“Já viste como aquela pessoa começou a olhar para ti?” No início, o comentário foi encarado como um sinal de cuidado. Catarina (nome fictício), 36 anos e freelancer em marketing, a viver sozinha, em Lisboa, só voltou a pensar nisso quando foi acometida de um crescente mal-estar na companhia da pessoa com quem pensava ter tanto em comum. Do “tens a certeza que vais sair com essa camisola?” ao “achas mesmo que a tua família te apoia?”, cada observação era recebida como uma reprovação subtil.
Após seis meses de convivência íntima, tornou-se evidente que estava perdida, duvidava do seu valor enquanto pessoa e também no local de trabalho, onde se conheceram. Com a pandemia pelo meio, tudo se agravou e a sensação de isolamento abalou-a ainda mais, levando-a a questionar se ele era, de facto, o único a zelar pelos seus interesses, como fazia crer.
“Apesar de ser óbvio que não fazia sentido manter o relacionamento”, reconhece hoje, “passaram três anos até conseguir sair dele”. Foi preciso passar pela experiência do sapo na panela de água fria em lume brando. “Ele entrava na minha casa e começava a gritar, eu gritava também para me fazer ouvir e, no final, ele pedia desculpa, Com isso, fui-me transformando numa pessoa diminuída.”

Os insultos iam subindo de tom e houve alturas em que lhe pediu, em vão, que se fosse embora, mas o dia em que ele vasculhou as coisas dela e reagiu da pior forma – “não acredito que andaste com esta pessoa”, “és isto e aquilo” – foi o princípio do fim. “Para o obrigar a sair, comecei a ligar para a Polícia e ele empurrou-me.”
Separaram-se, fizeram as pazes – a validação típica “eu sei que errei, tens razão”, mantinham-na “presa” –, mas o mal estava feito. “A possibilidade de as agressões escalarem era grande; um dia ganhei coragem, era melhor ficar por ali”, confessa Catarina.
A separação representou dois penosos anos. “Mesmo depois de ser alertada pelas amigas, eu não estava preparada para decidir antes”, recorda. Ambos saíram da empresa onde se tinham conhecido, cada um seguiu o seu caminho. Apesar disso, continuou a receber mensagens ofensivas e receava vê-lo à sua porta. Não foi fácil voltar a confiar em potenciais parceiros, mas conseguiu sair do calvário: “Estou num lugar bom e estável, e sem a psicoterapia teria sido mais difícil sair de um relacionamento tóxico que me magoou tanto.”
Ninguém está imune a passar por um calvário como o de Catarina, variando apenas o grau de perigosidade e a extensão dos danos que pode causar. A maioria das vítimas não percebe os riscos envolvidos até que algo grave aconteça e, por vezes, com desfechos trágicos. De que falamos quando falamos de relacionamentos tóxicos?
Coisa ruim
Comecemos pelas histórias dramaticamente reais e recentes que chocaram a opinião pública: a arqueira americana Tracy Otto, cuja presença nos paralímpicos é indissociável das agressões quase fatais do ex-companheiro, às mãos de quem ficou paraplégica; a maratonista ugandesa Rebecca Cheptegei, que não resistiu às queimaduras sofridas após o marido lhe atear fogo diante das filhas; a francesa Gisèle Pélicot, maltratada e drogada pelo cônjuge de longa data e violada vezes sem conta, a mando dele, por vários homens, ficando destruída por dentro e por fora, o que a levou a tornar o julgamento público.
Na longa lista de abusos com contornos criminosos (e muitas vezes impunes), destacam-se as condutas de assédio e de humilhação e a pornografia de vingança (partilha não consentida de conteúdos íntimos de mulheres), que conta com, pelo menos, 70 mil homens ativos num canal português do Telegram.
Num país cujos costumes só são brandos na aparência, a violência doméstica e no namoro e o número de mulheres assassinadas envergonha-nos (ou deveria), mas, infelizmente, não estamos sós: desde 1996 que a Organização Mundial da Saúde declarou a violência como um problema global de saúde pública (inclui o abuso e a negligência de pais e tutores e agressões cometidas por parceiros íntimos).
Está por apurar se o flagelo é sintoma de uma sociedade doentia ou algo inerente à condição humana. Hoje, porém, o foco parece deslocar-se para a parte submersa do icebergue, mesmo se o processo se afigura moroso e ambíguo. Por exemplo, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Perturbações Mentais (DSM-V) não contempla critérios de diagnóstico para os relacionamentos tóxicos – vínculo experimentado como doentio, desgastante e destrutivo –, embora faça referência à perturbação relacional, marcada por “padrões persistentes e dolorosos de sentimentos, condutas e perceções entre dois ou mais parceiros numa relação pessoal importante”.
Num artigo recente publicado na revista Newsweek, o perito em saúde mental Aaron Steinberg fez saber que as relações nocivas no quotidiano são fruto (ou erva daninha) da “incapacidade de trabalhar em equipa”, que se traduz em atitudes abusivas, comportamentos negligentes e implicações constantes, com uma ou ambas as partes a colocarem o problema na outra, intoxicando o relacionamento. Por este caminho, ele torna-se “vazio, pesado e sombrio”.
Na ausência de um esforço mútuo e genuíno, basta tocar na batata quente para acionar e manter mecanismos de ataque e defesa (o congelamento também é uma resposta, típica em situações traumáticas). Assim, quanto mais se tenta mudar, mais tudo fica na mesma. À medida que a escalada e a assimetria de poder se acentuam, vêm as traições, e porventura impensados atos criminosos.
Pobres criaturas
“Dizer que se está num relacionamento tóxico é um eufemismo”, afirma Carla Ferreira, assessora técnica da direção da APAV – Apoio a Vítimas de Violência Doméstica. A criminóloga frisa que “é preciso chamar as coisas pelos nomes”. Por exemplo, “uma relação abusiva com diferentes graus de violência, física, psicológica, sexual ou outra”.
Os dados da rede nacional da APAV são inequívocos: entre outubro a dezembro do ano passado, foram participados 30 279 crimes de violência doméstica (menos 0,4% do que no ano de 2022) e atendidas 1 296 pessoas (1,7% do sexo masculino), um valor acima do registado no período homólogo de 2022 (com 1 441 pessoas apoiadas, sendo 1,2% homens).
Apesar da ligeira diminuição dos homicídios voluntários nessa janela temporal (de 28 para 22), as estatísticas entre 2021 e 2023 evidenciam uma realidade dramática, que é também um problema de saúde pública: anualmente, cerca de 30 mulheres assassinadas por homens; mais de 64 mil crimes cometidos (ameaça/coação e violação de domicílio ou perturbação da vida privada são os mais comuns), a maioria (68,8%) no masculino.

Como se lida com isto? “Não se pode assumir, por sistema, a violência como doença”, atira Carla Ferreira, justificando: “Quando nos procuram e dizem ‘só em casa é que ele é assim’, depreende-se que, noutras situações, controla os impulsos.”
Quem desenvolve estudos sobre violência sexual, género e média também tem uma posição nesta matéria. Para a investigadora Maria João Faustino, doutorada em Psicologia pela Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, “a linguagem é uma ferramenta de poder”, pelo que “colocar a tónica da toxicidade na relação neutraliza a violência exercida e transmite uma ideia de reciprocidade, na maior parte das vezes falaciosa e desprovida de qualquer análise das dinâmicas em questão”.
A também coautora do livro #Me Too – Um Segredo Muito Público – Assédio Sexual em Portugal (Avenida da Liberdade Editores), lançado em junho, aponta para um perigo tácito: “Presume-se que ali não há inocentes ou santos, que são precisos dois para dançar o tango ou que os dois são adultos, isso é lá com eles.” Assim se patologiza o comportamento das vítimas e se abre espaço para retrocessos: “Estamos perante um novo ‘entre marido e mulher, ninguém mete a colher’, que nos demite da responsabilidade de intervir face a alguém intratável no trabalho, ou que agride a mulher, cometendo um crime.”
A falha do macho alfa
Aqui chegados, como encarar uma expressão que também está a dar que falar, conhecida por masculinidade tóxica? “Assenta em comportamentos que têm a ver com a forma de socializar; não colaborar nas tarefas domésticas ou nos cuidados aos filhos, por exemplo”, esclarece Tiago Rolino, jurista e investigador no Observatório Permanente da Justiça do CES – Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra. É melhor falar em “masculinidades hegemónicas”, que se pautam pela “agressividade, a coragem temerária e a função provedora, aos olhos da sociedade” e onde está presente a hierarquia de poder: “As relações de género, binárias ou não, têm o chapéu do sistema patriarcal, que abarca os socialmente favorecidos – brancos, cisgénero e de classe média ou alta.”
Durante a conversa com uma amiga, Tiago Rolino reconheceu em si comportamentos hegemónicos, abraçou o ativismo e fez parte do projeto EQUI-X, do CES, de que resultou o Manual de Promoção de Igualdade de Género e de Masculinidades Não Violentas, recomendado pela Direção-Geral da Educação.
A meta é levar os jovens, mas não só, a questionarem estereótipos e a violência baseada no género (homofobia, superioridade, etc.), transformando padrões. No podcast Um (Outro) Género de Conversa, Rolino admitiu que este é um desafio diário e não isento de resistência “pelo medo de perder privilégios”.
O medo, pois. Não se acuse alguém de ter uma positividade tóxica (o adjetivo está em todas as frentes!) se vislumbrar sinais de evolução no meio dos abalos a que vamos assistindo na paisagem mediática, envolvendo figuras que dirigem empresas e nações.
E vem-nos à memória o carismático filme Magnólia (1999), de Paul Thomas Anderson, onde há uma mulher e um homem que não falam com os respetivos pais. Ela acusa o pai de a ter abusado sexualmente e ele nunca perdoou o pai por abandonar a mulher, diagnosticada com cancro, deixando-a entregue aos cuidados do adolescente, então com 14 anos.
Vemo-lo na fase adulta, como guru de autoajuda e criador do sistema Seduz e Destrói, onde ensina homens que se sentem perdidos a usarem técnicas infalíveis para manipular e ter sexo com mulheres. Até que chega o dia em que é chamado a ver o pai, em estado terminal: “Não vou chorar por ti”, avisa, enquanto solta a raiva, o ódio e a mágoa de um homem ferido e frágil, rendendo-se, por fim, num vale de lágrimas catártico (e que valeu a Tom Cruise uma nomeação para o Óscar de Melhor Ator Secundário).
Maus hábitos
E agora, as senhoras. Serem as principais vítimas ofusca uma realidade tabu. Delas se diz que podem ser campeãs na arte da manipulação e da perfídia, em arenas várias. Francisco (nome fictício), 50 anos e designer no ramo editorial, não imaginava que haveria de ser alvo de bullying laboral por parte de uma chefia que não respeitava limites. “Eu tinha de completar tarefas quando, como e às horas que ela queria; à noite e aos fins de semana, recebia emails e telefonemas para tarefas que podiam ser feitas no horário de trabalho”, recorda. O tom prepotente em que se dirigia a ele diante dos colegas era outro tormento: “Falava alto quando me chamava, questionava as minhas competências e fazia comentários do tipo ‘tu é que sabes’ ou ‘a responsabilidade é tua’; nesses meses, tive insónia e crises ansiosas quando ia trabalhar.”
Cabisbaixo, apático e com um sentimento de vergonha, Francisco aguentou estoicamente. “Nunca perdi a razão e lidava com aquilo com paninhos quentes; foi um alívio quando ela saiu, mas as marcas continuam cá”, desabafa. Hoje, imagina como seria se a tivesse enfrentado, sem medo de perder o emprego, mas sabe porque não o fez: “Não fui educado dessa forma e só quero fazer o meu trabalho.”

“Onde há uma hierarquia, há relações de poder e, sempre que há relações de poder, há luta por ele.” A afirmação é do economista e investigador João Carvalho. Autor de uma revisão de estudos publicada este ano, na revista académica Acta Psychologica, onde propõe um modelo para analisar as relações de poder nas empresas com as dimensões social e do ego (quatro perfis: o imperador, o líder, o controlador e o apoiante), o docente na Universidade Portucalense lembra que “sempre houve relações tóxicas e assimetrias de poder que resultam em condutas indesejadas. É humano, o problema está no grau.”
Fazendo uma alusão ao anedotário empresarial, onde o papel do vilão toca a todos – “a chefia, que não sabe liderar, e o subordinado, para quem ele é um alvo a abater!” –, adianta: “Em ambientes competitivos, as pessoas não são suficientemente leais e cedem à mentira e ao engano por terem ganhos pessoais com isso.”
Houve avanços sociais e legais no sentido de travar e sancionar o assédio sexual e moral, as prateleiras douradas e outros estratagemas que resultam da “combinação entre o apelo do poder e a má formação individual”. Como se dá a volta, então? “Entre andar no psicólogo para manter um emprego onde se é alvo de toxicidade e sair para não adoecer, escolheria a segunda hipótese, mas não é fácil”, admite João Carvalho. Outra possibilidade é “não se deixar humilhar nem aceitar o que passa dos limites, fazendo cumprir as leis”.
De pequenino…
Mais do que deixar correr até que surjam chatices piores, impõe-se evitar chegar lá, na família e na escola. Margarida Pacheco coordena o projeto ARt’Themis+, da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), que visa, entre outras metas, promover valores que fomentem a participação equitativa na vida pública e privada. No programa de prevenção da violência de género, em vigor há dez anos nas escolas, clarificam-se e desfazem-se mitos. Por exemplo, “saber distinguir o ciúme positivo daquele que é tóxico; o primeiro não envolve comportamentos controladores e o segundo leva o outro a sentir-se manipulado ou ameaçado, até numa relação de amizade”.
O Estudo Nacional sobre Violência no Namoro, realizado pela UMAR e divulgado no início do ano, mostra que os comportamentos abusivos continuam a ser legitimados por uma grande percentagem (68,1%) de jovens e 63% já foram vítimas deles numa relação íntima. “O controlo (55% das respostas) foi o mais aceite entre os jovens”, sublinha Margarida Pacheco, detalhando que “para muitos, pegar no telemóvel do outro, proibi-lo de estar ou de falar com uma pessoa amiga ou colega ou aceder às suas redes sociais sem permissão não são vistos como comportamentos que desrespeitam a liberdade do(a) companheiro(a)”.
Sem consciência disso na infância e na adolescência, a vida adulta pode complicar-se. Fernando Almeida, psiquiatra e docente na Universidade da Maia, assinala a “maior vulnerabilidade ao sofrimento disfuncional, à perda de autonomia ou à dependência inadequada”. E exemplifica: “Um filho depende excessivamente da mãe e vice-versa, não sendo livres para fazerem a sua vida; namorados que se maltratam e dão cabo da saúde mental um do outro; uma avó e um neto que a manipula.” Manter-se nestes enredos pode ser crítico, mas a psicoterapia é uma via para reduzir a toxicidade ou sair deles.
As pesquisas sugerem que há ciclos de vulnerabilidade intergeracional e a investigadora Paula Mena Matos sabe disso. A diretora do Centro de Psicologia e docente da Universidade do Porto explica porque é que algumas pessoas ficam em relacionamentos que lhes fazem mal: “Quem cresce em dinâmicas familiares que abafam a expressão de emoções, pensamentos e desejos pode sentir mal-estar e não aprender, até por lhe faltar vocabulário, a lidar com isso.” Não admira que, mais tarde, “desejem muito uma ligação íntima e, ao mesmo tempo, entrem nela com a expetativa de ser abandonadas, anulando-se, se for preciso, em relacionamentos muito desiguais.”
A qualidade dos vínculos precoces irá dizer se a pessoa sente condições para ser ela própria: “Uma pessoa emocionalmente segura é mais capaz de gerir um processo de separação e de individuação, mesmo vivendo em casa dos pais, ou após sair e voltar lá.”
“Desintoxicar”
No famoso estudo Whitehall II, que acompanhou mais de dez mil pessoas durante 12 anos, apurou-se que aquelas que mantinham relações tóxicas tinham maior probabilidade de sofrer problemas cardíacos face às outras, cujas relações próximas não eram negativas.
Nesta linha de estudos, o psicólogo Jaime Grácio, investigador na Fundação Champalimaud nas áreas do Stresse e da Ansiedade, menciona a descoberta acidental de Robert Sapolsky, enquanto estudava o impacto das hierarquias e dos relacionamentos na saúde de um coorte de babuínos. Numa visita de monitorização, em África, o cientista da Universidade de Stanford não queria acreditar no que viu: “Os alfas tinham morrido todos, pondo fim a décadas de trabalho. Porém, continuou a estudar o bando e, para seu espanto, ele prosperou.” A conclusão a que chegou é digna de registo: “As relações de poder e a competição prejudicam a prosperidade dos grupos sociais.”
Voltando aos humanos, e ao universo feminino, fomos ao encontro de Diana Cruz, psicóloga clínica, terapeuta familiar e autora do livro Não é Amor, é uma Relação Tóxica – Plano Detox para Acabar com a Toxicidade Emocional (Manuscrito), publicado no final do ano passado (ver entrevista). “A ideia surgiu a partir de mulheres que acompanhei e me falavam de relações tóxicas que as destruíram; eu mesma passei por isso na esfera laboral e decidi clarificar o termo no contexto amoroso.”
As reações das leitoras surpreenderam-na: “Identificaram-se bastante e houve quem comparasse o mal-estar relacional a estar escondida na canalização de uma casa.” Também conheceu homens que foram vítimas e pessoas que identificaram dinâmicas tóxicas no seio da família. Por exemplo, filhos que sempre viram a mãe como física ou emocionalmente frágil, adotando uma postura cuidadora face a ela e, muito mais tarde, sentem repulsa quando percebem ter sido manipulados de forma dissimulada” (veja-se o premiado filme de João Canijo Mal Viver).
No livro, a terapeuta deixa pistas para transformar um romance destrutivo numa oportunidade para se reinventar e voltar a confiar no amor. E, acrescentamos nós, de olhos abertos.
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