, Áustria, Alemanha, eventualmente na Inglaterra, mas principalmente na França, onde inclusive produzi um grande festival de música brasileira de 1996 a 2006.

A primeira vez que me apresentei em Portugal, foi um só show em Lisboa, no ano de 1996. A partir de 2019, passei a vir com maior frequência para cá. Tenho duas filhas pequenas, atualmente com sete e 11 anos, e, a cada turnê europeia ficava quase dois meses longe delas.

Em função disso, minha mulher e eu começamos a cogitar nossa mudança para alguns dos países onde eu ia com maior frequência. Depois de uma longa turnê realizada em 2022, tendo obtido enorme recetividade em Portugal, decidimos que o país a ser escolhido deveria ser Portugal, em virtude da segurança e de falarmos o mesmo idioma, o que seria uma facilitador para as crianças.

2. A música do Brasil tem fortes traços portugueses. Sou natural do Rio Grande do Sul e encontro diversas convergências musicais entre o folclore da minha região e a música tradicional portuguesa. Até mesmo o fado, que tem uma característica extremamente marcante, possui uma similaridade com a milonga, do meu estado, em relação à economia de acordes, às repetições melódicas e a grande importância do texto na composição.

E ambos os gêneros possuem uma tendência mais introspectiva e emocional. Ao chegar aqui, vivendo o dia a dia, frequentando shows e ouvindo rádio, deparei-me com outras matizes musicais, uma geração nova produzindo canções de qualidade com boas letras de caráter contemporâneo. Todos esses aspetos, o da tradição e o da inovação, foram, de certa forma, sendo incorporados ao meu fazer artístico.

3. Isso é algo para o qual ainda não tenho plenas respostas. Minhas músicas chegaram aqui antes de mim, através das trilhas das novelas e das interpretações de outros artistas. Quando vou aos meios de comunicação para dar entrevistas, sinto um enorme acolhimento, em geral os jornalistas e apresentadores tem bastante conhecimento sobre a minha produção musical. Nos shows, o público canta comigo boa parte do repertório.

Portanto, penso que, de certa forma, minhas canções já fazem parte da trilha sonora de muitos portugueses. Mas não tenho como precisar se causei alguma influência na produção local, nas músicas dos artistas daqui. Tenho feito colaborações com alguns artistas, como Joana Amendoeira e Joana Almeida. Talvez daqui um breve tempo possamos ter uma noção mais clara do que minha música pode ter trazido para Portugal.

4.  Sim. Disso não tenho dúvida. Percebo que há uma interatividade entre os artistas lusófonos de diversas latitudes. Tenho ouvido no rádio diversos duetos entre artistas portugueses e artistas de países da África Lusófona e também do Brasil.

Isso se dá mais aqui do que no meu país. Penso que há um desejo de intercâmbio entre os artistas de língua portuguesa e percebo resultados muito interessantes, no plano harmônico, melódico e também com relação aos diferentes sotaques e acentos que se enctrecortam nessas produções.

Localizado no deserto do Atacama, no Chile, o Observatório do Paranal é a ‘casa’ de um dos telescópios mais poderosos do mundo. A par do Very Large Telescope (VLT), a instalação gerida pelo Observatório Europeu do Sul (ESO, na sigla em inglês), acolhe uma série de instrumentos de grande importância para as observações astronómicas feitas a partir da Terra e, em breve, vai contar com um novo telescópio ‘made in Portugal’.  

O PoET está na fase final de design, num projeto que conta com Nuno Cardoso Santos, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e do Departamento de Física e Astronomia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, como investigador principal.  O acordo para a instalação já foi assinado entre o diretor geral do ESO e a direção do Centro de Astrofísica da Universidade do Porto (CAUP), enquanto instituição de acolhimento do polo da Universidade do Porto do IA.  

PoET

O telescópio faz parte de um projeto maior, o FIERCE (FInding Exo-eaRths: tackling the ChallengEs of stellar activity). Financiado pelo Conselho Europeu de Investigação, o projeto quer encontrar uma solução para o ruído estelar, um problema que limita a procura e caracterização de exoplanetas. Para conseguir resolver esse problema, é fundamental construir um instrumento que esteja preparado para ajudar os investigadores nas suas observações e é aqui onde entra o PoET.  

Usar o Sol como exemplo  

Em entrevista à Exame Informática, Alexandre Cabral, gestor de projeto do PoET, explica que, muitas das técnicas usadas atualmente para identificar exoplanetas não ‘veem’ os planetas diretamente, focando-se na análise da luz das estrelas que estão a orbitar.  

O investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e IA detalha que “o grande problema é quando começamos a detetar planetas mais pequenos do que a Terra”. “A perturbação que eles causam na luz das estrelas chega a ser do tamanho, ou mais pequena, do que aquilo que é o ruído astrofísico típico que as estrelas têm”.  

“Neste momento, começa a tornar-se fundamental perceber e compreender esse ruído que essas estrelas têm”, afirma. A questão torna-se mais complicada quando se considera que, devido à sua distância, ainda não é possível observar essas estrelas com detalhe espacial.  

Segundo o investigador, “a ideia aqui é utilizar o Sol como proxy”, ou seja, como “qualquer coisa que podemos estudar, porque é parecida com muitas das estrelas que nós observamos quando vemos fora do nosso sistema solar”.  

Estudar o Astro-Rei traz também uma vantagem importante. Ao analisar o Sol e as diferentes zonas que o compõem será possível “perceber até que ponto as manchas solares têm impacto nessa deteção que nós estamos a fazer de exoplanetas com estrelas que estão muito longe”.  

Um dos aspetos que o diferencia de outros telescópios solares é a ligação a um espectrógrafo de elevada alta resolução, neste caso, o ESPRESSO, um projeto que também contou com a participação de investigadores do IA.  

O facto de poder estar ligado ao “espectrógrafo com maior resolução para este tipo de observações na zona daquilo que é chamado a ‘luz visível’” já lhe dá uma “característica especial”, nas palavras de Alexandre Cabral.  

Mas não é só isso que o torna especial. O PoET vai dar aos investigadores a capacidade de analisar zonas muito pequenas com maior detalhe. Imagine dividir o Sol em 2 mil por 2 mil quadrados: “um dos objetivos é conseguir perceber o que se passa num desses pequenos quadrados que, por exemplo, pode corresponder ao interior de uma mancha solar”.  

“A questão é poder perceber e quantificar o impacto que isso tem, para que os modelos que são utilizados na análise da luz de outras estrelas que estão fora do sistema solar sejam cada vez mais exatos”, realça o investigador.  

Desafios e oportunidades  

Apesar de ficar fisicamente no Observatório do Paranal, o PoET será operado remotamente em Portugal, a partir do IA, o que traz desafios específicos. “É a primeira vez que estamos a tomar conta de tudo”, afirma Alexandre Cabral, acrescentando que tem de existir um grande cuidado para “garantir que tudo é pensado e que tudo vai funcionar”.  

“Estamos a falar num instrumento que é instalado numa montanha a 2.600 metros de altitude, com condições climatéricas um pouco diferentes, humidades muito baixas, níveis de ozono altos”, destaca. Embora já sejam características conhecidas graças aos vários projetos do ESO em que o IA participou, não deixam de ser desafiantes.  

Outro dos desafios passa por ter de “arranjar soluções, por um lado, o mais engenhosas possível para garantir que são eficientes, mas que [por outro] têm que ser diferentes daquilo que se faz muitas vezes num laboratório”.  

Da ótica à mecânica, passando ainda pela parte da eletrónica e do software, as diferentes ‘camadas’ do PoET têm de funcionar como um todo e a equipa responsável pelo desenvolvimento tem de “garantir que tudo é testado em Portugal ao máximo” antes de levar os componentes para o Chile.  

Do seu lado, a equipa de astrónomos do IA também está a preparar a exploração científica dos dados que vão ser recolhidos futuramente pelo PoET, num processo que inclui vários investigadores e estudantes de doutoramento de diversas áreas, como pesquisa de exoplanetas ou física solar e estelar. 

À medida que o desenvolvimento do PoET avança, espera-se que, no futuro, os resultados do projeto FIERCE sejam fundamentais para o sucesso de instrumentos e missões espaciais que ambicionam detetar e caracterizar exoplanetas, como a PLATO e ARIEL, da Agência Espacial Europeia, previstas para 2026 e 2029, respetivamente. 

Para a comunidade científica portuguesa, o PoET tem “muita importância, porque é um tema crítico nesta área dos exoplanetas: uma área onde Portugal tem ‘dado cartas’”, afirma Alexandre Cabral.  

Como realça o investigador, “é também importante mostrar para a comunidade internacional o que nós conseguimos fazer em termos de ciência na contribuição para a construção de instrumentos, que são as ferramentas para essa ciência”. E já se começam a sentir os primeiros impactos nas conversas com outros astrónomos, colocando sobre a mesa, por exemplo, ideias para colaborações futuras em projetos como a construção de uma versão do PoET para o hemisfério norte.  

A par da música, também o mundo das artes plásticas em Portugal tem sentido um incremento da presença brasileira. Certo, a cena artística institucional do nosso país tem ainda um longo caminho a trilhar, mas o cenário tem-se vindo a transformar aos poucos, atraindo, cada vez mais, a atenção de artistas, galeristas e programadores culturais vindos do Brasil.

De exposições em grandes instituições até artistas brasileiros em residências artísticas promovidas por diversas galerias portuguesas, passando por escritórios de galerias brasileiras a abrir em Portugal, as iniciativas desdobram-se.

Será porventura culpa de uma relação que “é óbvia e dura há séculos”, catalisadora de uma “troca natural, que até poderia ser mais intensa, pela natureza da língua e da conexão dos dois países”, na opinião da portuguesa Maria Ana Pimenta (MAP), diretora internacional da Fortes D’Aloia & Gabriel, uma das maiores galerias de arte do Brasil, que abriu um escritório em Lisboa há cinco anos.

Não sendo uma galeria com programação ao longo do ano, MAP assegura que o espaço, recentemente relocalizado na Rua do Machadinho, pode acolher projetos pontuais que aconteçam de forma orgânica.

“Se algum dos nossos artistas estiver a expor em Portugal, em residência artística aqui, se houver um motivo para fazer um cabinet ou uma mostra de duas ou três peças específicas, uma conversa ou alguma ação, o escritório presta-se a isso e é algo que queremos fazer”, diz.

Seja pela conexão existente entre os dois países, seja pelo momento que Portugal está a passar, existe uma tração e um interesse muito maior do que havia

maria ana pimenta – diretora internacional da Fortes D’Aloia & Gabriel

“Há cada vez mais brasileiros a viver em Portugal, que são engajados no nosso programa, que nos conhecem e que apoiam o programa da galeria”, revela ainda a diretora internacional da Fortes D’Aloia & Gabriel, sublinhando que não há dúvida que “seja pela conexão existente entre os dois países, seja pelo momento que Portugal está a passar, existe uma tração e um interesse muito maior do que havia”.

No caso da Fortes D’Aloia & Gabriel, o interesse chegou mesmo às grandes instituições, com o MAAT a expor na sua galeria principal o Nosso Barco Tambor Terra do carioca Ernesto Neto, instalação que pode ser visitada até ao dia 7 de outubro.

Além disso, pelo quarto ano consecutivo, nos meses de julho e agosto, a galeria abre um polo na Casa da Cultura da Comporta, trazendo este ano para a terra dos arrozais Stirring The Pot, exposição coletiva organizada em parceria com a galeria brasileira Nara Roesler, com a curadoria de Nancy Dantas, que apresenta obras de Alberto Pitta, Efrain Almeida, Igshaan Adams, Leonardo Drew e Marina Rheingantz.

A poucos metros, inaugurou-se também, pela primeira vez este ano, uma extensão da KubikGallery, galeria portuense fundada em 2010, que, desde 2015, ano em que abriu um escritório em São Paulo, conta com um vasto número de artistas brasileiros entre os nomes que representa.

O fundador, João Azinheiro (JA), rumou ao outro lado do Atlântico em busca de experiência e novos artistas. À semelhança daquilo que a Fortes D’Aloia & Gabriel faz, atualmente, na Comporta, em 2018 a KubikGallery associou-se a Luísa Strina, galerista histórica do Brasil, para apresentar, em São Paulo, duas exposições que contaram com trabalho de artistas portugueses e brasileiros.

“Comecei a fazer a ponte, porque achei que tínhamos uma potencialidade enorme do ponto de vista linguístico e cultural, à semelhança do que acontece com Espanha, que sempre apostou em trabalhar muito com artistas da América Latina”, conta JA.

Há cada vez mais galerias a querer chegar à Europa, que veem em Lisboa uma porta de entrada

joão azinheiro – fundador da kubikgallery

Apesar de, segundo o galerista, Portugal ter ainda poucos colecionadores “que depois seguem a carreira do artista brasileiro”, sendo brasileira a maior parte dos compradores de arte brasileira, tanto JA como MAP consideram que, hoje em dia, o interesse no nosso país por parte dos próprios artistas também aumentou. “Portugal é um país que os artistas têm curiosidade em conhecer, nele expor e estar, que é sentido e desperta interesse”, comenta MAP.

“Há cada vez mais galerias a querer chegar à Europa, que veem em Lisboa uma porta de entrada, devido ao recente mercado mais aberto, internacional, com galerias, com mais espaço para ter uma crítica e público com poder económico”, acrescenta Azinheiro, que a 3 de outubro abrirá outro polo da KubikGallery, em Lisboa, o qual contará com a curadoria dos brasileiros Luisa Duarte e Bernardo José de Souza.

De facto, só entre 2023 e 2024, Lisboa recebeu Marcela Cantuária e Panmela Castro, duas importantes artistas brasileiras, convidadas, respetivamente, pela Insofar e pela Galeria Francisco Fino para realizarem residências artísticas na capital, das quais resultaram as exposições Bestiário e Do Jardim, Um Oceano.

Em 2017, a KubikGallery convidara também a paulista Leda Catunda para uma residência de mais de um mês, no Porto, que resultou na exposição Sexo e Romance.

A porta de entrada para a Europa (e o resto do mundo), que Azinheiro refere, foi precisamente o que Bebel Moraes (BM) e Daniel Mattar (DM) procuraram quando, em 2018, trocaram o Rio de Janeiro por Lisboa para abrir a Brisa Galeria, que explora a multidisciplinaridade entre fotografia, pintura, escultura e performance através de exposições com artistas contemporâneos e curadores convidados.

“Lisboa já estava efervescente, mas após a pandemia o interesse pela cidade aumentou e a arte, de uma forma geral, ganha com isso. É uma grande possibilidade de comunicar e apresentar a galeria para um público maior e de diversas nacionalidades”, afirma BM.

[abrir em Lisboa] é uma grande possibilidade de comunicar e apresentar a galeria para um público maior e de diversas nacionalidades

bebel moraes – fundadora da brisa galeria

Apesar de a Brisa Galeria representar apenas artistas brasileiros, a galerista sublinha não ter sido “um posicionamento” propositado. “Aconteceu de forma natural, por sermos uma referência para artistas brasileiros”. Desde 2018, a galeria contou com 20 exposições, quatro por ano, estando marcada para setembro a primeira coletiva, com curadoria do português João Silvério.

Por fim, também os museus e instituições culturais de maior envergadura têm contemplado, na sua programação, nomes basilares da arte brasileira.

Se em 2023, o Centro Internacional das Artes José de Guimarães apresentava Interminável, de Artur Barrio, figura que ocupa um lugar central na história da arte brasileira, em 2025, a Fundação Calouste Gulbenkian inaugura uma mostra que põe em diálogo o trabalho de Adriana Varejão e Paula Rego.

Exposições mencionadas no artigo:

Nosso Barco Tambor Terra – Ernesto Neto > maat > qua-seg 10h-19h > até 7 out

Stirring The Pot – exposição coletiva > Fortes D’Aloia & Gabriel na Casa da Cultura da Comporta > ter-dom 11h-14h e17h-20h > até 31 ago

Kubik Comporta Coletiva – exposição coletiva > KubikGallery no Espaço Museológico Museu do Arroz > ter-dom 10h-13h e 17h-21h > até 31 ago

Palavras-chave:

Listar e dar a conhecer todos os escritores brasileiros a viver atualmente em Portugal seria matéria para outro tema do JL. Se é certo que as relações literárias entre os dois países nem sempre foram intensas, esta presença brasileira em Portugal poderá vir a criar novos alicerces para uma ponte literária que sempre existiu.

E se até há bem pouco tempo se notava uma certa influência da literatura portuguesa no Brasil, sublinhada por críticos brasileiros nas suas colunas de opinião, neste momento parece que se verifica o inverso.

Nas páginas do nosso jornal, no ano passado, Miguel Real destacava justamente a qualidade dos romances que chegavam do outro lado do Atlântico, dando como exemplo o facto de duas das últimas três edições do Prémio Leya terem sido vencidas por autores brasileiros.

Se esse era o saldo à data da publicação do artigo, ele subiu para três nas últimas quatro edições, com a distinção de Não Há Pássaros Aqui, de Victor Vidal, que se juntou a Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, e A Arte de Driblar Destinos, de Celso José da Costa.

Pela sua natureza subjetiva, os prémios valem o que valem. Além disso, é preciso nomear as vitórias de obras portuguesas no Prémio Oceanos, aberto a toda a lusofonia, mas organizado por uma instituição brasileira: Alexandra Lucas Coelho, em 2022, com Líbano, Labirinto, Ana Teresa Pereira, em 2017, com Karen, e José Luís Peixoto, em 2016, com Galveias, só para referir os últimos dez anos e sem contar com segundos e terceiros lugares previstos no galardão.

A visibilidade da literatura brasileira atual foi recentemente reforçada, num contexto editorial muito difícil de penetrar como o dos EUA, com a atribuição do Nation Book Award para melhor tradução ao romance A Palavra que Resta, de Stênio Gardel.

As editoras

E a publicação? A língua partilhada nem sempre é o melhor amigo dos editores, a avaliar pelas apostas. Há quem fale nos obstáculos semânticos e sintáticos ou nos contextos geográficos e culturais tão distintos, justificações que nem sempre convencem.

Os autores brasileiros têm poucos leitores em Portugal? Há nomes que quebram essa desconfiança. Machado de Assis, como grande clássicos e romancista inventivo, Jorge Amado e Erico Veríssimo, dois dos autores brasileiros mais populares em Portugal ao longo do século XX, Rubem Fonseca, com a sua novela policial (e não só), Chico Buarque, pela literatura e pela música.

E muitos e grandes poetas, como Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto. Houve tentativas de editoras e coleções brasileiras, algumas de grande impacto, outras sem seguimento.

Alguns exemplos: a editora Livros do Brasil, fundada em 1944 e responsável pela divulgação de grandes autores brasileiros; as coleções da Cotovia, a “Sabiá” e a “Curso Breve de Literatura Brasileira”, esta dirigida por Abel Barros Baptista, professor e ensaísta que, com Clara Rowland, coordena atualmente a coleção da Tinta-da-China “Os Melhores deles”. Em parceria com a Academia Brasileira de Letras (ABL), a Glaciar lançou uma “Biblioteca da Academia”, tendo a Imprensa Nacional editado também vários poetas brasileiros contemporâneos.

A presença de editoras brasileiras a atuar no mercado português também contribui para uma aproximação entre o Brasil e Portugal. A Editora Gato Bravo, de Paula Cajaty, tem sido distribuída nas livrarias portuguesas e tem publicado autores nacionais no Brasil.

Igual trabalho e com maior impacto tem desenvolvido a editora Urutau, fundada por Waldimir Vaz. Outro exemplo é a editora Kotter, de Marcos Pamplona. Em comum, estas três chancelas têm o facto de serem dirigidas por poetas que vivem ou viveram temporadas em Portugal.

As livrarias

Se falamos em editoras, não podemos deixar de referir a Livraria Travessa de Lisboa, a primeira filial da cadeia fora do Brasil e que desde 2019 se tornou um polo central no circuito literário lisboeta, promovendo lançamentos e outras iniciativas, integrando ainda a programação de alguns festivais literários e não só.

No espaço, na Rua da Escola Politécnica (Príncipe Real), disponibiliza-se um conjunto muito significativo de títulos brasileiros, que complementam a oferta das editoras lusas. Destacam-se os catálogos e as edições cuidadas e originais de clássicos da literatura brasileira e universal.

Os autores

Uma ‘embaixada’ brasileira  Além das editoras, dos prémios e das livrarias, é a presença de autores brasileiros que pode contribuir para um maior conhecimento da literatura que se faz do outro lado do Atlântico.

Neste campo, o primeiro nome a referir é o de Tatiana Salem Levy, a mais portuguesa das escritoras brasileiras, e vice-versa, característica nem sempre valorizada pelos dois países.

Filha de pais brasileiros exilados em Portugal durante a Ditadura Militar, nasceu em 1979, em Lisboa (onde vive há mais de 10 anos), e o seu primeiro romance, A Chave da Casa, teve a sua 1ª edição na Cotovia, em 2007, meses antes de sair na Record. Todos as suas narrativas estão publicadas em Portugal, também na Tinta-da-China e na Elsinore. Na próxima rentrée deverá sair o seu novo livro, Melhor não contar.

Outro nome em destaque é o de Rafael Gallo, que se mudou para Portugal após ter sido galardoado, em 2023, com o Prémio José Saramago, pela primeira vez atribuído a um inédito (Dor Fantasma).

Vencedor do Prémio Oceanos (na altura ainda chamado PT de Literatura) com Os Lados do Círculo (editado pela Caminho), Amílcar Bettega também vive atualmente entre nós, depois de ter passado por vários países. Além de tradutor, ministra uma oficina de conto em várias instituições e festivais portugueses.

Outro autor galardoado a viver aqui, neste caso no Porto: Alexandre Marques Rodrigues, que recebeu o Prémio Sesc de Literatura, em 2014, com Parafilias, edição portuguesa da Teodolito.

Há mais de 30 anos a viver em Portugal, o carioca Ozias Filho, poeta e fotógrafo, tem sido responsável por edições, leituras e outras iniciativas a envolver autores nacionais e brasileiros. Versátil é também o perfil de Álvaro Filho, com um percurso no jornalismo e na fotografia: vive aqui desde 2016 e aqui iniciou  sua obra literárias.

Ronaldo Cagiano, já distinguido com um Prémio Jabuti (3.º lugar com o volume de contos Eles não moram mais aqui), mudou-se para Lisboa em 2017 e tem obra publicada na Coisas de Ler, Húmus, Gato Bravo e Urutau.

Sem viver em Portugal, mas com casa própria cá, onde passa várias temporadas: José Paulo Cavalcanti Filho, membro da ABL e autor de Fernando Pessoa. Uma quase autobiografia e Somente a verdade, ambos publicados pela Porto Editora.

Numa lista necessariamente vasta, e a explorar em próxima edição, outros nomes teriam de ser incluídos (aqui referidos a título de exemplo): Everton Machado, escritor e docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Eltânia André, um dos muitos nomes divulgados entre nós pela Urutau; Maurício Vieira e Mariana Portela, que se distinguem pelas suas performances poéticas; Luca Argel, que além de músico (ver inquérito) tem publicado poesia; e Celso Japiassu e José Guilherme Vereza, ambos publicitários, lançado pela Glaciar e pela Kotter, respetivamente; e Manuela Bezerra de Melo, poeta, contista e investigadora da Universidade do Minho. Eis novos pilares para uma ponte literária antiga e necessária.

Palavras-chave:

Na semana em que cumpriu 90 anos, no final do ano passado, escreveu 90 haikus, assim, de repente, como quem deita cá para fora o que há muito vinha acumulando num depósito de poesia.

E é mesmo assim que Luísa Freire escreve: sem planeamento, nem projeto, seguindo a intuição. De uma palavra que lê, de uma imagem que vê, de um pássaro que passa, de uma folha que cai, como exemplifica, pode surgir um poema.

E com ele outros até formarem um livro. A rapidez com que escreve um poema só encontra paralelo com a facilidade com que compõe um livro. Pode passar muito tempo sem escrever, meses até, mas quando a escrita a domina tudo flui. Talvez essa sensação explique os muitos inéditos, livros inteiros, que guarda na gaveta.

”Quando abro livro antigos, leio-me como se estivesse a ler um autor desconhecido”

Alguns, 26, estão a ser agora publicados, nos dois volumes de poesia inédita a que deu o título de Atravessar o Frio, uma edição da Assírio & Alvim. O primeiro volume, já nas livrarias, cobre os anos de 2011 e 2017, abarcando o segundo o período que vai de 2019 a 2023. É uma oportunidade única para conhecer uma poeta discreta, de escassa publicação.

Nascida em Castelo Branco, em 1933, Luísa Freire só publicou o seu primeiro em 1979, Da Raiz à Fronde, recolhendo aí poemas escritos entre 1973 e a data de lançamento da estreia. Antes, formou-se em Filologia Germânica, em Coimbra, e começou a dar aulas no ensino secundário.

Seguiram-se outros livros, até 1985 – Na Pausa da Espera, Estar, Amor e Sempre, Verde-Nunca –, mas o envolvimento com a arca pessoana relegou os seus versos para um pousio forçado. Traduziu os poemas ingleses que Fernando Pessoa escreveu ao longo de toda a vida, dedicou-lhe o mestrado e um longo ensaio (Fernando Pessoa – Entre Vozes. Entre Língua) e só voltou a publicar já este século. Em 2003, saiu Imagens Orientais / Imagens Acidentais, com haikus seus e de Bashô, Buson, Issa e Shiki, e Ciclo da Cal.

Em 2009, O Tempo de Perfil revelava, pela primeira vez, o que ia escrevendo para gaveta (considera-se uma poeta com ‘arca’, mas sem espólio). E antes de Atravessar o Frio, e assinalando também os 50 anos de percurso literário, contados a partir de 1973, lançou os títulos Imagens e Cadernos A4, ambos em 2022, e já este ano o poema dramático Monólogo para uma Janela no Escuro e Folhas Breves, com os tais 90 haikus.

Apaixonada também pela pintura, hoje tenta dizer mais com menos, numa concisão que tanto apela às ideias, como se deixa seduzir pelas imagens.

Não é habitual uma poeta publicar, num único volume, 13 livros de inéditos de uma só vez, anunciando outros tantos para o segundo tomo. Quis assinalar em grande os seus 90 anos e 50 de vida literária?

Sim, de certo modo. Há essa coincidência de datas, o segundo volume desta poesia inédita vai até 2023, quando completei 90 anos. E acho que comecei a escrever “a sério” em 1973, já com 40… Mas não incluí nesta poesia inédita todos os livros que tenho por publicar, pois não condiziam com o conjunto. Um deles foi um volume de tercetos.

Além destes 26 livros inéditos, tem mais? Sabendo do seu passado pessoano, podemos falar de uma pequena arca?

Sim, sim, há mais. Tenho inéditos, mas não tenho espólio. Quando não gosto de um poema (ou de uma versão) deito-o para o lixo. E quando acabo um livro também vai para o lixo tudo o que não teve lugar nele. Não deixarei cá nada além de cada título individual.

É muita poesia inédita…

Tenho 60 livros escritos que considero acabados. Houve uma oportunidade, entre 2017 e 2019, de publicar dois livros de prosa poética e três de terceto, cem para cada um, a que chamei Instantes 1, 2 e 3. Mas essa possibilidade não se concretizou.

Mas por que razão acumulou tantos livros inéditos e não os publicou ao longo do tempo?

Como no caso daqueles três, houve oportunidades que não se concretizaram ou não apareceram. E eu também não fiz muito por isso. Parti do princípio que os livros estavam feitos, cá os deixava. Se tivessem de ser revelados postumamente também não haveria problema. O que eu agora disse ao Vasco David [diretor editorial da Porto Editora e editor da Assírio & Alvim], foi: já que vi o primeiro volume desta poesia inédita, gostava de ver o segundo [risos].

Estou a imaginar o Vasco David a perguntar-lhe se teria um livro inédito para publicar e a responder-lhe: um não, vários…

[risos] Ele sabia que eu tinha muitos para publicar. Quando lançámos O Tempo de Perfil, em 2009, que também já revelava muitos livros inéditos, havia outros na gaveta. Tem sido realmente muita escrita. Foram 50 anos de vida literária bem aproveitados.

Saber se seria publicada nunca foi importante nessa escrita contínua?

Esse é um processo independente. Escrevo para mim. Também, possivelmente, para algum leitor que me queira ler, mas nunca penso em publicar quando escrevo. Vou registando coisinhas pequeninas do dia a dia, pensamentos, ideias ou palavras que depois dão a um poema.

É a sua conta-corrente?

Sim, faz parte do meu dia-a-dia. E houve uma fase, nos anos 80 do século passado, em que escrevi tanto, tanto, tanto que se tornou quase um diário. Mas desse tempo deitei muitos poemas fora, quase 500. Eram muito repetitivos, justamente por essa proximidade entre poesia e diário.

Numa nota de apresentação a esta poesia inédita, diz que este primeiro volume versa mais sobre a ideia de “voz” e de “escrita”…

Há um tema comum que une os vários livros: as diferentes linguagens. Tenho muitos poemas sobre música, pintura e escrita: são várias vozes e linguagens, incluindo a gestual e a dos bebés. Foquei-me nesses anos um pouco nessa temática. A partir de 2019, que aparecerá no segundo volume, a minha poesia surge mais conotada com o mundo, com tudo o que foi acontecendo. Há vários poemas referente à pandemia, às várias guerras em que estamos metidos e também a perdas pessoais, como a morte do meu marido. Mais mundo e realidade.

Alguns pintores usam a ideia de série para explicar por que razão pintam, durante um determinado período, um certo tema. Também se pode aplicar à sua poesia?

Abordar o mesmo tema é uma coincidência. A minha poesia surge de instantes, do que aparece, de uma palavra que depois dá origem a um poema. A atenção às linguagens é fruto dos meus interesses, da muita música que oiço, do meu gosto pela pintura, que também pratico. Tudo isso fez com surgissem livros especiais  sobre esses temas, não foi nada planeado. Quando acho que um livro acabou, dou-o por terminado. E depois o próximo pode ter uma temática semelhante ou completamente diferente. A única característica comum que reconheço na minha poesia mais recente é ser cada vez mais sintética, condensada, na procura de dizer em pouco espaço.

Na verdade, a sua poesia nunca foi torrencial.

Sim, nunca foi longa. Mas está cada vez mais curta. Talvez também seja uma influência dos haikus de que gosto muito, estudei bastante e cultivo.

O que gosta nessa concisão?

O haiku baseia-se nos sentidos, são essencialmente visuais ou auditivos. Quando o poeta oriental capta imagens ou sons, tudo fica fora das ideias. Pelo contrário, nós, ocidentais, não nos conseguimos abstrair, apenas ouvir ou ver, temos sempre de associar qualquer coisa. Talvez se deva à omnipresença das quadras, que ouvimos desde pequenos, que são pequenos sonetos, com uma introdução e uma conclusão. Não chamo de haikus aos tercetos que referi há pouco porque neles já há um pensamento, uma ideia, uma reflexão. Tenho tendência para uma poesia sentenciosa, um pouco conclusiva.

Com este primeiro volume de poesia inédita, estamos perante vários livros. Como é que ele se formam? Quando sente que tem um concluído?

É um processo intuitivo. Há sempre um momento em que, com os poemas que tenho, sinto que o livro se fechou. Não tenho um projeto, como se faz nos romances. Por vezes, passo meses sem escrever e, depois, um livro surge numa semana ou duas. Mesmo quando não escreve, o poeta está a escrever.

Vai captando e pensando. Na altura certa, as coisas que surgem já lá estavam. No meu caso, primeiro escrevo à mão e só depois passo para o computador. O que não me parece merecedor de ficar no livro, é destruído. Não existe. O livro vai-se afinando nas impressões e nas revisões que faço. Mas, como disse, é tudo intuitivo, não obedece a um trabalho ou a uma pesquisa, a ver o que fica melhor aqui ou ali. Até porque emendo muito pouco.

Por que razão deu o título de Atravessar o Frio a esta poesia inédita?

Foram 12 anos difíceis a vários níveis, no mundo e na minha vida. Muitas perdas. Os meus amigos morreram praticamente todos. Quando se chega a esta idade, já se tem pouca gente que partilhou connosco uma vida, momentos ou amizades.

A poesia é sempre em diferido. Nunca por estar triste ou contente. Agarro no papel e escrevo. É sempre o depois, passado a tempestade, o que fica do vivido

Essas perdas puxam mais pela poesia?

No meu caso, não. Para mim, a poesia é sempre em diferido. Nunca por estar triste ou contente. Agarro no papel e escrevo. É sempre o depois, passado a tempestade, o que fica do vivido.

Também é assim quando escreve sobre o que acontece no mundo?

Interessa-me muito as pessoas na sua relação com o mundo, as reações. Até os noticiários, que impressionam sempre. E sobre tudo isto se escreve, depois, em qualquer altura, não necessariamente logo, em resposta.

Uma vida tão longa também lhe permite conjugar vários tempos.

Sim, sim, e muitas experiências. Atravessei a nossa ditadura e fui contemporânea da II Guerra Mundial, que o meu pai acompanhava através da BBC e das notícias do Fernando Pessa. Um dos livros que sairá no segundo volume é precisamente sobre as mudanças que tenho visto no mundo, incluindo as climáticas e os desafios ecológicos.

Uma das características da sua poesia é a diversidade de registos. Interessa-lhe a experimentação?

Muito. Tenho versos e poemas longos (mas não muito) e curtos. Só não escrevo sonetos.

Não gosta?

Estou vacinada contra eles. Como qualquer adolescente, fiquei fascinada pelos sonetos de Florbela Espanca. E depois li muitos de Camões, Almeida Garrett e Antero de Quental. Quando cheguei à geração de Orpheu, e sobretudo à poesia de Fernando Pessoa, assim como à de outros autores, jurei que nunca escreveria sonetos.

Um espartilho demasiado apertado?

Sim. A poesia, para mim, é liberdade. Escrevo versos sem rima, mas o ritmo está lá. E o ritmo é muito importante, seja na prosa poética, seja na poesia. Infelizmente, é uma dimensão da escrita que se está a perder nos mais novos. Talvez lhes falte o Camões lírico e tudo o que se seguiu. A história da poesia que se lê e estuda fica no ouvido e comanda o ritmo quando se escreve. O verso branco sem ritmo não é nada.

É a diferença entre a simplicidade e o simplismo…

Pois… Eu gosto muito de coisas simples, de uma poesia pobre, que vive da imagem, sem luxos. Porque há um estilo pomposo que me irrita [risos].

Como foram as suas primeiras tentativas poéticas?

Não sei situar bem. Guardo um caderno de 1946, com uns poemas de caligrafia muito bonita… Mas é o único texto antigo que guardo. Sempre gostei de letras, mas não sei dizer o que me levou, aos 12 anos, àquele caderno. Na verdade, nem foi o início de uma dedicação à escrita, apenas de leitura intensa. Passei inclusivamente pela faculdade se ter esse impulso criativo, que só chegou com a meia idade.

Esteve esse tempo todo a a escrever sem escrever, como dizia há pouco?

Referi essa expressão para os anos mais recentes. Mas se calhar nessa altura também escrevia sem o saber. Foi um tempo muito ocupado pela profissão, os filhos para criar, as solicitações do dia-a-dia. Não houve o espaço que a poesia requer.

O que mudou nos anos 70 para que a poesia tenha encontrado esse espaço?

Não sei porquê, nem como, mas resolvi que ia escrever. E comecei. Foi assim tão simples. Hoje já não me identifico com os primeiros quatro livros que publiquei. Mais tarde, encontrei o nome que adotei para a escrita – Luísa Freire – e tudo se tornou mais regular.

Os anos 80 foram anos de grande produção…

Foi o tempo em que mais escrevi. Mas depois comecei a trabalhar com o espólio do Pessoa e a traduzir os seus poemas ingleses. Aí houve uma escrita mais espaçada porque a tradução implica um envolvimento e uma emoção tal que, por vezes, inibe a produção própria.

Qualquer coisa que eu escrevesse parecia Pessoa, tão grande era o seu impacto e influência. Revejo-me numa frase que li num dos livros do Alberto Manguel: a tradução é a mais fecunda leitura da obra de um escritor. Não há outra maneira. Deixamos de ser nós, para sermos outro.

Como se deu o encontro com Pessoa?

Quando vivia em Elvas traduzi alguns poemas ingleses do Fernando Pessoa. Mais tarde a Teresa Rita-Lopes soube disso e convidou-me para continuar esse trabalho, até porque na equipa dela, na altura, não havia ninguém de estudos anglísticos, eram todos de românicas. Ao fazer o meu mestrado sobre a obra pessoana inglesa, abriram-se as portas à minha colaboração, que resultou num primeiro volume de traduções, em 1985, nos três volumes com toda a poesia inglesa e no ensaio Fernando Pessoa – Entre vozes, entre línguas.

O que se pode descobrir nesse Pessoa inglês menos conhecido?

As preocupações e as obsessões do poeta maduro já estão nesta poesia inglesa inicial. Serão tratadas depois primorosamente na língua portuguesa. Mas mesmo numa poesia mal alinhavada como é a do Alexander Search as temáticas principais já lá estão.

As quadras são, para mim, o grande mistério pessoano. O que leva Pessoa, no fim de uma vida e de uma obra tão fabulosa e diversa, a escrever 400 quadras? E à maneira do povo. É realmente inacreditável

O núcleo está criado?

Sim, e mais tarde desdobra-se nos heterónimos, no Pessoa ele mesmo e na prosa poética do Bernardo Soares. É um desdobramento mas sobretudo uma maneira de escrever completamente diferente, numa outra língua e com outras vivências. O Pessoa escreveu em inglês até ao fim da vida, mas há muitas variações, sobretudo porque ele vai perdendo a faceta coloquial do inglês quando volta a Portugal e estuda a fundo a literatura portuguesa.

Também estudou as quadras pessoana, outra área pouco conhecida quando pegou nelas…

Sim, outra área mal amada no corpus pessoano. As quadras são, para mim, o grande mistério pessoano. O que leva Pessoa, no fim de uma vida e de uma obra tão fabulosa e diversa, a escrever 400 quadras? E à maneira do povo, com ele diz. É realmente inacreditável. Já tinha escrito algumas, certamente que estudou o cancioneiro, mas escrever tantas nos últimos anos de vida? É o grande mistério no enorme mistério que Pessoa é. Ainda hoje não sei explicar.

Os contributos pessoanos terão ofuscado a sua poesia?

Talvez. Fica-se sempre marcado por Pessoa. E ele foi, de facto, uma grande influência, sobretudo o Bernardo Soares e o Álvaro de Campos.

É aliás do Álvaro de Campos a epígrafe que abre Atravessar o Frio…

Não podia ser outra. Identifico-me muito com esse poema: “Depois de escrever, leio…/ Porque escrevi isto?/ Onde fui buscar isto? De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu…// Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta/ Com que alguém escrever a valer o que nós aqui traçamos?” Muitas vezes, quando abro livro antigos, leio-me como se estivesse a ler um autor desconhecido. Toda a escrita é um mistério.

“A formação da faculdade da atenção é o verdadeiro fim e quase o único interesse dos estudos”, escrevia Simone Weil, em 1942, numa das suas reflexões publicadas em Espera de Deus.

Oitenta e dois anos mais tarde, a frase ecoa ainda com a força de uma pedra num charco onde a utilidade das coisas é cada vez mais celebrada, em detrimento da sua essência.

Num Mundo pautado pela angústia da pressa, pelo imediatismo e a volatilidade de pensamentos, ideias e relações humanas, dar-nos conta de tal essência implica um esforço acrescido, uma procura consciente ou, como o fotógrafo Daniel Blaufuks (DB) define a sua exposição mais recente, que se inaugurou no MAAT a 17 de julho, “um ato de resistência”.

Com curadoria de João Pinharanda, Os Dias Estão Numerados apresenta mais de 450 obras, fruto daquela que DB considera ter-se transformado na “tarefa de uma vida”: a criação de um diário visual e textual onde regista e comenta o seu quotidiano, desde 2018.

Há seis anos que, todos os dias, em folhas de papel A4 numeradas, Blaufuks cola polaroids, recortes de jornais, anúncios, bilhetes de avião, e manuscreve ou carimba frases em português, alemão, inglês e francês, dando corpo a uma espécie de arquivo de fragmentos de vida. Ao MAAT chega agora uma seleção dos registos realizados entre 2018 e 2022, todos os de 2023 e alguns de 2024.

Os projetos a longo prazo e a entrega ao que “não é fotografável à partida”, provavelmente desinteressante ao olhar dos que não prestam atenção às pequenas coisas, é já imagem de marca na obra do fotógrafo. Em 2017, na Galeria Vera Cortez, Tentativa de Esgotamento reunia as fotografias que, de forma quase religiosa, Blaufuks havia tirado, entre 2009 e 2016, à mesa e à janela da cozinha da sua casa, em Lisboa.

Em Os Dias Estão Numerados, a mesa e a janela estão de volta, e a elas juntam-se frases, imagens de flores, guerras, viagens, concertos, amigos vivos, amigos mortos, paisagens de mar, divisões de uma casa.

“Há folhas das quais se gosta mais e folhas que se gosta menos, mas isso corresponde também ao que é a vida. Há coisas melhores do que outras”, explica DB, enfatizando que, apesar da periodicidade diária da criação, estamos perante um não-diário.

“Acaba por saber-se muito pouco da minha vida. Não é íntimo, os retratos são não-retratos, não estamos aqui a falar de grandes fotografias, mas de uma valorização do disparo instantâneo, que é afetivo”. Not a diary but a state of mind, lê-se numa das páginas expostas. Estado de espírito esse que comporta o registo das não efemeridades, de tudo  o que normalmente não nos lembramos quando o ano acaba.

“É um toca e foge. As pessoas não percebem se o meu dia foi aquilo, ou se foi só aquele minuto, aquele segundo em que pensei naquela frase. São pistas”. A recolha constante destas pistas dá forma a um arquivo consistente de fragmentos de vida, espelha a paisagem interior da alma do fotógrafo e a forma como esta percecionou o Mundo num determinado dia, a uma determinada hora, num determinado lugar.

Não estamos aqui a falar de grandes fotografias, mas de uma valorização do disparo instantâneo, que é afetivo

daniel blaufuks – fotógrafo

Observando as 365 obras de 2023, não sabemos o que DB fez ao longo do ano, com quem fez, quando fez, mas conseguimos intuir um ser metódico, por vezes melancólico, que se entrega à contemplação com um espírito inquisitivo.

Percebemos, por exemplo, o quão importante é para o artista a ética vir antes da estética, pensamento de tal forma premente que acabou imortalizado em três obras.

Também não há dúvidas de que é feliz em Veneza, apesar do turismo desenfreado, que a 21 de março compara a terrorismo, e do facto de no dia 6 do mesmo mês duvidar se ama mais a cidade ou as memórias que tem dela.

A faculdade da atenção é de facto a arma mais eficaz na construção de um arquivo deste tipo, o qual pressupõe uma entrega ativa ao aborrecimento e à monotonia, a descoberta do espanto tanto na rotina como na quebra dela, a valorização da “vida ordinária em que nada se passa e tudo se passa”, e uma capacidade de, contemplando a luz que bate sempre sobre a mesma mesa, encontrar nela razões para sorrir, chorar, enfurecer-se ou questionar.

Os Dias Estão Numerados poderia ser definida como algo entre um exercício de memória e uma homenagem à beleza dos dias comuns, os que esquecemos por não terem sido abalados pelas quebras de rotina que alimentam a nossa incapacidade de ser e estar, apenas.

“Vivemos num tempo em que temos de assumir o nosso lado”

FOTO: Bruno Lopes

Jornal de Letras (JL): Alguma vez, olhando para trás, para as obras destes seis anos, foi surpreendido pela sua própria vida?

Daniel Blaufuks (DB): Ah sim, há dias que eu não me lembro. E há frases que, às vezes, tenho de pensar porque é que as escrevi, onde é que fui buscá-las, se são frases minhas, o que é que eu estava a pensar na altura. Isto é uma visualização do tempo, também.

Nós não pensamos no tempo como uma coisa que se possa ver, porque é uma coisa que está sempre a passar. Um ano tem este aspeto. Parece imenso, cabe imensa coisa, mas, se pensarmos, também é tudo muito curto.

JL: Tão curto que conseguimos identificar rapidamente pequenas coisas que se repetem. A frase “ethics before aesthetics” está, pelo menos, em duas obras.

DB: Vivemos num tempo em que, de facto, as pessoas olham para a beleza e não pensam quase em mais nada. Também há aqui uma tentativa de crítica e pensamento político. É algo que na fotografia, normalmente, não consigo ter e encontrei finalmente uma forma de poder fazê-lo. É que a fotografia não dá opiniões…

JL: Pois, está uma obra na primeira parede da exposição onde escreveu precisamente isso.

DB: Está? Ainda bem. Penso que encontrei uma forma de também dizer qualquer coisa. Se alguém ouve ou quer saber já é secundário, neste caso. Quis dar à fotografia uma voz, um lado. Vivemos num tempo em que temos de assumir o nosso lado.

Trabalhei muito sobre o Holocausto, no início. Quando fiz o Sob Céus Estranhos, que é um filme sobre os judeus refugiados, as pessoas perguntavam-me porque é que ainda estava a trabalhar sobre o assunto.

Hoje em dia já ninguém me pergunta isso, porque, tragicamente, ficou cada vez mais presente. E eu sinto, cada vez mais que, como artista e como cidadão, quero e devo tomar posições.

JL: Foi o que tentou fazer em Os Dias Estão Numerados?

DB: Apesar de ser difícil com exposições de fotografia, porque uma fotografia tem imensas leituras, mas não necessariamente uma opinião, aqui, com este formato, acho que consegui. Depois as pessoas concordam, não concordam, estão interessadas, não estão interessadas, isso já é outra coisa.

Serralves, 10 de julho de 2024. As viagens no tempo têm muitas formas de acontecer. Milão, Amado Mio – Atti Impuri, 1982. O essencial é manter viva a memória. Lisboa, Poetas de Sodoma, 1923. Riscá-la nos muros, gritá-la nos palcos, celebrá-la e mostrá-la, dando mesmo uma festa em sua honra.

Serralves, 10 de julho de 2024. As portas do salão da casa cor-de-rosa abrem-se de par em par para o jardim, repleto de convidados. Ao centro da sala, num enorme charriot redondo, repousam dezenas de casacos de cabedal nos quais foram bordadas referências a eventos, livros, artistas, pensadores, realizadores e escritores, de Pasolini a António Botto e Derek Jarman, entre muitos outros.

A festa está montada e as memórias convocadas. Sob o olhar atento dos convidados, os do jardim e os dos casacos, João Pedro Vale (JPV) e Nuno Alexandre Ferreira (NAF) trocam alianças, escrevendo mais um capítulo na história da Casa Vale Ferreira, que trazem agora a Serralves, numa mostra antológica de 25 anos de trabalho, com curadoria de Inês Grosso, patente até 17 de novembro.

Do casamento que acabou de acontecer sobreviverá uma placa comemorativa, eco da “performance” de uma vida, a qual ficará exposta na fachada da capela da Casa de Serralves, nos próximos meses, rebatizada Casa Vale Ferreira. É que, por mais anos que passem e por mais voltas que o Mundo dê, JPV e NAF continuam a usar o “criticismo, algum cinismo e muito humor” para questioná-lo.

A ironia refinada é cunho identitário da dupla, há 25 anos a desenhar-nos sorrisos na cara através de obras mordazes, que, colocando-nos frente a frente com a realidade, têm-nos feito refletir sobre temas tão variados quanto a identidade nacional, a dignidade humana, as relações interpessoais e as ideias preestabelecidas necessárias, ou não, ao funcionamento do sistema social.

The Tearoom, instalação composta por blusões de cabedal personalizados com referências a personagens, eventos ou lugares do imaginário queer com influência direta no trabalho de JPV e NAF FOTO:nvstudio

A viagem através da carreira dos dois artistas tem início precisamente em The Tearoom, a instalação composta pelos blusões de cabedal personalizados com referências a personagens (que já tenham morrido), eventos ou lugares do imaginário queer com influência direta no trabalho de JPV e NAF.

“As pessoas são convidadas a fazer parte da peça, vestindo um casaco à sua escolha enquanto vêm a exposição, acabando por realizar as suas próprias performances, ao circularem pelo espaço, a ver os casacos que os outros têm vestidos, ao mesmo tempo que também são vistas por eles”, explica NAF. “É como se, através do público, a própria obra contaminasse o resto da casa”.

Do salão aos quartos, sala de leitura, biblioteca, cozinha, jardim e capela, a dupla tomou de assalto o espaço e povoou-o com uma fotografia bem tirada daquilo que tem sido a sua prática artística.

Com trabalho realizado em áreas tão distintas quanto a escultura, instalação, vídeo, fotografia e performance, as obras expostas em Serralves, à exceção de The Tearoom, idealizada de raiz para a exposição, são reinterpretações das originais ou vestígios de performances realizadas no passado.

É o caso, por exemplo, da reprodução do interior de um navio, a qual, apesar de à primeira vista parecer, nas palavras dos artistas, “uma reconstrução de um museu etnológico”, foi o cenário utilizado em Hero, Captain and Stranger, simultaneamente um filme pornográfico gay e uma adaptação curta e livre de Moby Dick, resultante de uma residência artística realizada em Nova Iorque, em 2009, cuja estreia ocorreu no mesmo ano, no antigo Cine Paraíso, em Lisboa.

“O espaço é perfeitamente inócuo, a sugestão faz o resto”, comenta JPV. A sugestão está presente um pouco por toda a casa, vibra em cada divisão, dando corpo a uma exposição “eminentemente performativa”.

O convite não é direto, mas está lá palpitante. É praticamente impossível resistir à tentação de pegar num dos balões vazios, onde se lê Get a Voice, que repousam junto de uma botija de hélio, enchê-lo e inspirar o gás que se encontra no seu interior, recriando, inconscientemente, a performance homónima que, em 2002, a dupla realizava em parceria com Ana Pérez Quiroga.

Da mesma forma, o conceito de casa não se quer literal. Por vezes, surge de forma mais evidente, na relação das peças com o espaço, como acontece com as reproduções, em pratinha de chocolate, de algumas jóias do Tesouro Nacional, expostas no quarto da condessa, ou a edição de 12 mil garrafas das Milagrosas Águas de São Bento, espalhadas pela cozinha.

Mas também metaforicamente, como em Vadios (palavra utilizada na lei de Julho 1912 que penalizava a homossexualidade), réplica de um urinol de rua, coberto de inscrições manuais de excertos de textos de Raul Leal, António Botto, Almada Negreiros e outros escritores que, ao longo do século XX, fizeram referências explícitas ao tema da homossexualidade, que se encontra instalada na antiga sala de leitura da condessa.

“Estivemos sempre rodeados de pessoas, do Manuel Reis ao Julião Sarmento, que nos ensinaram que as coisas fazem-se coletivamente, […] que sozinhos podemos ser o que quisermos, mas somos só para nós e isso não chega”

Acima de tudo, foge-se da ideia de domesticidade. Casa não são quatro paredes, não é um quarto onde se dorme e uma sala onde se janta. São sim os que dormem no quarto e os que são convidados para jantar na sala.

É sentido de pertença: a uma comunidade, um ideal, um grupo de amigos, uma família, uma mão cheia de memórias.

Casa é vínculo e relação com as obras, o espaço, o público, o passado, o presente, com 25 anos de trabalho e colaboração artística.

“É um espaço seguro, uma comunidade, uma família que não é família de sangue, mas um grupo de pessoas cuja afinidade está relacionada com uma ideia de proteção mútua”, sublinham os artistas que, sobretudo desde 2008, dedicam declaradamente o seu trabalho a temáticas queer, “a uma comunidade que já foi hiper-marginalizada, que era expulsa de casa ou mal tratada pela própria família”.

Casa são ainda os poucos que, ao percorrer as divisões da Casa Vale Ferreira, conhecerão as histórias por detrás de cada obra, pois delas também fizeram parte.

São os que, ao entrarem no escritório e virem Toro, uma cortina de veludo amarela e encarnada, lembrar-se-ão dela à entrada do LUX, bem como da festa “Malícia no País das Maravilhas” durante a qual, vestidos de forcados, com sapatos de salto alto, JPV, NAF e mais seis artistas e amigos apresentaram pela primeira vez Festa Brava, uma “pega” a quem subia a escadaria principal da discoteca lisboeta.

Casa é, sublinha NAF, “uma comunidade que te ajuda, suporta e legitima”, algo que a dupla nunca perdeu de vista ao desenvolver os seus projetos artísticos. “Estivemos sempre rodeados de pessoas, do Manuel Reis ao Julião Sarmento, que nos ensinaram que as coisas fazem-se coletivamente, que é preciso chamar toda a gente, porque não se consegue fazer nada sozinho, que é preciso um coro que te empurre, que te meta à frente, que sozinhos podemos ser o que quisermos, mas somos só para nós e isso não chega”, acrescenta JPV.

Na Casa Vale Ferreira as portas estão abertas a todos os que quiserem entrar, ser mais do que convidados, assumirem-se como agentes ativadores das obras, capazes de fazer reverberar as ideias e histórias invisíveis nelas contidas, renovando a sua leitura até que, junto delas, se sintam em casa.

[casa] é um espaço seguro, uma comunidade, uma família que não é família de sangue, mas um grupo de pessoas cuja afinidade está relacionada com uma ideia de proteção mútua

joão pedro vale + nuno alexandre ferreira

Recordar o passado em Serralves

Jornal de Letras – Ao fim de 25 anos, tiveram de olhar para trás e reler o vosso trabalho. Houve surpresas?

Nuno Alexandre Ferreira (NAF) – Acho que não. Apesar de sermos peritos em fazer desvios, somos um bocadinho obsessivos, é como se houvesse sempre uma linha de pensamento continua, com as mesmas preocupações, talvez um pouco mais densas, porque os contextos vão mudando, bem como a situação política e social. As coisas hoje não são vistas como eram há 20 anos.

João Pedro Vale (JPV) – O nosso trabalho é muito colaborativo, tanto nas nossas obras como nos momentos em que chamamos pessoas para mostrarem o seu trabalho no nosso atelier, por exemplo. Eu pensava que isto tinha começado a acontecer mais a partir de 2009, quando estivemos em Nova Iorque e depois quando começamos a colaborar com o Teatro Praga, mas ao olhar retrospetivamente percebemos que não, que tinha estado sempre lá.

E relativamente aos temas que levantam? As obras continuam a ter a mesma capacidade de agarrar as pessoas que tinham há 25 anos?

NAF + JPV – Hoje em dia, as pessoas já estão mais habituadas e têm mais ferramentas para falar sobre determinadas temáticas, mas gostámos de perceber, olhando retrospetivamente para o nosso trabalho, que estas questões foram pertinentes na altura e continuam a ser pertinentes hoje. É que temos quase 50 anos e, ainda que de uma forma diferente do que acontecia aos 20, continuamos a ter de justificar a nossa própria homossexualidade

Fazer esta leitura foi uma experiência emotiva?

JPV – Sim, porque faz-te pensar em memórias e em todas as pessoas que já fomos. Um bocadinho como As Horas, em que a Mrs Dalloway é sempre a mesma personagem, mas com várias vidas, tudo isto que se repete. Nós os dois, a Casa Vale Ferreira, já fomos muitas coisas.

E o facto de misturarmos a vida com o trabalho é algo que queremos que continue, que seja sempre possível, independentemente do formato em que as coisas possam ser apresentadas. Fazer arte não é quando o objeto está feito, mas sim quando está em vias de acontecer.

Como é que decidiram quais as obras mais adequadas para ilustrarem estas vossas vidas na exposição?

NAF – É sempre uma conversa, uma negociação com a curadora. Já tínhamos feito uma exposição grande com a Inês Grosso em 2019, no maat, além de a conhecermos desde 2009. No processo da escolha de obras a dificuldade maior é a questão da criação de um discurso, de ir vendo umas a seguir às outras e de que forma é que isto interfere no resultado final.

Porque não há um percurso especifico neste caso?

JPV – Acaba por haver. É o da arquitetura da casa. Não há uma sequência de salas obrigatoriamente específica, mas começa-se cá em baixo, com os blusões, e depois segue-se o percurso da casa, vai-se avançando ao longo das divisões, podendo-se escolher se se vai logo ao primeiro andar e depois à cave ou vice-versa.

A página de facebook de músicos brasileiros em Portugal tem 5600 elementos. Claro que a quase totalidade deste grupo é feita de músicos sem obra gravada, que acompanham outros cantores, que tocam em bares e afins ou procuram um espaço para o fazer.

Contudo, o número não deixa de ser impressionante e rima com os mais de 400 mil brasileiros residentes em Portugal (segundo dados de setembro de 2023 havia 393 mil “legais”) de longe a maior comunidade de imigrantes em Portugal (cerca de 35%).

A história musical de Portugal com o Brasil é longa. Dizem mesmo alguns historiadores, como José Ramos Tinhorão, que o tão lisboeta fado teve a sua remota origem numa dança do Brasil.

Amália Rodrigues também passou uma temporada no Rio de Janeiro, ainda numa fase inicial da carreira, para não falar de Carmen Miranda, um dos esplendores da música brasileira, que nasceu em Marco de Canavezes. E diga-se que os grandes escritores de canções brasileiros sempre encontraram portas abertas no nosso mercado.

Aliás, a par das telenovelas, a música foi o que sempre obteve maior adesão popular, não se deparando com a dificuldade encontrada noutras áreas, como a literatura e o cinema.

Fale-se da transversalidade de Roberto Leal, português emigrado no Brasil, com sucesso aquém e além mar, da popular figura de Badaró, que encheu as televisões portuguesas nos anos 80, ou das sucessivas incursões de Eugénia Melo e Castro, que chegou a ter um programa de televisão de intercâmbios musicais, chamado “Atlântico”.

Portugal recebeu bem Vinícius de Moraes, que escreveu para Amália “Saudades do Brasil em Portugal”, mas também Chico Buarque, cujo tema Tanto Mar se tornou um dos hits da revolução

Também nomes como Fafá de Belém (que vive de forma intermitente em Portugal) ou, mais recentemente, Yvete Sangalo, mostram que a música brasileira é um fenómeno de grande aceitação popular.

Os grandes músicos da bossa nova, tropicalismo e outros movimentos fizeram de Portugal uma segunda casa, sobretudo depois do 25 de Abril. Portugal recebeu bem Vinícius de Moraes, que escreveu para Amália “Saudades do Brasil em Portugal”, mas também Chico Buarque, cujo tema Tanto Mar se tornou um dos hits da revolução.

Isto além de Caetano, Bethânia, Gilberto Gil, Edu Lobo, Milton Nascimento, Djavan, Ivan Lins (que vive entre Portugal e o Brasil), Adriana Calcanhotto (que viveu em Coimbra e deu aulas na universidade) ou Arnaldo Antunes, que será o poeta homenageado do próximo Escritaria, de Penafiel.

Para não falar em Gilda Oswaldo Cruz, notável pianista clássica brasileira, há muito radicada em Portugal, com um reportório que muitas vezes inclui compositores portugueses.

Zé Renato, nome importante da música brasileira, fez um disco de fusão entre samba e fado, nos anos 90, e atualmente passa metade do ano em Portugal. Há outros que por cá vivem, como Duda, o guitarrista da lendária banda de rock Legião Urbana, ou Marcelo Camelo, de Los Hermanos, que juntamente com a sua mulher, Mallu Magalhães, criou, já em Portugal, a Banda do Mar.

Nelson Mota, escritor e um dos críticos musicais mais considerados no Brasil, também vive atualmente por aqui. Assim como Antônio Villeroy, compositor muito gravado, autor de uma parte considerável da obra de Ana Carolina.

Entre os músicos brasileiros em Portugal, é importante falar do Couple Coffee, de Luanda Cozetti e Norton Daiello, que há muito vivem em Portugal. Luanda é filha de Alípio de Freitas, destacado militante antifascista em Portugal e no Brasil, e na discografia da sua banda encontra-se, por exemplo, um disco de tributo a Fausto Bordallo Dias.

Também vários elementos agregadores importantes, como o festival de música brasileira Koala ou o Mimo, que tem o Brasil como prato forte, para não falar do Rock in Rio, festival sediado no Rio de Janeiro, com edições com enchentes sucessivas em Lisboa. Isto além das rodas de samba e dos blocos de carnaval que animam a capital e outras cidades.

A ideia mais profunda e agregadora de fusão entre Portugal, Brasil e outras culturas lusófonas é a “Rua das Pretas”. Criada por Pierre Aderne, músico brasileiro residente em Lisboa há 15 anos, junta à mesma mesa samba, fado e mornas, numa espécie de tertúlias musicais, à moda de Vinicius Moraes ou de Amália Rodrigues.

Da equipa da “Rua das Pretas” fazem ou fizeram parte um sem número de brasileiros radicados em Portugal, como Nilson Dourado, Walter Areia, Fred Martins, Diogo Duque, Maria Schaunel, Canequinha, Barbara Rodrix… e por ali passaram tantos outros como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moacyr Luz. Fernanda Abreu, Paulinho Moska ou Luca Argel. É um espaço que afirma Lisboa como capital da música lusófona.

Dentro os músicos brasileiros em Portugal, há dois tipos diferentes de fenómenos. Alguns já eram músicos reconhecidos no Brasil, quando viajaram para cá. Outros, e isso também os torna interessantes, lançaram-se em Portugal e agora procuram um espaço no extenso e concorrido território brasileiro. São casos como Tainá, Nilson Dourado ou Carlos Cavallini. E há outros que em Portugal consolidaram o seu percurso, como Mallu Magalhães, Leo Middea, Isabella Bretz ou Luca Argel.

Dificilmente os músicos não se deixam influenciar pelo sítio onde vivem. E é por isso que, efetivamente, cidades como Lisboa e o Porto se tornam novos polos de criação transversal. Já houve fenómenos importantes como os Buraka Som Sistema, que sintetizaram a vivência cosmopolita e suburbana da cultura da África lusófona na grande Lisboa.

A imigração massiva de brasileiros, com toda a sua criatividade musical, é obviamente um fator de enriquecimento cultural e de transformação, que torna Portugal e, particularmente Lisboa, um dos mais interessantes portos musicais do mundo.

Neste tema falámos com alguns desses músicos, mas haveria muitos outros com quem falar. Um panorama completo da música brasileira no nosso país já não cabe em meia dúzia de página de jornal.

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