Quando celebramos o poder transformador das novas ideias e soluções, da inovação e da criatividade, como acontece a propósito do Dia Mundial da Criatividade e Inovação, é impossível não olhar para este tema, sobretudo quando se trata da área da saúde, sem fazer uma reflexão sobre a questão do acesso. Num setor onde a inovação pode, literalmente, salvar vidas, continuam a subsistir obstáculos que esmagam o potencial criativo e impedem que a inovação chegue a quem dela mais precisa.
Isso significa que, quando estamos a falar da inovação na área da saúde, especialmente ao nível do avanço em forma de novos tratamentos e do desenvolvimento de medicamentos inovadores, não devemos considerar apenas o progresso técnico ou científico que esses avanços configuram, mas também é imperativo contemplar a tradução deste progresso em benefícios reais para os doentes. E é aqui que enfrentamos desafios que têm tanto de importante como de urgentes. Falo de processos burocráticos extensivos e da rigidez de normas e de estruturas públicas, que muitas vezes atrasam ou dificultam o acesso a tratamentos que já existem, com consequências que podem ser devastadoras para os doentes.
Existem dois tipos de inovação: a inovação incremental, que nos tem trazido, ao longo do tempo, incrementos inegáveis a nível da sobrevivência global e da qualidade de vida dos doentes; e depois temos a inovação disruptiva, que é aquela de que hoje em dia se fala cada vez mais, associada às chamadas terapêuticas dirigidas, que tem o potencial de mudar completamente a forma de abordagem de uma doença.
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Quer uma, quer a outra, são importantes para aumentar a sobrevida dos doentes e a sua qualidade de vida. E todas são fruto de investigação e de um investimento enorme de tempo e recursos, que se vai refletir em resultados também estes enormes. É verdade que os sistemas de saúde enfrentam custos consideráveis ao adotar estas inovações. No entanto, quando reconhecemos que muitos dos beneficiados são pessoas em plena idade produtiva – cidadãos que podem manter a sua vida ativa, podem continuar a ser produtivos, podem continuar a tratar da família e a ter a sua vida plena, vida que eles têm o direito de ter, contribuindo para a sociedade com o seu trabalho e para a família com a sua presença-, então deixamos de falar de custos, e passamos a olhar para estas contas como um investimento com retorno garantido.
Ainda assim, continuamos a ter olhares redutores para um processo que nada tem de simples. E continuamos também a ter exemplos de terapêuticas, fruto de um trabalho de criatividade e inovação que envolve anos e muitas pessoas diferentes, com um valor para a saúde e impacto potencial difícil de quantificar, sobretudo quando se trata de prolongar vidas ou melhorar a sua qualidade, presas em camadas de aprovações regulatórias ou sistemas de financiamento inflexíveis.
E embora as regras sejam, mais do que necessárias, essenciais, assim como as normas que garantem a segurança, a eficácia desta inovação e o seu valor, o excesso de burocracia, quando não equilibrado, torna-se um bloqueio ao progresso e uma barreira para a equidade em saúde.
É que, por detrás dos conceitos abstratos, além das estatísticas e dos números, há doentes, há pessoas e há também evidência de resultados clínicos. Não podemos esquecê-lo ou ignorar que a saúde é um direito, e não um privilégio. Desta forma, a aposta na inovação implica também um trabalho em prol da democratização do acesso a medicamentos e tratamentos.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Não é por acaso que o Dia Mundial da Criatividade e Inovação tem este nome. Poderia dar apenas destaque à criatividade, ou focar-se só na inovação. Mas de facto, a criatividade é um pré-requisito necessário para a inovação. É assim em todas as áreas e também não o poderia deixar de ser na Saúde.
Nesta área o impacto da inovação é inegável, através dos avanços na inteligência artificial, na telemedicina e nas terapias digitais, que em pouco tempo passaram de meras promessas a realidade, materializadas não só em diferentes ferramentas, mas num potencial transformador da prestação de serviços de saúde, capazes de a tornar mais eficaz, acessível e economicamente sustentável e, ao mesmo tempo, melhorar o acesso aos cuidados de saúde.
A revolução criativa na saúde promete assim otimizar diagnósticos, tratamentos e processos administrativos, oferecendo um caminho sustentável para um futuro onde a excelência em saúde não implica necessariamente mais, mas sim melhor despesa. São ferramentas que podem facilitar a gestão de doenças crónicas, antecipar diagnósticos, personalizar tratamentos e muito mais.
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Ao melhorar a saúde e a longevidade das pessoas podemos ainda aumentar a produtividade económica: uma população mais saudável é também, uma população mais produtiva, que falta menos ao trabalho por doença e contribui mais eficazmente para a economia. Logo, a inovação na saúde pode servir como um catalisador do desenvolvimento económico, um motor da economia, de criação de emprego e de competitividade global.
Em Portugal, casos de sucesso e exemplos desta inovação não faltam, assim como não faltam mentes criativas, nas equipas médicas, nos meios académicos e na indústria farmacêutica. Constantemente são geradas ideias com verdadeiro potencial revolucionário e trabalho de equipa, entre empresas farmacêuticas, startups, universidades e outras organizações, que continuam a acreditar a trabalhar por um ecossistema nacional mais robusto de inovação em saúde.
Mas ainda muito há por fazer. Os números falam por si: em 2022, foram gastos 25.370,2 milhões de euros em saúde (10,5% do PIB, ou 2.463,4 euros per capita), com um aumento de 5,6% face ao ano anterior; em 2023, segundo o Instituto Nacional de Estatística, este investimento cresceu mais 4,7% em termos nominais. Esta tendência ascendente sublinha a urgência de abraçarmos soluções verdadeiramente inovadoras, não apenas para elevar a qualidade e eficiência dos serviços de saúde, mas também para conter a crescente espiral de custos.
Nem sempre temos é a capacidade de ultrapassar os obstáculos à inovação que continuam a existir no País. A burocracia é ainda uma palavra feia, que impede o desenvolvimento da inovação e a sua adaptação às necessidades locais; a falta de capacidade de investimento é outro dos obstáculos, a que se junta, muitas vezes, uma falta de visão que permita o posicionamento de Portugal como líder em inovação nesta área.
Da lista de desafios faz ainda parte o elevado custo da investigação e desenvolvimento e as questões éticas, associadas a tecnologias como a inteligência artificial, o que exige medidas para garantir o seu uso responsável e equitativo.
É preciso olhar para a inovação tendo em conta todo o seu potencial, porque as nações que investem na inovação em saúde não têm como resultado apenas uma melhoria dos seus sistemas de saúde, mas conseguem posicionar-se como líderes na economia global, o que se traduz em poder económico e capacidade de impulsionar a competitividade global.
Em suma, a inovação na saúde, embora desafiadora, é um investimento essencial no futuro coletivo. Com o tempo, trará benefícios inestimáveis, vantagens significativas e um bem-estar comum para todos. É crucial, portanto, que continuemos a investir e a apoiar iniciativas inovadoras, pois elas são a chave para um futuro mais saudável.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
As chamadas “tarifas recíprocas” de Donald Trump ainda não entraram em vigor, mas já estão a provocar estragos em várias empresas portuguesas que exportam os seus produtos para aquele mercado.
Em 2024, Portugal exportou mais de 5,3 mil milhões de euros de bens para os EUA, o que equivale a 6,8% das nossas vendas ao exterior. Ao todo, são 4 255 as empresas portuguesas que vendem os seus produtos para aquele país e, destas, 624 têm a totalidade das suas exportações concentrada nos EUA.
Os setores de atividade mais expostos são o dos medicamentos, cujas vendas para os EUA totalizaram 1,16 mil milhões de euros, que numa primeira fase não iriam ser abrangidos pelas tarifas, mas, face à imprevisibilidade das decisões de Donald Trump, o setor mantém-se prudente sobre o futuro.
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Os produtos petrolíferos surgem em segundo lugar desta lista, com um valor de vendas a rondar os mil milhões de euros nos EUA, e também estes poderão ficar excluídos dessa lista. Segundo o AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal), cerca de 44,5% dos produtos que vendemos para os EUA poderão estar isentos destas taxas.
O mesmo já não poderão dizer outros setores que exportam para aquele mercado, como o dos plásticos e borracha, que ocupa a terceira posição com 340 milhões, e o das máquinas e equipamentos elétricos, cujas vendas para os EUA ascendem aos 295 milhões.
Calçado As exportações para os EUA duplicaram na última década e já ultrapassamos 100 milhões de euros
A Administração norte-americana voltou a adiar, por 90 dias, a data em que os produtos importados pelos EUA passam a pagar impostos alfandegários – que no caso de Portugal e de toda a União Europeia serão de 25% para alguns bens específicos, como o aço e o alumínio, e de 20% para todos os outros produtos que não estejam isentos –, mas os efeitos já começaram a fazer-se sentir na economia real.
“Os Estados Unidos pararam as encomendas de vinhos portugueses e da Europa. Existe uma grande incerteza que fez com que a cadeia de distribuição nos EUA parasse as encomendas de vinhos portugueses e de vinhos da Europa. Neste momento, estamos a enfrentar um problema terrível e não estamos a conseguir vender”, explica Paulo Amorim, presidente da Associação Nacional dos Comerciantes e Exportadores de Vinhos e Bebidas Espirituosas.
Os EUA são um dos mercados mais importantes para este setor, como explica Rui Soares, presidente da Associação dos Viticultores Profissionais do Douro: “Não é tanto o peso do mercado em quantidade, é mais em termos de volume de negócio, porque os vinhos que exportamos para o mercado americano são vinhos muito valorizados e com preços médios muito acima daquilo que comercializamos para outros países.”
Atualmente, o mercado norte-americano compra a Portugal mais de 100 milhões de euros de bebidas alcoólicas por ano.
Ao todo, são 4 255 as empresas portuguesas que vendem os seus produtos para os EUAe, destas, 624 têm a totalidade das suas exportações concentrada naquele país
Paulo Amorim, por sua vez, teme que, quando as tarifas entrarem em vigor, os custos associados “sejam, na sua maior parte, assumidos pelos produtores de vinho”, o que irá tornar a situação ainda mais difícil.
Outro dos setores de atividade que poderão sentir na pele o efeito das tarifas é o do calçado, pois na última década Portugal quase duplicou as suas vendas para aquele país, para perto dos 100 mil milhões de euros, fazendo dele o quinto maior mercado de destino do nosso calçado.
“Exportamos mais de 90% da nossa produção para 170 países, mas consideramos o mercado norte-americano estratégico, pois é a grande aposta da indústria portuguesa de calçado para a próxima década”, diz Paulo Gonçalves, diretor de comunicação da APICCAPS, associação de industriais portugueses do setor.
Apesar das dificuldades, a indústria do calçado não desistirá da sua estratégia. “Estamos no mercado americano para durar. Ainda que não estejamos dependentes de nenhum mercado, acreditamos que, em circunstâncias normais, continuaremos a afirmar-nos nos EUA pela qualidade e pelo serviço do nosso calçado”, garante Paulo Gonçalves, explicando que “entre as economias avançadas, os EUA são o país que oferece melhores perspetivas”, e o calçado nacional “tem hoje muito melhores condições para abordar o mercado norte-americano, nomeadamente na sequência dos investimentos em curso nas áreas de automação e sustentabilidade”.
Segundo o Banco de Portugal, o impacto das tarifas sobre as exportações portuguesas dependerá de vários fatores, como “a magnitude do aumento das taxas aduaneiras sobre cada tipo de bem e o peso destes nas exportações de Portugal para o mercado dos EUA”.
Efeito no PIB
“Este aumento das tarifas poderá resultar numa contração acumulada do PIB da área do euro entre 0,5% e 0,7% ao fim de três anos, com um impacto mais significativo no primeiro ano”, esclarece o Banco de Portugal. Em relação à economia portuguesa, o relatório do banco central admite que “o impacto global dos choques considerados aponta para uma redução cumulativa do PIB em torno de 1,1% no final de três anos, com os efeitos concentrados nos primeiros dois anos”.
Para este organismo, existem setores mais vulneráveis a estas tarifas, como o têxtil, porque 12% das suas empresas apresentavam uma elevada exposição ao mercado norte-americano.
Segundo a Associação Têxtil e Vestuário de Portugal, o impacto das tarifas será “significativo”, mas ainda é difícil quantificar as perdas potenciais.
“Estamos ainda numa fase inicial deste processo e persistem muitas incertezas quanto à forma como os diferentes países visados irão reagir a estas medidas”, disse uma fonte oficial da associação.
Têxtil Segundo o Banco de Portugal, este é um dos setores mais expostos à economia norte-americana
Para o mesmo responsável, citado pela agência Lusa, é ainda necessário perceber como os próprios operadores e consumidores norte-americanos, que serão diretamente afetados, irão responder à nova realidade, bem como qual será a posição final da Administração Trump face a eventuais retaliações.
“Sabemos, desde já, que haverá perdas para o setor, mas neste momento é difícil quantificar com precisão o seu impacto. Trata-se de um setor muito diverso e complexo, com níveis de dependência do mercado norte-americano que variam significativamente de empresa para empresa e de produto para produto”, explicou a mesma fonte.
Os efeitos das tarifas ainda são difíceis de quantificar. Na prática, assim que estas entrarem em vigor, os consumidores americanos poderão ter um aumento dos preços dos bens e baixar a procura, mas, por outro lado, as empresas que exportam poderão tentar suportar parte desse aumento dos custos, baixando as suas margens de lucro.
Segundo um inquérito realizado pela Câmara de Comércio Americana em Portugal, 88% das empresas exportadoras para aquele país admitem que irão sofrer o impacto das tarifas na sua atividade, sendo que mais de metade dizem que os efeitos serão “muito grandes”.
No mesmo documento, 72% dos inquiridos dizem que a probabilidade de investir nos EUA para expandir as operações naquele país é “baixa”, contrariando a ideia de Trump de que as empresas que vendem para os EUA irão montar fábricas no país para poderem vender os seus produtos.
Questionados sobre se a sua empresa pretende ajustar estratégias comerciais para mitigar os impactos das novas taxas, 72% dos gestores disseram que sim, e a maioria irá optar por procurar novos mercados.
O plano português
Para tentar minimizar parte do impacto das tarifas, o Governo anunciou, entretanto, uma série de medidas de apoio às empresas exportadoras.
Trata-se do Programa Reforçar, que engloba verbas superiores a dez mil milhões de euros através de linhas de crédito, garantias bancárias e reforço dos seguros de crédito para exportação (ver caixa Apoio à Exportação).
Na ocasião, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, destacou que Portugal vai continuar a acompanhar o trabalho da Comissão Europeia “com a consciência de que uma pausa é apenas uma pausa”.
O impacto das tarifas poderá resultar numa redução cumulativa do PIB português em torno de 1,1% no final de três anos,com os efeitos concentrados nos primeiros dois anos
“Portugal está ligado aos Estados Unidos da América por uma sólida amizade e uma intensa relação política e económica. Mas, por vezes, é preciso assumi-lo, até com os nossos grandes amigos temos algumas divergências”, continuou Luís Montenegro.
Para o governante, as tarifas são uma ameaça ao crescimento económico mundial e podem resultar num conflito comercial que “não beneficia ninguém”. “Sem alarmismos, sem precipitações, estamos preparados e tomaremos as decisões necessárias para lidar o melhor possível com esta situação desafiante”, rematou.
Por enquanto, as taxas estão adiadas e ninguém consegue dizer ao certo se o plano de Trump irá ou não para a frente. As dúvidas são muitas. Tal como escreveu esta semana o presidente da CIP (Confederação Empresarial de Portugal), Armindo Monteiro, num artigo de opinião: “Sabendo-se da alergia que Trump tem à proporcionalidade e ao bom senso, é melhor prepararmo-nos para o pior. E o pior é a imposição de tarifas à Europa baseadas em contas criativas, que juntam na mesma equação o valor do défice comercial e o valor total de bens importados. Graças a esta fórmula rebuscada, a UE deve preparar-se para tarifas na ordem dos 20% e definir uma estratégia conjunta para proteger os interesses europeus.”
Certezas apenas serão conhecidas no dia 9 de junho, a nova data prevista para a entrada em vigor das tarifas. Até lá, resta às empresas arranjar soluções criativas para não perderem um dos mercados mais importantes para as suas exportações.
Medidas para dar a volta
Mais de dez mil milhões para “mitigar” efeitos das tarifas
O Programa Reforçar foi apresentado pelo Governo, para apoiar as empresas exportadoras e mitigar os efeitos da entrada em vigor das tarifas norte-americanas sobre os produtos importados. O plano prevê não só compensar as potenciais perdas que as empresas exportadoras tenham nos EUA, mas também apoiá-las na procura de novos mercados para substituir a quebra de vendas nos EUA. Tem uma verba total de dez mil milhões de euros e assenta em quatro pilares:
Linha de crédito Banco de Fomento É criada uma linha do Banco de Fomento, com mais de cinco mil milhões de euros, que permite às empresas financiarem-se com garantias competitivas para que possam investir ou reforçar o seu fundo de maneio. Segundo o ministro da Economia, Pedro Reis, as candidaturas serão “fáceis”, pois esta linha está construída com modelos de pré-aprovação e contratação automática.
Nova linha de apoio O Governo vai lançar uma nova linha de 3 500 milhões de euros, com maturidades a quatro e a 12 anos, para suportar o fundo de maneio e o investimento, podendo parte dela ser convertida em fundo perdido e subvenções, de forma a reforçar o capital das empresas mais expostas à volatilidade dos mercados internacionais.
Reforço dos seguros de crédito Incremento dos plafonds em 1 200 milhões de euros para cobrir riscos de exportação, não só em mercados emergentes, mas também em mercados tradicionais. Serão ainda bonificados apólices e prémios, generalizando o acesso sobretudo para PME exportadoras. “Esta era uma reivindicação antiga das empresas”, disse Pedro Reis, que garante tratar-se da “democratização do acesso a estes seguros”.
Promoção da internacionalização Por fim, o Executivo de Luís Montenegro quer expandir os apoios à internacionalização, permitindo às empresas participarem em mais feiras internacionais, reforçarem estratégias de marketing, entrarem em novos canais digitais e aumentarem a sua presença nos mercados externos.
É jornalista, foi correspondente do The Guardian na Escandinávia e, nos últimos anos, tornou-se autora best-seller na área da psicologia e da parentalidade. Não se assume como especialista porque a maioria dos seus livros são escritos a partir da sua própria experiência: viveu 12 anos na Dinamarca, o que lhe permitiu tomar contacto com um quotidiano bem diferente daquele onde nasceu há 45 anos, em Inglaterra. Em Como Educar um Viking (Alma dos Livros, 310 págs., €19,45), conta que tudo começou quando deu por si a “googlar” “melhor machado para crianças” (se isto não chega para despertar o interesse…). A retórica de Helen Russell pode até parecer um pouco proselitista, mas também não restam dúvidas de que é possível encontrar ensinamentos úteis no seu testemunho.
Sobre crianças e parentalidade, todos dizem que não há receitas. Posso concluir que, na sua opinião, existe uma receita chamada “espírito viking”? [Risos.] Não tenho grandes certezas de que vou aperfeiçoar estes métodos, mas penso que existem muitas maneiras de comprovar que os países nórdicos possuem algumas coisas que fazem muito sentido. Estão sustentadas pela Ciência e funcionam, parecem ajudar. Os países nórdicos estão sempre nos tops dos rankings da felicidade, sondagem após sondagem, ano após ano. Portanto, admitindo que existe uma receita, estou a tentar usar o caminho viking. Vi que funciona, em termos científicos. E observei como as pessoas acabam por ser mais gentis, inclusivas, adotam formas de ser mais justas.
Há quanto tempo vive na Dinamarca? Vivi na Dinamarca durante 12 anos, regressei apenas no final do ano passado.
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E regressou para a Inglaterra? Sim, para o Sul. Agora, estou a tentar usar todas estas ideias em Inglaterra.
Que idade têm os seus filhos? Dez anos e os gémeos têm sete.
Em síntese, o que entende por “espírito viking”? Penso que passa muito por dar responsabilidade às crianças, dar-lhes liberdade, tentando ser justo de maneira a que elas não entrem nas ideias hierárquicas, de que algumas pessoas são melhores do que outras ou de que os adultos são sempre fonte de autoridade. Em vez disso, julgo que existe uma maneira de todos estarem prontos para dar um passo à frente ou, pelo menos, pensar sobre isso, deixar as crianças usar os seus cérebros para seguirem os seus interesses. Também acho fundamental que as crianças brinquem muito.
Em Portugal, nos últimos anos, tem havido muitos especialistas a insistir no papel da brincadeira. Concordo absolutamente. É preciso menos ênfase na aprendizagem formal, pelo menos até que as crianças sejam muito mais velhas. É preciso insistir na aprendizagem através da brincadeira, na importância do aprender a colaborar e a comunicar com os outros. Todos estes aspetos são agora acentuados pela questão da Inteligência Artificial, que os torna mais importantes do que nunca. O que nos faz realmente humanos? Sinto que os nórdicos criam os seus filhos com mais liberdade e também com mais responsabilidade, em suma.
Há outra palavra-chave que usa no seu livro: confiança. Acha que se aplica da mesma maneira a todas as latitudes? Certamente, é mais fácil num país com taxas de criminalidade violenta mais baixas. Nestes contextos, compreensivelmente, é mais fácil que os pais deixem os filhos ter essa liberdade. Ainda na semana passada, no último relatório do World Happiness, verificámos que, muitas vezes, subestimamos os outros. O estudo das carteiras perdidas, então, é muito interessante: a maioria das pessoas é simpática e devolve a carteira ao seu dono. A maioria das pessoas não só é gentil e simpática como faz o que está correto: devolve a carteira ao dono. Não sei o que se passa consigo, mas eu cresci num mundo assustador em que qualquer estranho representava um perigo.
O mundo em que as crianças são ensinadas a não falar com estranhos. Sim, a ouvir conselhos desses, como é que as crianças não hão de crescer com medo? O espírito nórdico ensina as crianças a defenderem-se, a serem fortes, a serem vikings, a descobrir o mundo, incluindo através de brincadeiras que envolvem riscos. Até do ponto de vista físico é importante porque, dessa maneira, as crianças têm muito mais confiança no seu próprio corpo. Na escola, isso também tem consequências: as crianças ganham confiança em si próprias, acreditam que as suas ideias valem a pena, sabem defendê-las lá fora. Tudo isto é muito diferente de uma cultura em que as crianças têm de usar uniforme e não são tratadas pelo nome próprio: tens de fazer o que eu digo porque eu sou o professor.
Há evidência científica de que, quando uma criança cresce nesse ambiente, pode de facto ser um adulto diferente? Sim, sim. Cresci num ambiente onde não havia o hábito de elogiar, mas hoje há efetivamente muita teoria em torno da parentalidade que defende que o facto de elogiarmos as crianças permite-lhes não ter um sentido distorcido de si mesmas, permite-lhes que avaliem as coisas por si próprias. Não precisamos de olhar para o mundo exterior para obtermos uma validação. A confiança de que falou há pouco, por exemplo, é fundamental na questão da brincadeira: olhamos para uma árvore e sabemos que, se for preciso, somos capazes de subir para aquela árvore. Isso mostra que temos maior domínio sobre o corpo, mas também propicia a confiança e reduz a possibilidade de virmos a ter fobias. Pensa-se até que pode minimizar doenças como a ansiedade e a depressão. Muitos estudos revelam que, se não permitirmos que os nossos filhos tenham a oportunidade de escalar árvores, de ter brincadeiras com algum grau de risco, é mais provável que eles, na adolescência, quando os patins são muito mais altos, venham a procurar comportamentos de risco muito maiores e, potencialmente, muito mais perigosos. Por isso, considero que é melhor deixá-los correr esses riscos enquanto são pequenos do que envolvê-los, digamos, numa redoma de algodão.
Do seu ponto de vista, tudo o que se investe na infância tem um retorno posterior? O mais possível. No Reino Unido, o Early Childhood Center, encabeçado pela princesa de Gales, tem repetidamente revelado estudos que o demonstram. E isto não interessa apenas às pessoas que têm filhos, também interessa às pessoas que não têm filhos. Porque esta perspetiva tem benefícios financeiros para a própria economia. As crianças da próxima geração também serão os vossos vizinhos e os vossos colegas. Todo o investimento que se fizer numa criança até aos cinco anos de idade, mais tarde, produz efeitos significativos. No Canadá, um estudo também demonstrou que por cada dólar que se investe na educação infantil obtém-se um retorno económico de, pelo menos, 1,5 dólares (pode ir até aos 2,80 dólares).
Portanto, não se trata apenas de defender um certo estilo de vida, “fofinho”, digamos, é também uma aposta económica? Acho muito frustrante que as pessoas olhem para estas ideias de forma simpática, ah e tal, é um estilo de vida confortável. Não é apenas isso: mesmo que as pessoas não queiram saber de crianças, têm de investir na próxima geração. Caso contrário, mais tarde, isso terá consequências financeiras terríveis. Já para não falar da saúde mental. Digo sempre que o meu livro se destina a qualquer pessoa que esteja interessada em perceber por que razão os países nórdicos funcionam. Porque eles investem logo a partir do zero.
Deixe-me fazer uma pergunta um bocadinho provocadora: não há crianças felizes fora dos países nórdicos? Claro que há, claro que sim. Há vários aspetos que é preciso considerar: é evidente que existem diferentes abordagens em relação ao significado da felicidade, que pode ser um conceito muito subjetivo. Também é verdade que existem países, provavelmente Portugal e Espanha, com melhor qualidade das próprias relações familiares. O que achei interessante é o facto de os países nórdicos aparecerem, ano após ano, nos lugares cimeiros dos índices de felicidade. E isso deve-se às políticas públicas e às decisões culturais que foram tomadas ao longo do tempo e que acabam por ser um impacto grande na próxima geração. Sempre soube que não iria viver na Dinamarca para sempre. Mas queria retirar daquela experiência algumas lições que me parecem exportáveis, que julgo que é possível usar noutros países e noutras comunidades. Mas, voltando à sua pergunta, claro que existem crianças felizes noutros lugares do mundo, graças a Deus!
É preciso insistir na aprendizagem através da brincadeira, na importância do aprender a colaborar e a comunicar. Todos estes aspetos são acentuados pela Inteligência Artificial: o que nos faz realmente humanos?
Considera que essas lições não são apenas úteis para as crianças e jovens, mas também para os seus pais? É justamente essa a minha intenção ao publicar o livro. Acho fundamental a ideia de os pais compreenderem que podem relaxar um pouco e não estarem sempre a fazer micromanagement com tudo. Chega, chega de stresse! Estou em cerca de 11 grupos de Whatsapp de pais e observo a aflição de ter filhos e, ao mesmo tempo, ter um emprego a tempo inteiro. É preciso capacitarmos as nossas crianças, de uma vez por todas! Eu, pela minha parte, não sinto que, em 2025, seja capaz de ter três filhos à maneira antiga e, simultaneamente, um emprego a tempo inteiro.
Em Portugal, notícias recentes dão conta de pais que tentam acompanhar os seus filhos, adultos, nas universidades. Não é preocupante? Participei no podcast The Happiness Lab e a Laurie Santos, professora universitária, também me disse que isso estava a acontecer nos EUA. Por isso, são tão importantes as questões da autonomia, da responsabilidade e da independência. Antes ainda de os bebés saberem andar. Na Dinamarca, o facto de as universidades serem financiadas pelo Estado também permite que os jovens não estejam tão constrangidos financeiramente.
Mas o ponto também é: será assim tão fácil aplicar esses modelos a outras culturas e, sobretudo, a outras realidades socioeconómicas, a outros países com outras políticas públicas? Claro que nos países nórdicos é mais fácil, mas tenho estado a fazer isso e, agora, não estou lá, estou em Inglaterra, num lugar com outra cultura e outras políticas. Muitas vezes, sinto-me em contramão, a fazer ao contrário o que todos os outros pais à minha volta estão a fazer. Por exemplo: dar ênfase à brincadeira, à brincadeira ao ar livre, mesmo quando está frio ou está a chover, ou não pôr muita pressão na questão académica. Muitas vezes, acabo por encontrar outros pais online, nesta grande comunidade virtual em que agora também vivemos. Posso fazer muita coisa dentro de casa, coisas que controlo. Ainda outro exemplo: a sociedade inglesa continua muito ligada à questão da classe social e, apesar disso, posso dizer aos meus filhos que eles não são melhor do que ninguém, que não quero saber quanto dinheiro têm os outros, que não me importo se eles são lord ou lady. Posso ensiná-los que a instituição da família se apresenta de muitas maneiras diferentes, posso educá-los sem uma ideia de hierarquia.
Outra provocação: e regras, não há regras no seu modelo? Certo. Gostaria de dizer que não sou, de forma alguma, o especialista. Sou o aluno, estou a aprender. Tudo o que sei provém da psicologia dos países nórdicos, da investigação científica e também dos meus amigos que vivem nos países nórdicos. Em resposta à sua pergunta, os meus amigos diriam qualquer coisa como: as regras são muito simples, “eu sou tua mãe”, “tens de ser simpático comigo”, “tenta não apanhar muito frio”, “sê amável para as pessoas”. Também ajuda bastante explicarmos as razões que estão por detrás das coisas, ainda que isso possa ser um bocadinho demorado e cansativo, sobretudo nos momentos em que estamos mais exaustos.
Tudo isso, também é uma questão de tempo. Sim, claro. Mas a questão não é não existirem regras, é explicar que, se não fizermos determinada coisa de determinada maneira, é inevitável que algo aconteça. Não é fácil, é verdade, mas é mais fácil do que ter um milhão de regras. Se eles perceberem porquê, então, eles têm uma escolha e ganham autonomia em optar.
Há uma certa incongruência entre duas ideias que parecem ser, mais ou menos, razoáveis: os pais não devem ser os melhores amigos dos seus filhos, embora, ao mesmo tempo, devam estar próximos deles do ponto de vista afetivo. Diria assim: os meus amigos dinamarqueses, a minha mãe e o meu pai dinamarqueses, não estariam a tentar ser os melhores amigos dos seus filhos; estariam a tentar ser os seus role models [os seus modelos, um exemplo]. Se quisermos que algo exista na nossa comunidade, devemos voluntariarmo-nos, devemos contribuir. Seja nos impostos, seja nos treinos de basquetebol, seja no que for, todos contribuem. Agora, em Inglaterra, sou voluntária na biblioteca local e no clube de corrida. E os meus filhos veem-me fazer esse voluntariado, é normal.
Já viu a série da Netflix, Adolescência? Está na minha lista para começar uma destas noites [risos].
Também gostava de saber a sua opinião sobre o impacto deste imenso mundo digital no crescimento das crianças e dos jovens. Tenho muito prazer em contar que, desde que escrevi o livro, houve um verdadeiro despertar na Dinamarca na questão da tecnologia. Quando o escrevi, adorei todas as formas como, na Dinamarca, as pessoas se relacionavam com a parentalidade, à exceção da tecnologia, devo dizer. Em relação às crianças, havia este código social em direção à liberdade. Um legado da II Guerra Mundial, adquirido de certa maneira durante a ocupação nazi. Maravilhou-me esta ideia de darmos liberdade às crianças para as ensinar a defenderem-se. O problema é que os dinamarqueses também deram essa mesma liberdade relativamente aos tempos de exibição e aos dispositivos digitais. Durante muito tempo, houve muita relutância em afirmar: não, isto não é bom para os nossos filhos, não fomos criados para isto, não compreendemos o impacto que isto está a ter nas nossas cabeças. Recentemente, na Dinamarca, decidiram tirar os telefones das escolas. Fiquei muito contente. Além de todos os buracos negros que podemos encontrar, como Adolescência revela, também existe a questão do custo-benefício, o tempo que se gasta na internet é tempo em que não se está a tocar um instrumento, em que não se está a brincar com os amigos, em que não se está a ler um livro, em que não se está a construir um Lego… O tempo que se gasta em frente a um ecrã elimina todas estas possibilidades.
O embate entre André Ventura e Rui Rocha (RTP3) não foi verdadeiramente a sério. Melhor dizendo, provocou algumas feridas, mas nada de decisivo.
André Ventura está a anos-luz do líder do Chega nas primeiras prestações televisivas, na pré-história do partido. É sempre perentório, afirmativo e intrusivo no seu discurso e contra o adversário. Observando bem, Ventura não está quieto nem calado por um segundo. Montenegro e Pedro Nuno Santos que tomem nota deste registo. Nada de novo entre a Iniciativa Liberal e o Chega, mas sobressaiu dali uma afirmação categórica e imperativa do líder do Chega: “Vamos ganhar as eleições!” Assim, sem mais. Baseava-se, obviamente, na sondagem do Expresso/SIC que lhe atribuía uns sólidos 21%, sem extrapolações. Estranha sondagem: nenhuma outra confirma ou antecipa este resultado, e isso sente-se nas ruas. O Chega será parceiro num futuro Governo, mas não se sabe ainda quando, nem com quem.
André Ventura: Medalha Coração Púrpura (Purple Heart), por feridas em combate.
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Rui Rocha tem vindo a dominar com mestria o discurso e a sua capacidade oratória e empática. A empatia, aliás, é o segredo para uma vitória. Não demonstrou qualquer receio do Chega, muito pelo contrário, e conseguiu o feito histórico de calar, ou mandar calar, André Ventura. Se estivessem num torneio de tiro aos pratos, Rui Rocha teria desfeito o prato logo ao primeiro tiro, enquanto o líder do Chega só o atingiria ao segundo, e mesmo assim de raspão. Este era um debate muito importante, e quem o venceu foi o líder da Iniciativa Liberal: há eleitores que se cruzam e faixas etárias apetecíveis. A Iniciativa Liberal está a subir, degrau a degrau, o que poderá ajudar na formação de um futuro Governo ou no seu apoio parlamentar. Só resta saber a que horas, no dia 18/19 de maio, Luís Montenegro ou, inversamente, Rui Rocha, pedirá um encontro que em nada terá de secreto.
Rui Rocha: Medalha Estrela de Bronze (Bronze Star Medal), por bravura e mérito na batalha.
O último relatório intercalar da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) revela que são mais de 1,5 milhões os estrangeiros residentes em Portugal, representando 15% dos 10,6 milhões de habitantes do País. Em breve, poderão crescer para 1,6 milhões, depois de concluída a análise dos pedidos de regularização que se encontram pendentes.
Restauração A língua comum facilita a empregabilidade dos brasileiros no atendimento ao público
Este dado surpreendente, que supera em quase quatro vezes o número de cidadãos estrangeiros registados em 2017, resulta de uma política de imigração “descontrolada”, de “portas escancaradas”, que levou “à maior alteração demográfica” das últimas décadas em Portugal – nas palavras do ministro da Presidência, Leitão Amaro –, ou é um reflexo de uma economia dinâmica, em crescimento mais acelerado do que a média dos países da Zona Euro? Os trabalhadores estrangeiros serão demasiados, num País envelhecido, de baixos salários e de escassez habitacional, que nem sempre acolhe os imigrantes da melhor forma? Ou serão poucos, a avaliar pela escassez crónica de mão de obra em setores como a agricultura e florestas, o alojamento e restauração ou a construção, reduzindo o potencial de crescimento económico português e pondo em causa o aproveitamento dos fundos europeus?
Um estudo recente da Faculdade de Economia do Porto (FEP) indica que Portugal precisa de atrair mais imigrantes, para que a economia possa crescer, em média, três por cento, ou até mais, ao ano, e assim continuar a convergir com os países europeus mais ricos. O diretor da FEP, Óscar Afonso, quantificou as necessidades anuais de mão de obra estrangeira em 138 mil novos imigrantes. Mas os números poderão ser superiores. Dados recolhidos pela VISÃO apontam para a falta imediata de 135 mil trabalhadores (nacionais e estrangeiros), só nas três áreas de atividade mais dependentes da força de trabalho imigrante, distribuídos da seguinte maneira: 90 mil pessoas na construção, 5 mil na agricultura e florestas e 40 mil no alojamento e restauração.
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Brasileiros são mais
Nas últimas décadas, Portugal tem sido o destino procurado maioritariamente por cidadãos de língua portuguesa (Brasil e países africanos lusófonos) e, a partir da década de 2000, também por imigrantes do Leste europeu. Atualmente, os novos fluxos são provenientes da Ásia, ao abrigo de acordos para o recrutamento de mão de obra firmados com países como a Índia. Em setores como a agricultura, o turismo e a construção, os imigrantes são incontornáveis e ultrapassam, em alguns casos, mais de metade da força de trabalho disponível.
Se, em 2014, só 7,9% das empresas empregavam estrangeiros, esse número era já três vezes superior em 2023. Segundo um estudo do Banco de Portugal, que traçou um retrato dos imigrantes a trabalhar em Portugal a partir dos contratos de trabalho por conta de outrem, quase um quarto das empresas existentes (22,2%) declaravam ter estrangeiros ao serviço. Em destaque, estava o setor do alojamento e restauração, com 31,1% de imigrantes ao serviço, seguido pelo das atividades administrativas, com 28,1%, e da construção, com 23,2%. O banco central concluía que os trabalhadores brasileiros eram o grupo com maior representação (42,3% do total de estrangeiros), e tinham uma presença dominante em quase todos os setores. A exceção está na agricultura e pescas, onde se destacam as nacionalidades indiana (34,6%), nepalesa (15,3%) e bengali (13,8%).
O contributo dos estrangeiros para a sustentabilidade da Segurança Social é também cada vez maior. Em 2024, os estrangeiros geraram um saldo positivo para a Segurança Social de 2,96 mil milhões de euros e, no ano anterior, de 2,67 mil milhões de euros. Nos últimos quatro anos, esse saldo atingiu 8,7 mil milhões de euros.
Via verde para contratar
O fim do regime da manifestação de interesse, que permitia a qualquer cidadão estrangeiro obter residência desde que estivesse inscrito na Segurança Social e apresentasse um contrato de trabalho, está a criar dificuldades a muitos imigrantes que se veem agora impossibilitados de regularizar a sua situação. No passado dia 15 entrou em vigor uma “via verde” para agilizar a atribuição de vistos em apenas 20 dias a trabalhadores estrangeiros recrutados por empresas nacionais. O protocolo, assinado entre a AIMA e as confederações patronais, que prevê obrigações para os empregadores ao nível da formação, ensino da língua e alojamento dos imigrantes, criou fortes expectativas entre os patrões.
Só para realizar as obras já previstas e calendarizadas no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e no programa europeu Portugal 2030 ‒ como infraestruturas rodo e ferroviárias, unidades de saúde e habitação ‒, o setor da construção civil precisa de mais 90 mil trabalhadores, de acordo com o presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN), Manuel Reis Campos. Fora desta estimativa, estão obras como o novo Aeroporto Internacional de Lisboa, cujo arranque, marcado para 2030, exigirá cerca de 5 mil trabalhadores.
Mão de obra importada A falta de trabalhadores é maior na construção, mas a agricultura também já não vive sem os estrangeiros
Entre os 400 mil trabalhadores que a construção atualmente emprega, Reis Campos avança que cerca de 70 mil (17,5% do total) serão de origem estrangeira, oriundos principalmente do Brasil e dos países africanos de língua portuguesa, mas também do subcontinente indiano (Índia, Paquistão, Bangladesh e Nepal). “Tendo em conta as necessidades de formação e de segurança do nosso setor, é muito importante haver rapidez nos processos.” Mas também “tem de haver regras para acolher os imigrantes”. Aquele dirigente refere ainda que alguns dos trabalhadores indispensáveis “já cá estão”, tornando-se necessário “qualificá-los e retê-los no País, para que não venha a faltar mais mão de obra no futuro”. A “via verde” lançada pelo Governo “pode ajudar” nesse sentido.
A opinião é partilhada pelo presidente da CAP, Álvaro Mendonça e Moura, que estima que metade dos 60 mil assalariados do setor agrícola e florestal seja imigrante. Entre estes, sobressaem os cidadãos do subcontinente indiano, que são já 60% da mão de obra estrangeira, e que estão espalhados por várias regiões agrícolas do País, desde a apanha dos pequenos frutos no sudoeste alentejano, às vinhas do Douro. Para as campanhas agrícolas de 2025, serão necessários pelo menos mais 5 mil trabalhadores, segundo os cálculos da Confederação dos Agricultores de Portugal.
Para Mendonça e Moura, o fim do regime da manifestação de interesse foi “muito positivo”. Considerando que “o País não crescerá se não importar mão de obra”, sublinha que “as pessoas têm de ser tratadas com dignidade e o Estado tem de ser capaz de responder aos pedidos de residência”, algo que não tem acontecido nos últimos 12 anos. Por isso, acredita que a “via verde” do Governo vai “pôr ordem” no fenómeno migratório e concluir os processos “com rapidez, flexibilidade e diálogo”, acrescenta.
Os imigrantes têm sido fundamentais para outro dos setores que se ressente da falta de trabalhadores, com horários dificilmente conciliáveis com a vida familiar. A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) estima em mais de 40 mil trabalhadores a falta de mão de obra, principalmente em alojamentos, cafés e restaurantes de norte a sul do País. Em 2023, o setor empregava 318 mil trabalhadores, entre os quais 93 300 estrangeiros, que representavam 31,1% da força de trabalho. Cerca de 42,2% dos imigrantes eram de origem brasileira, uma vez que a língua comum tem funcionado com um fator diferenciador e facilitado a sua entrada no mercado de trabalho. Mas, de acordo com Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP, o recrutamento de cidadãos do subcontinente indiano é o que mais está a crescer no setor, representando já 25,5% do total. “Socorremo-nos da mão de obra disponível, mas queremos que os imigrantes entrem no País de forma controlada, regulada e legalizada”, diz ainda. Para esta responsável, a “via verde” terá de garantir mais rapidez no processo de legalização dos imigrantes, já que “a economia não se compadece com grandes demoras”.
Não se é filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve impunemente. Coisa que se poderia resumir a um sabedor “filho de peixe sabe nadar”, mas a realidade é que a figura destes pais é de tal forma mítica que a sua sombra lhe pode atrapalhar os movimentos – e, verdade seja dita, Chiara nunca conseguiu repercutir a sua sombra, assim como aconteceu, por exemplo, com Michael Douglas, filho de Kirk; ou Isabella Rossellini, filha de Ingrid Bergman.
O plausível drama de Chiara foi transformado em comédia com o engenho de Christophe Honoré. Marcello Mio é uma comédia desconstruída com um elenco de luxo, atores que gravitam na órbita Mastroianni a fazer de si próprios.
O filme começa como uma sátira que critica o próprio meio, quase que o ridicularizando. Mas depois passa rapidamente à questão da identidade. A identidade de Chiara, que é o centro do filme. Dada a enorme dificuldade de se afastar da imagem dos pais, em busca de uma imagem própria e independente, tem uma espécie de surto psicótico e transforma-se em Marcello Mastroianni.
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Aproveitando as óbvias parecenças, dá-se uma transmutação física e psicológica, levando a ideia até às últimas consequências. Há ao mesmo tempo uma efervescência desafiadora e uma certa decadência nesta viagem que nunca perde de vista o registo de comédia.
O mais gratificante do filme talvez seja mesmo a (falsa) sensação de proximidade destas figuras. A ideia enganosa de que chegamos, de alguma forma, à intimidade da relação mãe/filha de Chiara e Catherine, passando por uma teia onde também se encontram o músico Benjamin Biolay, os atores Fabrice Luchini e Melvil Poupaud, ou a realizadora Nicole Garcia.
De resto, o filme é suficientemente despretensioso para não ir mais longe do que isto. Uma interpretação corajosa de Chiara Mastroianni, que serve de bom entretenimento para toda a família. E não apenas a dela.
Marcello Mio > De Christophe Honoré, com Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve, Fabrice Luchini, Nicole Garcia, Benjamin Biolay, Melvil Poupaud > 122 min
Há uma nova frequência a sintonizar na música portuguesa. Chama-se Mundo Antena e apresenta-se como um disco sob a forma de estação de rádio, no qual nem faltam as vozes de alguns radialistas portugueses. É o álbum que marca o regresso de Ana Bacalhau aos trabalhos de originais, com um conjunto de canções que vagueiam por diversos ambientes e estilos musicais. Um imaginário radiofónico que a artista pretende transpor para o palco, replicando em concerto o ambiente de uma transmissão ao vivo.
Como surgiu esta ideia de ligar o disco a uma emissão de rádio fictícia?
Veio da música que deu o título ao álbum, que fala de duas crianças amigas, que, ao fazerem um trabalho de casa, percebem que pensam de forma diferente dos colegas e da professora, uma delas construindo um mundo alternativo que apenas é captado pela antena da rádio que a outra construiu. Pensei que é uma ideia bonita esta de que a rádio, como forma de comunicação que estimula a audição e a imaginação, nos ajudou a navegar este mundo e nos fez sentir conectados uns aos outros de uma forma que as redes sociais, que apelam mais à visão, não conseguem. É um tributo a um mundo radiofónico que tende a deixar de existir para os mais jovens…
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Daí a participação de nomes como Nuno Markl, Fernando Alvim, Joana Marques ou o histórico António Macedo?
Exatamente, são pessoas que marcam e marcaram a rádio em Portugal, cujo trabalho admiro.
Que importância teve a rádio para si?
Toda. A rádio deu-me as melhores e as piores notícias. Lembro-me como se fosse ontem: acordei, estava eu no Secundário, liguei o rádio, como de costume, e ouvi o locutor a dar a notícia da morte de Kurt Cobain. Conheci alguns músicos e músicas seminais para mim através de programas de autor, e lembro-me de ficar à espera das minhas músicas preferidas para as gravar em cassetes. E a ida dos Deolinda à Antena 3, para tocarmos alguns temas, em 2008, tornou-se viral e ajudou à explosão da banda junto do público. Posso dizer que a rádio teve um papel resgatador na minha vida.
Na digressão do disco, a ideia é fazer o concerto como se fosse uma transmissão ao vivo na rádio
ana Bacalhau
“Mundo Antena” O terceiro disco em nome próprio da ex-vocalista dos Deolinda
Uma das características deste disco é uma grande variedade de temas, ritmos e sonoridades, que tanto passa pelo imaginário pimba, como pela pop mais melosa, o rock ou até blues… Esta “Rádio Bacalhau” acaba por funcionar como imagem da sua carreira?
Não sendo uma coisa planeada, penso que sim. Ouço e gosto de muita música diferente, sem julgamentos, nem tentativas de me colocar em determinada caixa estilística. Assim, quando passo de ouvinte a música, naturalmente encontro em canções muito diferentes pedaços de mim que quero cantar.
Este imaginário radiofónico será transposto para o palco nos concertos de apresentação do disco?
Sim, o palco será feito à imagem do que será um palco num estúdio de rádio, daqueles onde vamos tocar algumas músicas ao vivo nos programas da manhã. Na digressão do disco, a ideia é fazer o concerto como se fosse uma transmissão ao vivo na rádio.
Antes dessa digressão, terá um concerto especial, dedicado ao 25 de Abril [A Liberdade Está a Passar por Aqui, nas Caldas da Rainha, no dia 24]. Como surgiu este espetáculo e qual será o repertório?
Esse concerto foi desenhado para celebrar Abril. Tem temas meus, claro, mas canto, sobretudo, canções que fizeram a história da Revolução e da liberdade em Portugal. Canto Sérgio Godinho, Zeca Afonso, José Mário Branco, Paulo de Carvalho e lanço os áudios das senhas da Revolução, bem como alguns poemas de Sophia de Mello Breyner e Natália Correia. Foi criado para pensarmos em conjunto estes 51 anos em liberdade e celebrarmos um cancioneiro rico em esperança e sonhos, alguns concretizados, outros por concretizar.
Em cima da grande mesa corrida de madeira, o epicentro deste atelier de design para pessoas com mais de 60 anos, encontram-se pedaços de tecido com imagens tipicamente japonesas. A debruar os contornos dos desenhos, coloridas linhas de bordar dão um toque personalizado ao trabalho artístico. Estas são algumas das 150 peças, ultimadas nas vésperas da partida, que seguiram viagem até ao Japão, nas malas dos dois mentores do projeto A Avó Veio Trabalhar e de três avós, que é como carinhosamente chamam a quem aqui escolhe passar os dias.
Esta aventura que se inicia com um périplo de quase 24 horas de escalas até chegarem ao continente asiático tem um culpado declarado: o jornalista japonês Yukio Mizutani, 53 anos, que atualmente vive com a sua família (mulher e dois filhos pequenos) em Torres Vedras.
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Descoberta As mãosdestas avós seduziram Yukiode tal forma que o jornalista já escreveu dois artigossobre o projeto paraa imprensa japonesa
Foi ele que um dia, em passeio pela Poço dos Negros, na altura uma rua lisboeta em ascensão turística, deu de caras com a loja desta associação que quer ajudar as pessoas a envelhecer de forma positiva, combatendo, com alegria, a solidão dos mais velhos.
Yukio gostou tanto ou tão pouco do que descobriu que escreveu dois artigos sobre o projeto e as avós que o preenchem para revistas japonesas. Isso foi pouco antes de decidir mudar-se para Portugal, logo a seguir à pandemia.
Depois, tornou-se amigo da casa e levou alguns produtos saídos destas mãos para serem vendidos na maior livraria do Japão. O êxito foi tal que, no seguimento desses pop-ups, o embaixador de Portugal em Tóquio endereçou um convite à associação para se fazer representar no país do sol nascente, mostrando como é possível tratar os mais velhos com dignidade, ocupando-os de forma válida. Daí a estarem três avós a caminho do Japão foi um ápice – ao mesmo tempo que o mundo está de olhos nesse país por causa da exposição universal de Osaka, que se inaugurou no dia 12 de abril.
Aproveitar até ao tutano
Yukio está expectante, do outro lado do mundo. Enquanto dá os últimos retoques nesta digressão, lembra as relações estreitas que sempre existiram entre os dois países: “Antes de mais, o Japão tem uma longa e profunda relação com Portugal, o primeiro país ocidental a visitar-nos, há cerca de 500 anos. Recebemos muitas heranças, incluindo o cristianismo e algumas armas. Em termos culturais, várias palavras japonesas são de origem portuguesa.”
Tal como por cá, o Japão debate-se com uma das populações mais envelhecidas do planeta e também bastante solitária (aproximadamente 125,7 milhões têm mais de 65 anos, o que representa cerca de 30% dos habitantes do país). E por isso se espera que, ao disseminar este projeto por lá, ele possa desencadear ações nas comunidades e em quem enfrenta desafios semelhantes. “Acreditamos que muitas pessoas se sentirão encorajadas pelo ato de uma mulher idosa viajar de Portugal para o Japão de avião”, nota o jornalista.
Nesta excursão de 15 dias, a comitiva de cinco portugueses visitará Nagasaki, Fukuoka (cidade de onde é natural a família de Yukio) e Tóquio, com um programa bastante intenso – para aproveitar a experiência até ao tutano. Ao ombro terão sempre pendurados os coloridos tote bags que imprimiram com o mote que os alimenta: “Old is the new young.”
Na primeira paragem, haverá visitas de cortesia ao vice-governador da província de Nagasaki e ao cônsul honorário de Portugal (uma figura de relevo no mundo dos negócios), experimentarão vestir um quimono em Dejima, um antigo entreposto comercial português, e aprenderão a fazer bordados exclusivos da região. E no meio disto tudo, ainda serão entrevistadas por um youtuber local.
“Ela fê-lo para si”
Cada trabalho é único, feito à mão por uma “avó”. Isso nota-se nas etiquetas, personalizadas com a fotografia de quem o finalizou, com tempo, para valorizar a dedicação e o talento (“Ela fê-lo para si”).
Há dez anos que o projeto A Avó Veio Trabalhar se esforça por combater o idadismo e, sobretudo, a solidão de quem já ultrapassou os 60. A designer Susana António teve a ideia de criar um estúdio criativo que desse guarida às avós, fazendo com que se sintam úteis, valorizadas, numa altura da vida em que a sociedade tende a descartá-las. Juntou-se, para isso, ao psicólogo Ângelo Compota e pensaram numa forma original de atrair as pessoas (os avôs também são bem-vindos), fugindo da lógica de centro de dia. Hoje, já têm núcleos nos Açores e em Cascais, com apoio das autarquias.
Aqui impera a liberdade. O atelier/loja de Lisboa está aberto todos os dias, das nove às cinco e reúne cerca de uma centena de avós. Há quem venha uma vez e não volte. Há quem – a maioria – não perca a oportunidade de se sentar à mesa e de fazer manualidades que depois são vendidas para suportar financeiramente o projeto. Sempre com muita animação e vivacidade. Além destes trabalhos artesanais, também participam no Carnaval da Colombina Clandestina, servem pequenos-almoços na discoteca Lux, passeiam-se pela cidade, vão ao cinema, ao teatro ou a festivais.
Em Fukuoka, está planeado que as avós organizem um workshop para ensinar bordados a um grupo de mulheres, algo a que já estão acostumadas, porque o fazem com alguma regularidade em Lisboa. Em troca, receberão aulas de cozinha tradicional japonesa, de que todos são muito apreciadores.
Por fim, em Tóquio, responderão a perguntas numa conferência de imprensa, além de serem recebidos na Embaixada de Portugal, onde farão um novo workshop para mostrar como se trabalha na Avó. Por fim, as avós serão entrevistadas na televisão nacional, num programa da tarde.
Espírito de viagem de finalistas
Na capital ficarão hospedadas num hotel que se dedica à revitalização da comunidade e ao empoderamento das mulheres, e que apoia esta viagem. Como pagamento da estada, serão protagonistas de uma campanha publicitária. O mesmo tipo de “negócio” acontece com a guest house em que estão a dormir em Nagasaki – pela dormida farão um jantar português comunitário.
Até à hora da partida, ainda não tinham solução para as noites em Fukuoka. Mas o espírito da associação é ao estilo viagem de finalistas. “Vamos lá! É sempre uma aventura, mas havemos de conseguir! Nem é preciso muito conforto”, avisa Susana António, sem pinga de receio.
Nem tudo poderá ser apenas trabalho. Yukio garante que também haverá diversão pura e dura: “Vamos comer sushi, fazer karaoke e aprender origami.” E a Avó tem um desejo especial: ir a um Cafe of Mistaken Orders (café dos pedidos trocados), em Tóquio, onde alguns empregados têm demência e fazem confusões com os pedidos, sem que os clientes se zanguem por isso.
O orçamento para o périplo japonês mostrou-se, infelizmente, muito abaixo das necessidades. Lembraram-se, então, de criar um crowdfunding para recolher donativos que ajudem a fazer face às despesas do avião, o item mais caro, mesmo que haja três escalas pelo caminho. A adesão não tem sido extraordinária (ainda decorre até eles regressarem, em ppl.pt/causas/avonojapao), porque as pessoas encaram esta viagem como um luxo e poucos reconhecem a importância da deslocação. Mesmo assim, a horas de partirem já tinham recolhido mais de três mil euros. Só os bilhetes custaram seis mil. É claro que vão tentar fazer dinheiro por lá, com a venda dos produtos que levam.
Também por causa do dinheiro, a associação não pôde levar toda a gente, nem pouco mais ou menos. Pediu então às avós que estivessem interessadas em enveredar nesta aventura que fizessem uma apresentação, em que explicavam o seu interesse na viagem, sabendo que só três seriam escolhidas. A decisão final ficou a cargo da organização japonesa.
As três eleitas
Teresa Sousa, 80 anos (ninguém lhos dá), foi uma das eleitas e é uma das mais assíduas no atelier que agora fica junto à Rua Morais Soares. Sempre quis conhecer o Japão e foi isso que disse no seu vídeo de apresentação.
Esta aventura tem um culpado declarado: o jornalista japonês Yukio Mizutani, que atualmente vive com a sua família (mulher e dois filhos pequenos) em Torres Vedras
Há uns anos, já depois de se reformar, a filha descobriu-lhe este projeto que rapidamente se transformou num “vício”. E nem precisa de gastar muito latim para descrever como o ambiente aqui é muito bom, como se entreajudam e como se caminha “sempre para a frente”. Tudo isso se sente pouco tempo depois de passar a porta de entrada. As mulheres que aqui estão “tiveram a coragem”, realça Susana, de sair da tão chamada zona de conforto que, na reforma, costuma ser em casa, em frente a uma televisão. E ousaram aprender coisas novas (nem todas sabiam bordar, por exemplo), num convívio saudável.
Dinora Gomes, 74 anos, bastante viajada, também foi escolhida no casting e também chegou à Avó, em 2021, por causa da filha. No entanto, como tem nove netos e lhes presta muita assistência, não consegue cá estar tantas vezes como gostaria, pois sabe o bem que lhe faz. “Esforço-me por vir uma a duas vezes por semana, especialmente desde que fiquei viúva, em janeiro. É muito bom, tanto o convívio como a troca de saberes.”
Há quem ache que estas avós não têm idade para viajar para tão longe, nem para lidar com um fuso de nove horas. Mas elas estão tão empolgadas como umas adolescentes na véspera da primeira viagem longe dos pais. É apreciá-las a trocar dicas sobre o telemóvel e o uso de dados, a mostrar como sabem alguns costumes japoneses e outros comportamentos a evitar numa sociedade em que as pessoas se regem por princípios bastante diferentes dos latinos.
No caso de Elisa Marques, 76 anos, a terceira escolhida, foi a neta mais velha a descobrir o projeto na internet e a tirá-la de casa, depois de ter sido cuidadora da mãe durante sete esgotantes anos. Esta antiga costureira chegou aqui, pela mão da miúda, em 2022, e nunca mais saiu. O seu discurso está alinhado com o das companheiras de viagem: “O convívio é muito bom e aprendemos imenso, especialmente nos workshops. Apesar da minha profissão, apurei os bordados e ganhei criatividade.”
Elisa quis ir ao Japão para conhecer aquele povo e a sua cultura completamente diferente da nossa. Embora só tenha sabido da boa nova há um mês e meio, teve mais do que tempo para se mentalizar para a sorte que teve.
Malas feitas, a dois dias da partida? Ninguém. Afinal, o espírito é de improviso, não importa a idade.