Ninguém pode escrever convenientemente sobre bolas de Berlim na praia sem sentir os dedos a afundarem-se na massa fofa, envolta numa fritura suave. Impossível entender o frenesim à volta deste doce – o terceiro mais vendido por cá, depois do pastel de nata e do croissant – se não acabarmos de o saborear, lambendo as pontas dos dedos, uma a uma, lentamente, para prolongar a sensação do açúcar a derreter nas nossas papilas gustativas.
Uma bola de Berlim na praia, bem doce, tem o encanto de fazer match perfeito com o sal que trazemos colado à pele sempre que saímos do mar. Já reparou como os tais grãozinhos de açúcar que teimam em ficar nos dedos e à volta da boca no final deste pecado nutricional têm a mesma consistência e tamanho dos grãos de areia que se mantêm entranhados nos pés enquanto aproveitamos as maravilhas de um dia de verão?

Por isso, confessamos: enquanto pesquisávamos sobre este assunto, para melhor o informar, seguimos o conselho que a nutricionista Iara Rodrigues deixou na sua página de Instagram para os mais de 300 mil seguidores, debaixo do chapéu “Troque isto por (versão praia)”, em que apresenta pequenas escolhas que provocam grandes diferenças, porque, como assume “o verão não precisa de extremos.”
Então, no capítulo Bola de Berlim, um piteuzinho que representa algo como 400 ou 500 calorias de uma só vez, dependendo da versão escolhida, a nutricionista sugere que se substitua o hábito de a comer todos os dias das férias por fazê-lo uma só vez por semana, saboreando-a como se fosse uma estreia. “O prazer não está na quantidade, mas na atenção com que se saboreia. Dê valor ao momento”, aconselha.
Faça a sua bola
Receitas há muitas – esta foi retirada do livro As Doces Receitas da Minha Avó Bherta Rosa-Limpo, de Nuno Alves Caetano
Ingredientes
→ 9 ovos
→ 150 g de açúcar
→ 690 g de farinha
→ 30 g de fermento de padeiro
→ 125 g de manteiga
→ 2,5 dl de leite
→ Açúcar para polvilhar q.b.
Preparação
Dissolver o fermento em 0,5 dl de leite tépido e adicionar os ovos batidos, o açúcar e a manteiga já dissolvidos no resto do leite morno.
Aos poucos, juntar a farinha e amassar bem até a massa ficar ligada e homogénea. Tapar o recipiente com um pano, abafá-lo com um cobertor e deixar levedar num sítio quente durante quatro horas.
Tender em bolas sobre uma tábua enfarinhada. Fritar em óleo, em tacho fundo. À medida que saem da fritura, pôr em papel absorvente e envolver no açúcar.
Foi isso que fizemos, nos extensos areais da praia do Meco, Sesimbra, apesar de o facto de termos desembolsado €2,5 por uma bola (aumentou 50 cêntimos de julho para agosto) ter beliscado o tal valor do momento. Adiante.
No entanto, verificámos, não foi o disparar do preço que travou os veraneantes na sua procura por este pecado permitido, como se estivéssemos dentro de um parêntesis dietético. O cenário repete-se um pouco por toda a costa portuguesa: Sempre que passa um vendedor, de lancheira recheada, o bolo de origem alemã, e bem adaptado aos vícios portugueses, provoca uma pequena concentração à sua volta e suscita até dois dedos de conversa entre os compradores, com frases de ocasião como: “É a primeira desta época?”
As variedades de recheio – antes havia apenas “com creme” e “sem creme” – fazem crescer a versatilidade do bolo. Este ano, o creme de pistácio (alô, chocolate do Dubai?) é a novidade mais fresquinha e fica bem, dizem, com a massa densa da bola de Berlim. Mas, na praia do Burgau, por exemplo, que ganhou o concurso da NIT do ano passado de Melhor Bola de Berlim, André Carmo, dono da empresa Olha a Bolinha, recheia os doces ao momento, guardando para cima de 20 sabores dentro da carrinha que estaciona à entrada da praia algarvia. A fila que se forma pelo areal fora, diariamente, é a prova mais visível da qualidade do seu produto.
Se considera tudo isto uma heresia em relação aos primórdios desta receita, caro leitor, imagine o que pensaria a refugiada alemã que é dada como responsável pela introdução do doce na vida nacional, nos anos 1940, se hoje sucumbisse às modernices deste pecado?
Até os nazis as comiam
Para chegarmos aos primórdios desta história, é importante caminharmos até ao mar, lavar bem as mãos da gordura açucarada, pegar no livro Judeus em Portugal Durante a II Guerra Mundial, da historiadora Irene Flunser Pimentel, e descobrir que no dia 6 de outubro de 1935 chegaram a Portugal Ruth Davidsohn, a irmã e os pais, fugidos de Hamburgo, do norte da Alemanha, quando a II Guerra Mundial se tornava cada vez mais evidente.
Portugal apareceu como escolha óbvia para o exílio desta família judia, pois já tinham mais parentes em solo português. No entanto, tal como lembra a investigadora, foi também fundamental a existência de um acordo luso-alemão que dispensava vistos nos passaportes de cidadãos dos dois países, desde 1926.
Mas a vida de refugiado iria tornar-se mais difícil, à medida que Salazar escalava no poder. “Estávamos a atravessar um período de desemprego e, a partir de 1933, eles ficaram impedidos de trabalhar cá, especialmente pessoas que tinham licenciaturas.”

Apesar de Portugal aparecer apenas como país de trânsito e de passagem para outros continentes, alguns acabavam por ficar cá mais tempo, tal como os Davidsohn. Ora, sem conseguirem empregar-se, tiveram de dar largas à imaginação e dotes culinários, neste caso, para conseguirem sobreviver.
A matriarca da família, sediada em Lisboa, pôs-se a confecionar pequenos bolos, redondos, de massa fofa e fritos, com recheio de frutos vermelhos, a que chamava Berliner Pfannkuchen (bolo berlinense de frigideira) ou simplesmente Berlineer Ballen, para vender à comunidade alemã que na altura vivia em Portugal. “Não eram necessariamente refugiados. Entre eles haveria até pró-nazis que não se importavam de comprar os bolos à judia”, ironiza Irene Flunser Pimentel.
A partir daí, a história fica nublosa. Não se sabe bem como é que a bola ultrapassou as fronteiras da comunidade alemã para a sociedade portuguesa, disseminando-se.
Sabe-se sim que, pelo caminho, a receita se modificou. No início da adaptação nacional, o bolo podia ser recheado com creme de pasteleiro, numa incisão transversal. Na versão original, a chamada berlinense, não se vê nem sente o recheio antes da primeira dentada, porque a compota de fruta é injetada para dentro do bolo e só se revela quando este já não está inteiro.
Porquê na areia?
Há relatos que dão conta da presença das bolas de Berlim em praias nacionais já nos anos 1940. No entanto, os registos acerca da altura em que este bolo se tornou no doce de eleição no areal são escassos.
Há meio século, os vendedores ambulantes levavam uma caixa de lata, muitas vezes à cabeça, com duas ou três prateleiras lá dentro, onde se arrumava a pastelaria mais diversa (ai os barquinhos de doce de ovos…).
Apesar da variedade, a bola de Berlim estava sempre melhor representada e provocava ávida procura por parte dos gulosos veraneantes. Hoje, quem vai à praia vender, leva apenas o doce de origem alemã. E pode ter de ir reabastecer as polarbox várias vezes por dia, dependendo das praias e da época do ano.
A melhor explicação até ao momento encontra-se no livro Fabrico Próprio, a materialização de um projeto dos designers Frederico Duarte, Rita João e Pedro Ferreira, que se debruçava sobre a doçaria semi-industrial enquanto produto.
Além dos 92 bolos que analisaram, decidiram dedicar um capítulo à rainha dos areais, e um ensaio fotográfico de Pedro Garcia nas praias algarvias, no seguimento de um episódio que marcou o verão de 2007 – a ASAE ameaçou acabar com as bolas de Berlim na praia, depois da apreensão de quatro mil exemplares, numa operação que envolveu também a Marinha e o então SEF.
Nessas páginas, e depois de os designers falarem com dezenas de pasteleiros, explicam que este é o único bolo que, por ser frito, passa do cru ao cozinhado num ápice e sem ter de se recorrer a grandes equipamentos culinários, além de uma frigideira. Rita João esmiúça a questão: “A sua confeção é prática e rápida, o que facilita o abastecimento ao longo do dia. A cadeia de produção está toda pensada para aquilo fazer sentido.”

Mania da higiene
Faça-se aqui um parêntesis para esclarecer a história desta exagerada morte anunciada. “A ação de fiscalização da ASAE relativamente às bolas de Berlim incidiu sobre o seu processo de fabrico e não sobre a sua comercialização na praia», justificou o então Ministério da Economia e Inovação. O comunicado esclareceu ainda que “o que a ASAE detetou foram situações de fabrico desses bolos sem quaisquer condições de higiene e com óleos saturados e impróprios para consumo. As consequências para a saúde humana do consumo destes óleos são sobejamente conhecidas”.Quanto à venda nas praias, o primeiro Governo de Sócrates fez questão de lembrar que “o que a legislação determina é que esses produtos devem estar protegidos de qualquer forma de contaminação. Se as bolas de Berlim forem produzidas num estabelecimento devidamente licenciado e comercializadas de forma a que esteja garantida a sua não contaminação ou deterioração, podem ser vendidas na praia sem qualquer problema”.
É o caso das bolas de Berlim da Felismina Domingues. O seu “laboratório” está de portas abertas em Casa Alta, perto de Altura. Quando lá fomos, vimos como esta algarvia de 76 anos ainda as amassa à mão, conforme se viu obrigada a inventar quando o seu marido foi para a Guerra Colonial, em 1966, e ficou com a vida do avesso.
Acabou então por abrir uma pequena fábrica onde fazia dezenas de bolas à mão, sem recorrer a qualquer equipamento. Depois, foi vendê-las para as praias das redondezas, dando início, assim, a essa tradição nos areais do sul. Atualmente, o negócio cresceu e os filhos ajudam a que as bolas da Felismina continuem muito populares nas praias entre Altura e Vila Real de Santo António.
De pregão na voz
Mais a norte, na Praia do Furadouro, o casal Sónia e Miguel está à frente da marca Bolinhas.come, que nasceu da nostalgia das férias no Algarve, onde as bolas de Berlim sempre foram uma tradição nas praias.
Notando que na zona de Ovar, Torreira, Furadouro e Esmoriz esse hábito não existia, decidiram investir num negócio que levasse estes bolos que tanto apaixonam os portugueses para os areais mais frescos.
Miguel é quem as confeciona. Depois de muita experimentação, encontrou a receita ideal para fazer a diferença: óleo de qualidade, temperatura controlada e farinha selecionada para garantir uma bola leve, sequinha e sem sabor a frito, sem a inflação a sul (aqui custam uns mais justos €1,75).
Fabiana Muge é o rosto da Bolinhas.come junto dos veraneantes. Assistente social, trabalha à noite no verão para poder vender bolas de Berlim durante o dia na praia. “Isto faz-me bem. Ajudou-me a pagar o mestrado e agora as formações de que preciso na minha área. É também motivador para os meus utentes – mostro-lhes que tenho de me esforçar para alcançar os meus objetivos.”
Quando não aparece, perguntam logo pela “loirinha das bolas”. Muitos são emigrantes e ligam-lhe quando chegam a Portugal só para lhe dizerem: ‘Estamos cá!’ Ao longo da década que já leva num constante vaivém na areia, com a sua caixa pela mão, tem acumulado muitas memórias boas. A sua preferida é a do dia em que perdeu a voz devido às mudanças de temperatura e aos pregões que grita para se anunciar e o sr. Manuel, de 92 anos, que tem uma barraca na praia, lhe ofereceu um sino, dizendo-lhe: “Isto é para te ajudar na tua caminhada”. Desde então, nunca mais lhe faltou o pio. “Olha a bolinha!”