A palavra burnout é-nos familiar; quase todos a associamos a exaustão e esgotamento. E, sim, falamos de situações em que os nossos recursos se esgotam face às exigências contínuas do trabalho, quando se trata de burnout laboral.

Caracteriza-se pela exaustão física e/ou emocional e pela diminuição do envolvimento pessoal no meio laboral. Há quem apresente queixas somáticas, como dores no corpo; há quem deixe de dormir ou tenha um sono não reparador, como se nunca desligasse. Há quem note que está impaciente e irritado com tudo ou apático e incapaz de se concentrar.

Existe outra manifestação de burnout especialmente estranha para o próprio e para quem o rodeia, que é uma mudança na atitude em relação ao trabalho: o cuidado e a excelência dão lugar ao ressentimento e à indiferença. A mudança é progressiva, insidiosa e, infelizmente, pode só se tornar clara quando está instalada.

Vamos ser realistas: muitos trabalhos implicam picos em que se trabalha muito mais do que o estipulado e em piores condições, mas, tal como o nosso corpo está preparado para lidar com uma grande ameaça limitada no tempo, canalizando todo o nosso esforço para tal, também conseguimos aguentar uns dias acima das nossas capacidades. O burnout não aparece nessas condições, mas sim quando a exigência está sempre acima do razoável.

E de onde vem esta exigência? Pode vir de dentro, pode vir de fora e, muitas vezes, altas pressões do exterior encontram as condições para a tempestade perfeita nas características perfecionistas que muitos de nós temos.

Comecemos pelo que depende da maneira como nos tratamos a nós próprios. Pela minha experiência clínica, constato que os maiores candidatos a burnout são usualmente pessoas muito competentes, que entregam resultados “inalcançáveis”, trabalham horas a fio e não o fazem num pico, fazem-no continuamente. Exigem a si próprias fazê-lo em todas as áreas da vida; são as pessoas que dizem “se é para fazer mal, não vale a pena fazer”. Máximo esforço para o máximo de resultados, em tudo, sempre.

Não é de estranhar que assim seja – as mensagens mais difundidas desde a infância, na sociedade atual, são as de que “és especial”, “podes ser tudo o que quiseres”, “não há limites”. Os pais e educadores fazem-no com a intenção de estimular, encorajar, aumentar a autoestima. Paradoxalmente, o efeito é o oposto: ensinamos, desde cedo, que vamos poder gostar de nós só quando atingirmos resultados brilhantes, mostrarmos que somos especiais e que conseguimos o impossível.

Passo muito tempo a dar uma visão diferente de autoconfiança e autoestima: o objetivo é gostar de nós próprios e confiar em nós próprios, mesmo quando não nos sentimos a pessoa mais inteligente da sala ou a que atingiu melhores resultados. Para competir com a mensagem de que “o céu é o limite!”, argumento que todos temos limites, físicos, de energia, de concentração ou de capacidade cognitiva, que estão bastante cá na terra.

Nunca tantos que têm acesso a colchões tão bons dormiram tão pouco e tão mal – o autocuidado também passa por respeitar os limites do corpo, dormir, descansar, rir e emocionar-se numa base regular. O amor-próprio e a autocompaixão nos momentos mais difíceis são condições necessárias a um sucesso sustentável, e, por isso, o mais difícil e mais corajoso de tudo passa por aceitar o nosso direito a falhar, a errar, a dizer “não” e a dizer “isso não consigo”. Então aí, e só aí, é que estamos em condições de pôr esforço, empenho e garra continuamente em objetivos exigentes sem canibalizar os nossos próprios recursos.

E os fatores contextuais ou externos à pessoa? Os que dependem do local de trabalho. É o tipo de cultura organizacional que precisa urgentemente de mudar. São os ambientes ameaçadores, controladores, onde as pessoas sentem sobretudo emoções como medo e vergonha, onde a pressão é constante e o elogio, escasso.

Se é crucial fazer webinars e workshops sobre saúde mental no local de trabalho, é ainda mais importante falar abertamente do impacto da cultura organizacional e das lideranças na nossa saúde mental. E continuar a trabalhar na consistência entre o que é proclamado como prioridade da empresa ou organização e o que é feito no dia a dia.

Artigo publicado originalmente na VISÃO Saúde nº 30 de Junho / Julho 2023

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Bem-vindo à nova série do podcast Tech Flow, que será inteiramente dedicada à cibersegurança. Ao longo de cinco episódios, exploramos a segurança informática de forma descomplicada – dos conceitos gerais que definem esta área, às novas tecnologias que estão a transformar a forma como utilizadores, empresas e organizações devem abordar a segurança digital. Este é um podcast que tem como objetivo sensibilizar os utilizadores e os decisores – porque no fim de contas, todos usamos tecnologia – para a importância da cibersegurança no dia-a-dia.

Veja o terceiro episódio do Tech Flow:
Como a Inteligência Artificial está a mudar a cibersegurança

Quais as técnicas mais comuns usadas pelos piratas informáticos? Sabe o que é o smishing? Devemos ser proativos ou reativos perante o número crescente de ameaças informáticas? E quais as consequências dos ciberataques para as empresas portuguesas?

As respostas a estas e outras perguntas são dadas por Júlio César, coordenador do CERT.PT e do departamento de operações do Centro Nacional de Ciberseguraça, e André Alves, gestor do centro de operações de segurança da Warpcom. Pode ver o segundo episódio do Tech Flow na versão vídeo no início deste artigo ou ouvir aqui a versão em áudio:

Tech Flow, episódio 2

Veja ou reveja os outros episódios já publicados do podcast Tech Flow:

A nova série do podcast Tech Flow, dedicada à cibersegurança, é feita pela Exame Informática em parceria com a Warpcom. 

Que a luz que irradia dos pequenos dispositivos móveis que carregamos para todo o lado pode ter efeitos nocivos para a nossa saúde, já se sabia. Ao longo dos anos, têm sido desenvolvidos diversos estudos que comprovam que a luz “azul” dos telemóveis – como é designada – pode levar ao aparecimento de doenças oculares e até estar na base de comportamento sensoriais incomuns nos mais pequenos.

Durante o dia, a luz azul pode melhorar o desempenho e a atenção, ao ajudar a regular o ritmo circadiano – o “relógio” do organismo que dita os timings do seu funcionamento e que é responsável por, por exemplo, indicar fome ou as horas de dormir e acordar. A luz azul suprime a libertação de melatonina pelo organismo – uma hormona que provoca a sensação de sonolência – e, apesar de benéfica durante o dia, a ciência acreditava que, à noite, essa libertação pudesse afetar o adormecer, levando o cérebro a pensar que ainda é dia e perturbando o ritmo circadiano.

Muito utilizados antes de adormecer – seja para ler, agendar o dia seguinte, ou para fazer um “scroll” pelas redes sociais, os telemóveis têm sido acusados de atrasar o sono (pela distração que fornecem, claro, mas pelo efeito da luz também) Agora, novas provas científicas levam a crer que a luz proveniente dos ecrãs – como televisões, tablets, e-readers, telemóveis ou computadores – não está assim tão relacionada com a dificuldade em dormir.

A luz dos ecrãs pode levar a dificuldades em adormecer?

De acordo com Stuart Peirson, professor de neurociência da Universidade de Oxford, a ideia de que a luz emitida pelo smartphone perturba o sono de uma pessoa não é totalmente correta. “O sono é um processo complexo”, explicou o especialista ao britânico The Guardian. Embora seja verdade que a luz emitida pelos ecrãs tem algum impacto no ritmo circadiano, os seus efeitos são menos claros do que se acreditava.

Segundo o especialista, apesar de os recetores dos nossos olhos – que “dizem” ao nosso cérebro quando devemos estar acordados – serem ativados por células que absorvem a luz azul, também são ativados por células que absorvem comprimentos de onda. Esta explicação significa que o problema não é a cor do brilho, mas sim a quantidade de luminosidade e o período de tempo de exposição ao mesmo – e o brilho dos ecrãs dos telefones é, na verdade, bastante fraco. Por exemplo, uma luz ambiente é, em média, 10 vezes mais brilhante que a luz emitida por um telemóvel. “Tecnicamente, a luz azul dos smartphones pode afetar o sono”, explicou Peirson. “Mas estes efeitos são pequenos, a menos que se utilize o telemóvel durante horas com um ecrã brilhante e já se tenha problemas de sono”, clarificou.

Recentemente, um estudo publicado na revista científica Sleep Medicine Reviews revelou que o impacto da luz no tempo que uma pessoa leva a adormecer foi quase insignificante. “Mostrámos que a ideia de que a luz azul dos ecrãs impede de adormecer é essencialmente um mito, embora seja muito convincente”, pode ler-se. Numa análise de estudos dos últimos dez anos, a equipa de cientistas de diversas universidades procurou a associação entre a qualidade do sono e a tecnologia e não encontrou provas de que a exposição à luz dos ecrãs, na hora antes de dormir, dificulte o adormecimento.

Já um estudo científico realizado pela Universidade de Harvard revelou que cerca de quatro horas de exposição à luz emitida por um “e-reader” – na sua potência máxima – tiveram um efeito considerado pequeno, com um atraso de cerca de 10 minutos no início do sono. Este, segundo os especialistas, é na verdade mais afetado pelo tipo de conteúdo que se consome.

“Um problema muito maior é provavelmente o conteúdo visualizado”, referiu Peirson à The Wired. “Ler e-mails de trabalho relacionados com prazos iminentes vai claramente causar ansiedade, e a ansiedade está fortemente relacionada com a insónia”, acrescentou. No mesmo sentido, fazer um “doomscrolling” pelas redes sociais e pelas notícias do dia também tem efeitos negativos no tempo que se leva a adormecer e na própria qualidade do sono.

Por fim, os especialistas avisam ainda que dormir muito próximo de um telemóvel também pode ser prejudicial à saúde, especialmente se não forem silenciados. O toque das notificações e das mensagens do aparelho podem perturbar o sono. 

Óculos que “bloqueiam” a luz azul?

Nos últimos anos, a par das investigações que incidem sobre os efeitos desta luz, têm sido desenvolvidos mecanismos que ajudam a mitigar os seus efeitos, como as lentes capazes de “bloquear” a luz azul. No entanto, não existem ainda, segundo Peirson, evidências significativas que comprovem os benefícios destas lentes. Por outro lado, as lentes antirreflexo podem ser uma boa opção, uma vez que reduzem o brilho e aumentam o contraste.

Já de acordo com a Academia Americana de Oftalmologia e com o Colégio de Optometristas do Reino Unido, não há provas de que a luz azul dos ecrãs prejudique os nossos olhos e nenhum deles recomenda óculos que bloqueiem a luz azul.

O traço cinzento cruza o verde predominante do mapa. Por estrada, a passagem é negada por uma cancela fechada. O resto do percurso pode fazer-se a pé. Em linha reta, são quase 1,5 quilómetros. A urbanização de moradias fica para trás. Os passos finais são rodeados pela natureza, o chilrear dos pássaros poisados nos ramos das árvores frondosas. A caminhada termina à beira do areal dourado, acariciado pelas sucessivas vagas do Atlântico.

O cenário paradisíaco não combina com “batalhas”, mas é precisamente uma “guerra” que aqui se trava. Estamos no condomínio Casas da Encosta, freguesia do Carvalhal, município de Grândola. A estrada leva à Praia do Pego, mas aquele condomínio considera que a passagem é privada. “A rua pertence ao condomínio e assim se deve manter”, defende uma parte. Os aldeamentos turísticos vizinhos – propriedade dos grupos Vanguard Properties e Amorim Luxury –, designados por urbanização NDTC, não concordam, surpreendidos e irritados com os obstáculos, que obrigam residentes e visitantes a pegar no carro, conduzir por quatro ou cinco quilómetros, caso queiram chegar à praia mesmo ali ao lado. “A passagem é pública e assim deve ser”, responde a outra parte.

Paraíso A Praia do Pego está a um quilómetro e meio, mas, para lá chegar, os moradores da NDTC “gastam” quatro vezes mais Foto: Marcos Borga

A Câmara Municipal de Grândola alinhou na contenda, começando por dar razão à Vanguard Properties e à Amorim Luxury. Num despacho de 29 de junho de 2023, o presidente António Figueira Mendes (CDU) emitiu uma ordem para a remoção das cancelas, que uma providência cautelar – aceite pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja – travou, para já.

Os condóminos do Casas da Encosta (ou, pelo menos, a maioria deles) “não gostam nem aceitam” a posição da autarquia. A meia-voz, fala-se “de favorecimento” e “grandes interesses”. E de “intimidação”. O aglomerado tem cerca de quatro dezenas de moradias de luxo, mas promete continuar a lutar para impedir o que considera ser uma “invasão de privacidade”.

Os donos de projetos como o Dunas ‒ Terras da Comporta (Vanguard Properties) e JNcQUOI Comporta (Amorim Luxury) dizem, por sua vez, que a permissão de passagem é uma questão de “legalidade” e “justiça”. Também não vão ceder. As reuniões entre as partes nunca permitiram alcançar a paz. A decisão fica adiada para os tribunais?

Passagem “livre” e “desimpedida”

Aparentemente, este seria um caso fácil de se decidir, mas existem interpretações contrárias. Os terrenos onde se encontra a urbanização NDTC pertenciam ao fundo Herdade da Comporta, detido pela Rioforte, holding não financeira do Grupo Espírito Santos (GES), que promoveu o loteamento dos mesmos em 2009 – a VISÃO entrou em contacto com Maria António Castro e Almeida, mas a arquiteta, à época executiva da Herdade da Comporta, e responsável pelo processo de licenciamento, não prestou declarações por “ser testemunha” no processo administrativo em curso.

Em 2019, a Vanguard Properties e Paula Amorim desembolsaram mais de €150 milhões para adquirirem aqueles terrenos, aproximadamente com mil hectares. À VISÃO, o CEO da Vanguard Properties, José Cardoso Botelho, garante que a estrada disputada consta dos alvarás dos loteamentos como “uma servidão administrativa – servidão pública de passagem”, o que deveria permitir que fosse de acesso “livre e desimpedido”. “Os proprietários da [urbanização] NDTC, bem como a Câmara Municipal de Grândola, sabem que a servidão é pública, existe e está em vigor. Ao contrário das servidões privadas, as públicas devem obrigatoriamente estar publicadas em Diário da República, o que é o caso”, afirma. O responsável garante que a função da passagem “se encontra validamente constituída”.

Prejuízo José Cardoso Botelho, CEO da Vanguard Properties, confirma ação judicial “milionária” contra o Casas da Encosta Foto: José Carlos Carvalho

José Cardoso Botelho acrescenta que, “por este motivo, os proprietários daqueles lotes [do Casas da Encosta] não podem, por qualquer forma, impedir ou controlar o acesso [à praia] à NDTC, apenas tendo o direito, nos termos do loteamento, a limitar o acesso aos arruamentos secundários, mediante a colocação de cancelas à entrada destes”. “O Casas da Encosta, condomínio e coproprietários, estão, ilegítima e ilegalmente a cercear os direitos dos proprietários da NDTC”, conclui.

A Vanguard Properties e a Amorim Luxury insistem que pretendem avançar para uma ação judicial contra o condomínio Casas da Encosta e os seus proprietários, exigindo “uma substancial indemnização”. O advogado do Casas da Encosta, Nuno Teixeira Matos, não confirma a existência deste processo, dizendo apenas, que, “até ao momento, nenhum dos meus clientes foi citado”. Um morador daquele condomínio, que não quis ser identificado, considera que “esta investida” da Vanguard Properties e da Amorim Luxury pode ser “uma forma de intimidar as pessoas, tentando que elas cedam”.

Mais tráfego e menos segurança

Os moradores do Casas da Encosta sentem que a Vanguard Properties e a Amorim Luxury “começaram a atacar” o condomínio a partir de 2023. Segundo documentos consultados pela VISÃO, o primeiro pedido formal da NDTC para a retirada das cancelas surgiu em 2020; o pedido não foi aceite. Em cima da mesa das negociações chegou a estar a sugestão [feita pelo Casas da Encosta] de, por aquela estrada, circularem apenas bicicletas ou karts de golfe, sabe a VISÃO. A sugestão não agradou [à Vanguard Properties e à Amorim Luxury], e as conversas cessaram.

Foto: Luís Barra

No passado dia 24 de agosto, o Casas da Encosta realizou uma assembleia extraordinária para discutir o “braço de ferro”. Nas conclusões da reunião, a que a VISÃO teve acesso, a esmagadora maioria dos moradores (quase todos cidadãos estrangeiros) concordou que a cedência da passagem levaria a que o condomínio fosse “dividido em duas partes e integrado numa verdadeira rede urbana”, principalmente no verão. “[Haveria um] impacto muito negativo”, como o aumento do tráfego, ruído ou a diminuição da segurança local; os moradores estão ainda preocupados com a eventual “redução do valor para o condomínio como um todo, e especialmente para alguns proprietários”. Os condóminos do Casas da Encosta defendem que a servidão de passagem só poderia ser justificada em dois casos: quando não houver outro acesso à via pública para um imóvel ou imposta por decisão judicial ou administrativa, desde que, não represente excessivos inconvenientes ou despesas. Os moradores consideram, pois, que, neste caso, não está em causa “nenhuma servidão legal”, uma vez que a NDTC “tem outros acessos à via pública”.

Nuno Teixeira Matos destaca que o projeto Vanguard Properties e Amorim Luxury representa “um grande impacto para o Casas da Encosta”. “Estamos a falar de 300 a 400 moradias, cada uma com dois ou três carros, no mínimo. Na época alta, podemos estar a falar da possibilidade de passarem, por aquela estrada, por dia, perto de mil carros. Um impacto enorme”, sublinha o advogado.

Câmara toma partido

A Câmara Municipal de Grândola parece não ter dúvidas de que, de facto, existe ali uma “servidão de passagem”. O despacho, assinado pelo presidente António Figueira Mendes, dá ordem para a “remoção das cancelas” e acrescenta que o Casas da Encosta demonstra “total desconhecimento sobre os factos e o direito aplicável à situação em concreto”. “Não está prevista a implantação das cancelas no local ora implantado, pelo que não resulta outra solução que não seja a remoção das mesmas”, conclui o despacho camarário, “congelada” pelo tribunal. A posição causou polémica. O advogado Nuno Teixeira Matos considera “grave” o facto de a autarquia “ter-se imiscuído neste processo, que apenas diz respeito a privados”. “Quando a Câmara de Grândola aprovou o condomínio [Casas da Encosta] não consta dessa aprovação qualquer constituição de servidão de passagem. As servidões de passagem, como se sabe, têm de estar registadas na Conservatória do Registo Predial competente, e isso, neste caso, não sucede”, afirma.

Obras O investimento imobiliário dos três principais grupos presentes na Comporta totaliza €4 mil milhões. O cimento cresce… Foto: Jose Carlos Carvalho

Com o caso em standby nos corredores da autarquia, nenhuma hipótese é descartada, incluindo a expropriação ao Casas da Encosta daquela língua de cimento. A VISÃO tentou obter esclarecimentos da Câmara Municipal de Grândola, mas, até ao fecho desta edição, isso não foi possível.

Passo atrás

Revisão do PDM de 2017 abriu portas ao cimento. Sete anos depois, António Figueira Mendes (CDU) corrige

A última revisão do Plano Diretor Municipal (PDM) de Grândola, promovido e aprovado pelo executivo da CDU, entrou em vigor em setembro de 2017. O documento pretendia “afirmar o território de Grândola como marca turística de escala nacional e internacional”, com a promessa de nunca abdicar das características de qualidade, autenticidade e identidade da região. Porém, o aumento “exponencial” do número de “pretensões turísticas” resultou na multiplicação de empreendimentos e camas, chocando com normas orientadoras dos programas regionais de ordenamento do território (como o PROTA), colocando pressão no setor turístico e habitacional local. A Comporta passou a ser morada (sazonal) de milionários. Grupos como a Vanguard Properties (de Claude Berda), Amorim Luxury (de Paula Amorim) ou os norte-americanos da Discovery Land Company apostaram no território – os projetos em curso na Comporta mobilizam mais de €4 mil milhões. O cimento continua a florescer. Em 2021, a Câmara Municipal de Grândola acabaria por dar razão aos protestos de residentes, associações locais e ambientais, anunciando a suspensão parcial do PDM, admitindo que “a evolução registada” não tinha ido “ao encontro das premissas e dos objetivos estratégicos do sistema turístico plasmados no modelo de desenvolvimento territorial”. A proposta de alteração do PDM do executivo presidido por António Figueira Mendes avança – o período de contribuições públicas fechou no passado dia 14 de outubro (contou com 81 requerimentos e sugestões). A autarquia propõe agora um modelo de desenvolvimento que prevê limitar novos empreendimentos na costa, promovendo, simultaneamente, o crescimento do concelho para o interior. O novo PDM prevê ainda a redução imediata de cerca de 3500 camas turísticas, podendo esse número chegar às 7100 (entre as projetadas e as programadas por executar).

A cancela que “encerrou” Brejos

A “moda” das cancelas não é nova. Em Brejos da Carregueira de Baixo, os lotes habitados por milionários também aproveitam as vedações (com código) para garantir exclusividade aos residentes, e deixar locais e turistas “comuns” afastados

Milionários Quem comprou a praia? Na Comporta, constroem-se “muros” em nome da exclusividade e da privacidade FOTO: Marcos Borga

O caso da cancela na Praia do Pego não é único na Comporta. Mas, como diria (para a posteridade) o antigo primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, “o povo é sereno”, não havendo registo de outros processos judiciais que envolvam cancelas, vedações de madeira, que, da noite para o dia, criaram estradas “privadas” (feitas de pó e cimento), e fecharam o acesso às praias. Em Brejos da Carregueira de Baixo é assim que acontece. Hoje, aquele lugar é apenas um beco sem saída, onde só resta dar meia volta e regressar, depois de fatiado e vendido a milionários e famosos (maioritariamente) franceses e ingleses. Em 2020, os proprietários conseguiram da Herdade da Comporta a instalação de vedações de madeira (com códigos) que cortam o acesso às estradas de terra batida que, no pré-pandemia, na época alta, levavam diariamente centenas de turistas à praia selvagem dos Brejos – uma língua de areia e mar com cerca de três quilómetros, entre as praias da Comporta e do Carvalhal, agora “exclusiva” para quem pode habitar nas moradias de luxo; são (muito) poucos os que arriscam a caminhar, durante 30 a 35 minutos, entre dunas e arrozais, sob o sol escaldante do verão.

A aldeia saltou para as primeiras páginas das revistas e dos jornais em 2013, quando Cristina Espírito Santo a descreveu com polémica: “Vive-se ali em estado mais puro. É como brincar aos pobrezinhos.” O novo paraíso hippie chique nacional tornara-se destino de férias de figuras conhecidas, como Madonna, Angelina Jolie, Rania da Jordânia, Nicolas Sarkozy e Carla Bruni ou Philippe Starck – os “pobrezinhos”, esses, tiveram de ir “brincar” para outra morada. Dois anos depois deste episódio, dar-se-ia o colapso do GES e a família viu-se forçada a vender os “anéis”, isto é, a propriedade com cerca de 13 mil hectares, que detinha desde 1955 (à exceção do período da sua nacionalização, entre 1975 e 1989). O negócio ficou concluído em 2019, quando a Herdade da Comporta foi comprada pela Amorim Luxury (de Paula Amorim) e pela Vanguard Properties (do empresário francês Claude Berda) – parceria que, entretanto, chegou ao fim no início deste ano, com as partes a dividirem terrenos e a seguirem projetos separados.

Entretanto, os únicos dois negócios locais – os restaurantes O Gervásio e Glória – fecharam portas definitivamente. O turismo em Brejos da Carregueira de Baixo está reservado para quem tem capacidade financeira para comprar ou arrendar uma propriedade, com preços a partir dos 500 mil euros (para lotes) e dois milhões de euros (para moradias). Os outros optam pelas alternativas que existem nas proximidades, com estacionamento (quase) à beira-mar.

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