Visão
Numa entrevista (The Paris Review, nº40), Nabokov desfaz um daqueles lugares-comuns que muitos escritores repetem quando falam das suas personagens, afirmando que estas tomam conta da intriga, controlando o destino da narrativa (existem outros recorrentes, como o autor que é apenas um veículo, uma espécie de títere ou médium atravessado por uma inspiração divina ou pela voz das musas; bem como o sofrimento e a dor que o autor diz sentir de forma dramática durante o processo criativo). Evidentemente que existem livros que são orientados pelas personagens, conforme são mais ou menos trabalhadas pelo escritor, mas não existe propriamente uma revolta e usurpação do lugar do autor, deixando este de ter livre-alvedrio e passando simplesmente a obedecer às personagens que ele próprio criou:
“Entrevistador: E. M. Forster diz que as suas personagens principais, por vezes, assumem o controlo e ditam o rumo dos seus romances. Isto já foi um problema para si, ou mantém o controlo absoluto?
Nabokov: O meu conhecimento das obras do Sr. Forster está limitado a um romance, de que não gosto [o romance em causa intitula-se Passagem para a Índia]; e, de qualquer forma, não foi ele quem inventou essa pequena trivialidade, de que se perde o controlo das personagens; é uma ideia tão antiga quanto as penas de escrever, embora, claro, seja compreensível que, no caso dele, as suas personagens tentem escapar àquela viagem à Índia ou para onde quer que ele as leve. As minhas personagens são escravos das galés.”
Curiosamente, este caso é comentado pelos escritores Martin Amis e Juan Villoro, que entrevista o primeiro para a revista Letras Libres. A pergunta de Villoro, que origina o comentário sobre como Forster e Nabokov lidavam com as suas personagens, resvala para o chavão do transe, do descontrolo que alguns autores dizem sofrer:
“JV: Numa entrevista, comentaste que as tuas personagens tremem quando te aproximas. És um autor com um sentido de ordem ou de controlo sobre o que fazes, ao contrário de outros que preferem cultivar demónios interiores aos quais obedecem num transe estilo vudu. Até que ponto tiranizas os teus seres imaginários?
MA: O comentário de que as minhas personagens tremem quando me aproximo é uma adaptação de um comentário de Nabokov. Ele tinha lido Aspects of novel, onde E. M. Forster revela que, quando está prestes a começar um romance, encosta as suas personagens a uma parede e diz-lhes: ‘Ora bem, nada de truques, nada de risos.’ Isto parecia incompreensível a Nabokov: ‘As minhas personagens encolhem-se quando me aproximo’, disse ele, acrescentando: ‘Já vi avenidas inteiras de árvores perderem as folhas aterrorizadas quando me aproximo delas.’ O que estamos a discutir aqui é o facto incontestável de que, quando crias um mundo romanesco, és o seu deus. Mais poderoso do que qualquer deus trovejante do Antigo Testamento.”
Lembro-me de, numa mesa dum evento literário, um escritor (que não nomearei) ter dito que um dos seus livros, que tinha acabado de receber um prémio, fora inteiramente escrito sob essa forma de possessão, em que o autor é apenas um objeto mecânico e onde certas entidades, personagens, musas, demónios — ou mesmo uma qualquer inspiração que paira por aí numa dimensão qualquer — se manifestam no corpo do escritor fazendo com que a obra nasça. Se não foste tu a escrever esse livro, disse eu ao tal escritor, mas apenas o veículo de uma narrativa que pairava noutra dimensão, acho que seria ético devolver o dinheiro do prémio
Palavras-chave:
Entre 1949 e 1951, os pais do militante comunista Guilherme da Costa Carvalho visitaram o filho por duas vezes no campo de concentração, onde estava desterrado. No livro Tarrafal, João Pina mostra as espantosas fotografias então tiradas pelo seu bisavô Luiz e publica algumas das mais de 800 cartas trocadas entre os pais e o filho.
Era uma vez… Assim costumam começar todas as grandes histórias, não apenas para crianças mas também para adultos. E este livro bem poderia arrancar com um “Era uma vez uma caixa de sapatos…” Uma caixa daquelas de papelão grosso e resistente ao tempo e à humidade, que guardava, intacto, um segredo familiar com 70 anos e cuja descoberta deu lugar a um riquíssimo filão afetivo e memorialístico.
Foi em 2019 que Herculana Carvalho mostrou ao filho João Pina (JP) a tal caixa de sapatos, onde acondicionara cuidadosamente o arquivo fotográfico de Luiz Alves de Carvalho (avô de Herculana e bisavô de João) sobre o Tarrafal. Um acervo notável de imagens registadas nas duas visitas que fez, em 1949 e 1950, àquele campo de concentração, para onde fora desterrado o filho Guilherme. Além das fotos, havia ainda cerca de oito centenas (sim, 800!) de cartas trocadas entre os pais e o preso, meticulosamente arquivadas em dossiês, um material único e inédito.
Acontece que Guilherme da Costa Carvalho não era um preso qualquer. O pai Luiz era o corretor da Bolsa de Valores do Porto, pertencente à (grande) burguesia nortenha. E Guilherme, militante clandestino do PCP, que havia sido preso em 1948, viria a ser um dos quadros heroicos e míticos do partido, averbando quatro prisões e duas fugas coletivas, ambas espetaculares: em janeiro de 1960, do forte de Peniche, com Álvaro Cunhal, e em dezembro do ano seguinte, da cadeia de Caxias, no célebre carro blindado de Salazar.
Bisneto de Luiz Alves de Carvalho, neto de Guilherme da Costa Carvalho (e filho de Joaquim Pina Moura), o fotógrafo JP andou quatro anos a “casar” as imagens com as cartas dos antepassados, que não conheceu pessoalmente, a investigar, a fotografar e a escrever este livro.
Fotografias como “prova de vida” Comecemos pelo mais surpreendente, as imagens. O livro inclui cinco blocos de fotografias: dois com a assinatura do autor, João Pina, um fotógrafo não apenas conhecido e reconhecido, como premiado; e os restantes três blocos da autoria do bisavô Luiz, cego de uma vista, e que constituem a grande novidade e revelação do livro. É muito fácil distingui-las: as do bisavô são a preto e branco, enquanto as do bisneto são a cores. Pina pensa que terão sido feitas com uma câmara Rolleyflex de médio formato, com negativos quadrados (6X6cm).
Um primeiro bloco são imagens de 16 tarrafalistas, o primeiro dos quais é o filho do improvisado fotógrafo, cuja imagem, de resto, abre o livro, um Guilherme da Costa Carvalho sorridente e jovial, de bigode, com aspeto saudável, descontraído, mãos nos bolsos, camisa branca lavada. Estes são sinais comuns a quase todas as restantes fotos, que se destinavam a ser enviadas às respetivas famílias, que não os viam desde que haviam sido desterrados há quase 15 anos para aquele lugarejo perdido da ilha cabo-verdiana de Santiago. Constituindo o que JP classificou acertadamente como “uma prova de vida” junto dos familiares e amigos, e não para serem publicitadas, compreende-se que todos se apresentem na fotografia a preceito: com bom aspeto, roupa lavada e engomada, por vezes de fato completo e gravata, bem penteados e barbeados, ainda que raramente sorridentes.
Era assim que cada um deles desejava que os seus entes mais queridos o vissem, a imagem, quem sabe se a última, que gostariam que perdurasse nas suas memórias e corações. Se há um padrão que sobressai em todas elas é a enorme dignidade que transpiram – desde o mais velho, Bernardo Casaleiro Pratas (n. 1899), um anarco-sindicalista que esteve no campo 17 anos consecutivos, que figura de óculos, boina basca e lapiseira no bolso da camisa, a ler uma edição recente da revista O Século Ilustrado, até ao mais jovem, o comunista Josué Martins Romão (n. 1918), envolvido na Revolta dos Marinheiros, que ali passou 16 anos, preferindo mostrar-se impecável de fato e gravata.
Flores em todas as campas O segundo bloco é, em simultâneo, um levantamento e uma homenagem. Um levantamento de todos os prisioneiros que morreram na primeira fase do campo, entre 1936 e 1948. As fotos são propositadamente muito semelhantes: a esposa do improvisado fotógrafo a depor um ramo de flores na campa de cada um dos 32 mortos – vítimas de malária e febres várias, de uma alimentação deficiente, de água inquinada ou simplesmente de tortura na célebre “frigideira”. É uma sequência muito impressiva de 16 páginas, cada uma com duas fotografias ao alto, sem legenda, todas idênticas, até na forma como Herculana Rosa se veste, mas todas diferentes, porque diferentes são os nomes e as datas inscritas na lápide de pedra. Como escreve João Pina, a bisavó Herculana “foi mãe de todos por uns dias”.
Alguns dos nomes são bem conhecidos, com lugar de destaque na resistência à ditadura, como Bento António Gonçalves, o segundo secretário-geral do PCP, e Mário dos Santos Castelhano, o anarcosindicalista que liderou a Confederação Geral do Trabalho (CGT). A esmagadora maioria dos mortos seriam ou comunistas, ou anarcosindicalistas, ou republicanos, ou maçons; ninguém cuidou de saber como prefeririam ser sepultados, razão pela qual as campas são todas iguais, encimadas com uma inevitável cruz. Nem na morte as suas crenças foram respeitadas.
Esta sequência é igualmente uma homenagem: a todos e a cada um daqueles mortos, para que não caíssem no esquecimento. E uma acusação feroz, como que individualizada, ao regime de Oliveira Salazar, que os desterrou e deixou morrer no Tarrafal, então batizado, com toda a propriedade, de “campo da morte lenta”.
Fotos dos familiares para os presos O terceiro grupo de fotos captadas pelo bisavô de JP é muito curioso e terno. Destinava-se a retribuir as imagens dos presos que o autor, uma vez chegado ao Porto, fez questão de entregar pessoalmente às respetivas famílias. Era a vez, agora, de os familiares e alguns amigos se fazerem fotografar, encarregando-se o autor de as fazer chegar aos tarrafalistas, para deleite de cada um dos presos, que voltaram a poder ver os seus. São 22 imagens, das muitas que Luiz fez e que o bisneto foi obrigado a selecionar, por razões óbvias de espaço, mas também de qualidade. Uma delas reúne 13 familiares do marinheiro comunista Fernando Vicente (n. 1914), de três gerações, quase todas mulheres, onde não é possível iludir a pobreza daquela gente. Compreensivelmente, surgem três imagens enviadas ao filho Guilherme, uma das quais, que encerra este bloco, é dos próprios pais, Luiz e Herculana, na neve da Serra da Estrela.
A contrastar deliberadamente com as fotos do bisavô, as de JP são, como se disse, a cores. O grupo mais numeroso é de imagens de Cabo Verde na atualidade e acabam por ser um tributo a um povo que, após a independência, conseguiu fazer daquelas ilhas um país a muitos títulos exemplar. Um subgrupo são retratos de uma dezena de tarrafalistas da última fase do campo, destinado a guerrilheiros ou militantes dos movimentos de libertação que lutaram contra o colonialismo português na Guiné, Angola e Cabo Verde. Relevo para o escritor angolano Luandino Vieira, do MPLA, que ali penou durante oito anos e que, surpreendentemente, confidenciou “que passou ali alguns dos melhores anos da sua vida”. Na visão do autor de Luuanda, o Tarrafal “não tem cor” e “tem que ser fotografado a preto-e-branco, porque tem aquele tom de terra cinzenta que não é possível captar a cores”. Nada convencido, JP decidiu-se a “contrariar” o romancista, e com sucesso: “Fui para Cabo Verde olhar para as cores. E encontrei-as”.
Mais de 800 cartas em dois anos Se as imagens são simplesmente admiráveis, as cartas não o são menos. Durante os quase dois anos que Guilherme da Costa Carvalho expiou no Tarrafal, ele e os pais (se bem que escritas sempre pelo pai) trocaram cerca de oito centenas de cartas, ou seja, uma média de mais de duas por dia.
A explicação para tão vasta correspondência é dada num telegrama enviado pelos pais a assinalar um aniversário da detenção de Guilherme: “Nosso querido filho [,] hoje como sempre desde que partiste [,] todos os dias [,] todas as horas [,] todos os minutos [, e] todos os segundos da nossa vida estamos contigo [.]” Diversa mas convergente foi a razão apontada pelo filho: “Eu vou procurando viver sem pensar que estou preso, é por isso que vos escrevo muito, pois, enquanto vos escrevo, é como se estivesse aí, apenas longe de vós, mas em liberdade.” Numa outra missiva dirá, simplesmente: “Aqui estamos nós com um único motivo de conversa: as saudades dos nossos, as perguntas sobre os que muito amamos.” E num desabafo: “Grande amparo para nós são as palavras – inesquecíveis – dos nossos.” Tanto escreveu Guilherme que, a dada altura, se lhe esgotaram os blocos de papel de carta, queixando-se igualmente da escassez de bicos para lapiseiras…
Meticuloso, o pai guardou todas as cartas (o original das do filho e uma cópia das suas), em dossiês. São cartas por vezes longuíssimas, manuscritas as de Guilherme, frequentemente datilografadas as do pai Luiz, o que obrigou João Pina a uma difícil seleção. O arco temporal tem início a 14 de setembro de 1949, véspera da saída de Guilherme do forte de Peniche, com o preso a escrever de noite, com destino ainda desconhecido mas que seria o Tarrafal. Termina a 14 de abril de 1951, com mais uma carta do deportado, que ainda não recebera a carta do pai, de oito dias antes, com a desejada e ansiada boa nova: “O Snr. Ministro da Justiça, depois de ouvir o Snr. Diretor da Colónia, determinou o teu regresso da Colónia.” Em maio, com efeito, após 21 meses de desterro, foi transferido para a fortaleza de Peniche.
As cartas, quase sempre transcritas na íntegra, são muito comoventes e abordam todo o tipo de assuntos. Uma ternura infinita é a sua marca de água. “Meus muito queridos Pais” ou “Paizinho” e “Mãezinha”, é a forma habitual como Guilherme se lhes dirige, nunca os tratando por tu. A que o pai responde, invariavelmente, com “meu amado e adorado Filho”, ou “meu muito querido e adorado Filho”. Sabendo que as cartas eram censuradas, no sentido em que eram lidas pelas autoridades prisionais antes de serem entregues aos destinatários, compreende-se que a política só seja ventilada marginalmente e num tom porventura codificado. O suficiente para se perceber que pai e filho não comungavam exatamente da mesma ideologia. Ainda assim, dando provas de extrema tolerância e compreensão, o pai jamais o recrimina. “Ideias políticas não sou eu que as discuto nem sou eu que as vou condenar. Sei somente que te eduquei no caminho da honra, da Justiça e do dever, tu sempre assim o seguiste com a felicidade para mim de nunca na minha vida te ter censurado qualquer ato da tua vida, nem mesmo aqueles pelos quais para aí foste.” Coincidência, esta carta é datada de 25 de Abril de 1950… Cartas virtuais ao avô e ao bisavô
O diálogo, no entanto, é tripartido, porque JP cedo se intrometeu na conversa, dirigindo cartas, necessariamente virtuais, ora ao avô Guilherme, ora ao bisavô Luiz. Numa delas, de setembro de 2019, conta: “Acabo de abrir uma caixa de sapatos, e encontrei dentro dela mais caixas e envelopes, todos cheios de fotografias, negativos e provas de contacto”, entre as quais a sequência das imagens da bisavó Herculana junto às campas. “Sem me dar conta, as lágrimas começaram-me a escorrer pela cara, e as mãos tremiam. Não era tristeza, mas pura emoção.”
As cartas de JP servem para contextualizar o diálogo de há 75 anos entre os familiares que não chegou a conhecer e são uma espécie de catarse de um drama que marcou toda a família. Não por acaso, numa das suas cartas imaginárias, endereçada em 2023 ao avô Guilherme a partir de Nova Iorque, onde vive, confidenciou: “Ao fim de quatro anos a trabalhar sobre o Tarrafal (…), hoje, pela primeira vez que me lembre, sonhei contigo.”
As cartas revelam que, durante dois anos, os pais de Costa Carvalho abasteceram regularmente não apenas o filho mas os demais presos com alimentos variados e em quantidade: “de bacalhau a carne enlatada, frutos secos, conservas de sardinha e até lampreia em lata!” Incluindo caixas de garrafas de champanhe, uma vez que, à época, se acreditava que “era bom para curar febres”. Para a malária, que tantas vítimas fizera anos antes, forneceram doses bastantes do fármaco Atebrina.
O facto de as cartas terem sido numeradas permitiu verificar que todas elas chegaram ao destinatário. Ou seja, eram certamente inspecionadas, mas a censura, neste caso singular, não se traduziu em cortes ou rasuras, muito menos em apreensões. Foi o próprio recluso que o assinalou: “grande felicidade para nós, tudo o quanto vos tenho escrito vos tem chegado”. Apesar da inevitável autocensura, encontram-se referências pontuais mas significativas a diversas figuras da oposição, como os militantes comunistas Joaquim Pires Jorge, Humberto Lopes e Virgínia Moura, vultos republicanos do Porto como Olívio França e Santos Silva, escritores como Vergílio Ferreira e Maria Lamas, o escultor Júlio Pomar (que fora recrutado para o PCP pelo próprio Costa Carvalho) e o compositor Fernando Lopes Graça. Há ainda alusões a Henrique Galvão, já à beira de romper com a ditadura, e a Mário Soares, que o desterrado conhecera quando ambos estiveram encarcerados no Aljube.
A partir do Porto, os pais foram enviando para o Tarrafal exemplares avulso ou por assinatura de jornais como O Século e Jornal do Comércio, o mensário Jornal-Magazine da Mulher, de pendor neorrealista, e revistas estrangeiras como a Life, Tempo, Oggi e, surpresa das surpresas, a Labour Monthly, ligada ao Partido Comunista da Grã-Bretanha. Por barco, foram remetidos numerosos livros e dicionários, alguns deles encomendados junto da editora francesa Hachette.
As três fases do Tarrafal Com a chancela da Tinta da China, este livro é um contributo essencial para um maior e melhor conhecimento do que foi o Campo do Tarrafal, por onde passaram cerca de seis centenas de presos políticos. Já se sabia que tinha duas fases bem distintas: uma primeira, desde a abertura, em 1936, até ao seu encerramento provisório, em 1954; uma segunda, com a reabertura em 1961, por portaria do então ministro do Ultramar, Adriano Moreira, destinado a militantes dos movimentos independentistas, até 1 de maio de 1974, com a libertação dos últimos reclusos (angolanos e cabo-verdianos).
O livro assinala que, na sua primeira e mais tenebrosa fase, haverá que distinguir o período em que o campo foi dirigido pelo capitão Prates da Silva, de 1945 a 1954. Por efeito de uma forte pressão internacional, decorrente da vitória dos aliados e da revelação do que eram os campos de concentração no nazismo, o regime de Salazar foi compelido a alterar a forma particularmente dura e desumana como geria aquela “colónia penal”. Com Prates da Silva, os regulamentos e os métodos foram substancialmente alterados. O melhor indicador reside no facto de, a partir de 1948, não se ter verificado mais nenhum óbito. Houve mudanças sensíveis na alimentação, no vestuário, na saúde, no regime disciplinar, na correspondência, nos contactos com o exterior.
O testemunho escrito da família Costa Carvalho é eloquente. Num gesto pouco conhecido ou mesmo ignorado, mas revelado pelo autor, Prates da Silva chegou a vir “à Metrópole para argumentar junto do ministro da Justiça pelo regresso do avô e sobretudo dos residentes do campo, os marinheiros que tinham estado envolvidos na revolta de 1936 e que levavam já 16 anos a apodrecer no campo”.
Funcionário e dirigente do clandestino PCP, Guilherme da Costa Carvalho viria a ser preso mais três vezes. Ao todo, esteve detido mais de 16 anos. Gravemente doente, foi libertado em 1972. Faleceu aos 52 anos, de cancro, a 24 de março de 1973 – faltavam um ano, um mês e um dia para o 25 de Abril…
Os 50 anos do 25 de Abril têm sido aproveitados, e muito bem, para as mais diversas iniciativas: na historiografia, no registo das memórias, na divulgação didática, na pedagogia para a cidadania. Estimuladas pelas comemorações oficiais, as editoras não se têm cansado de lançar no mercado títulos sobre o Estado Novo, o 25 de Abril, a descolonização e a difícil e complexa construção da democracia. Quando se fizer o balanço final do muito que tem sido publicado no cinquentenário, este Tarrafal, de João Pina, estará seguramente entre os de maior valia.
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O brasileiro Carlos Eduardo, 28 anos, que morreu, na segunda-feira, carbonizado no incêndio em Albergaria-a-Velha (Aveiro), vivia em Portugal há cinco anos. Nas redes sociais, era uma figura popular, conhecido pela alcunha de “Chantilly Papai” – que conquistou por atirar chantili a pessoas em festas -, seguido por milhares de internautas. No Instagram, publicava fotos e vídeos de festas, viagens ou vendendo bolas de Berlim, na Praia da Barra, na região de Aveiro. Tinha ainda um canal de Youtube. Sonhava ser músico e bailarino.
Carlos Eduardo nasceu na favela do Coque, na periferia pobre de Recife, no Nordeste brasileiro. Era o mais novo de 16 irmãos. Em Portugal, veio à procura de uma vida melhor. Pai de uma filha pequena, residia no bairro da Severa, em Águeda, numa casa partilhada com outros compatriotas. A paixão pelo samba tornou-o figura conhecido do Carnaval de Ovar. Três irmãs vivem em São João da Madeira.

Engolido(s) pelas chamas
O corpo de Carlos Eduardo seria encontrado carbonizado, por volta das 15h30 de segunda-feira, na zona florestal do Sobreiro, uma zona florestal em Albergaria-a-Velha, a poucos quilómetros da casa onde vivia..
O brasileiro era funcionário de uma empresa que se dedica à exploração florestal e terá ido, juntamente com outros trabalhadores, recuperar alguma maquinaria que se encontrava numa zona afetada pelo incêndio. A Polícia Judiciária assumiu a investigação da ocorrência.
Nas redes sociais, a irmã, Eduarda Neves, lamentou a morte de Carlos Eduardo. “Eu só queria acordar desse pesadelo. Eu ainda não acredito”, escreveu, numa publicação no Instagram. O corpo de Carlos Eduardo foi levado para o Instituto Nacional de Medicina Legal, onde realizou a autópsia. O consulado do Brasil no Porto ficou encarregado de dar suporte à família do brasileiro .
Os incêndios que assolam o Centro e Norte do País continuam a fazer vítimas. Na terça-feira, três bombeiros da corporação de Vila Nova de Oliveirinha, município de Tábua, morreram, quando a viatura em que se seguiam, a caminho de um incêndio naquele concelho, foi atingida pelas chamas. O número de mortos, vítimas dos fogos, subiu para sete.
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Trata-se de olhar tudo em volta, de estar atento, pensar. A música de Pedro Lima não hesita perante a complexidade do mundo, de estar ciente dele, das muitas realidades que o fazem, de as refletir, nem tão pouco de seguir em frente. A música de Pedro Lima tem a sinceridade das coisas vitais.
Talkin(g) (A)bout my Generation é o seu álbum de estreia e também o nome da composição que o abre, a primeira de cinco a fornecer desde logo a ‘chave’ do que vem a seguir. A peça nasce “de uma necessidade de partilhar algumas ideias […] sobre o mundo contemporâneo”, escreve Pedro Lima nas notas de apresentação. “Não estou honestamente interessado em avaliações qualitativas ou juízos morais sobre aquilo que está certo ou o que está errado. Deixo isso para os outros”, prossegue, para afirmar mais à frente: “Estamos sem volante há algum tempo, não sei se o recuperaremos outra vez; mas, afinal de contas, que importa? Esta obra é uma reação a tudo isto, é uma aliteração musical e também uma estória que procura combinar o drama com o humor.” Assim é.
Pedro Lima nasceu em Braga há 30 anos. Estudou com Paulo Bastos no Conservatório Calouste Gulbenkian, na cidade natal, com Luís Tinoco, na Escola Superior de Música de Lisboa, com Julian Philips e Julian Anderson, na Guildhall School of Music and Drama, em Londres. Estreou cedo as primeiras obras, como “Sopro do Côncavo”, na Casa da Música, no Porto, e “Once Again Eternal Goodbyes”, em Berlim, em 2015. Foi premiado em 2016 por “(…) e tu, de mim voaste”, obra então estreada pela Orquestra Gulbenkian. Em 2018, compôs “Theatro – Um Ensaio Geral”, com Francisco Fontes e Diogo Martins, para o centenário do Theatro Circo, em Braga, e dois anos depois apresentou “Reel Woman”, na capital britânica. Foi Jovem Compositor em Residência na Casa da Música, em 2019, compositor associado dos Estúdios Victor Cordon, em Lisboa, no ano seguinte, e compôs para o projeto Ópera na Prisão: Traction (O Tempo Somos Nós), que se estreou na Gulbenkian, em 2022. É interpretado em salas de concerto dentro e fora de Portugal, do Milton Court Theatre, em Londres, ao Grande Auditório da Gulbenkian, da Casa da Música, à Konzerthaus de Berlim.
“A sua música procura explorar universos sonoros próprios de um meio eclético, adjacente a alguém que cresceu a ouvir música eletrónica, hiphop e fez parte de uma banda de rock progressivo”, lê-se na biografia que acompanha o álbum de estreia. “A composição dita ‘erudita’ revelou ser a tela em branco de perfeitas dimensões, e lá se têm materializado uma série de ‘investigações’ tímbricas, harmónicas, estruturais. Nas suas partituras manifestam-se ideias singulares que assumem diferentes formas e expressões que variam mediante o contexto onde pretendem existir.”
É o que se encontra em Talkin(g) (A)bout my Generation, para soprano, orquestra de câmara e eletrónica em tempo real. Estreada pelo Remix Ensemble em 2019, a obra desenvolve-se numa articulação perfeita com o libreto de Gareth Mattey, escritor britânico com quem Pedro Lima tem colaborado desde os anos de Londres. A música tem tudo em conta, cada palavra, cada sílaba, cada gesto, cada imagem, num corpo poderoso: “Há um fogo! Onde? Que importa?”, interroga. “O fim súbito aproxima-se por certo”, num tempo de “venda e compra de desastres em saldos”, num tempo em que tudo e todos estão “exaustos, apenas exaustos”.
Como se fosse um filho, para piano, violino, violoncelo e eletrónica, de 2023, segunda peça do disco, resulta de uma encomenda da Miso Music Portugal no âmbito da exposição “A Guerra Guardada – Fotografias de Soldados Portugueses em Angola, Guiné e Moçambique (1961-74)”, com curadoria de Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte, que esteve patente no ano passado no Museu do Aljube, em Lisboa. Estreada então, no festival Música Viva, pelo violinista Vítor Vieira, o violoncelista Filipe Quaresma e a pianista Elsa Silva, a obra toma por referência a história de uma das “fotos faladas” da mostra, em que as imagens da guerra eram acompanhadas por testemunhos gravados. Neste caso trata-se da história de uma criança perdida, que é “adotada” temporariamente por um soldado português, em Moçambique. As memórias do ex-militar acompanham toda a obra e encontram representação em três secções: a primeira dedicada à relação de confiança que se estabelece entre ambos, a segunda, mais viva, sobre o quotidiano da criança no quartel, e a derradeira, nostálgica e meditativa, sobre o final comovente da história.
O impacto desta obra exige tempo de respiração, o que a seguinte, “(eu diria que nevava)”, permite. Composta em 2021 para saxofone e voz, assenta num poema de Maria Afonso. O vaguear implícito nas palavras concretiza-se na música, que chega mesmo a assumir um caráter programático em alguns dos momentos. A interpretação é de Luís Salomé e a voz da soprano Catarina Carvalho Gomes.
“Three Questions from a Lover to a Saint”, para vibrafone, megafone e eletrónica em tempo real, foi estreada em 2020 por Miquel Bernat. À semelhança da peça de abertura do disco, conta com libreto de Gareth Mattey, que a apresenta como “uma cena de teatro musical […] sobre o poder queer e sensual patente no martírio de São Sebastião”. A obra nasce de uma narrativa imaginária criada a partir da lenda do santo e divide‑se em três partes, correspondentes às perguntas que lhe são feitas: “Estás vivo?”, “Dói-te?” e “Quem fez isto?”. Cada pergunta traduz-se numa “questão musical”, desenvolvida num discurso fluído e intenso, evidenciando “a fragilidade, a delicadeza, mas também a violência” do drama.
O álbum encerra com “new beliefs”, de 2023, para guitarra solo, ampliando a dimensão sonora do instrumento de forma inaudita. A peça abre com acordes que sugerem o dobrar de sinos. “Sabíamos que a obra seria gravada na Capela da Imaculada Conceição de Braga, um espaço sagrado, onde o lado mais belo da arquitetura e da carpintaria contemporânea se fundem num contexto religioso”, escreveu Pedro Lima sobre a obra. “Além deste pormenor narrativo ser representativo da ideia de ‘nova crença’ pelos meios da nova e refrescada arquitetura, este local oferece ainda um contexto acústico absolutamente sublime onde a guitarra, frágil por definição, ganha um espírito expandido que procuramos captar.” A interpretação é de Daniel Paredes.
“(eu diria que nevava)” e “Three Questions from a Lover to a Saint” foram também gravadas na Capela da Imaculada Conceição, pelo engenheiro de som Hugo Romano Guimarães.
No início do ano, Pedro Lima estreou uma deliciosa bem humorada “Dance Suíte”, no concerto inaugural de Aveiro – Capital Portuguesa da Cultura. A abordagem deverá estar presente no seu próximo álbum, segundo uma entrevista recente do compositor, disponível no ‘site’ da Miso Music Portugal, na qual adianta ainda estar a trabalhar em duas óperas a estrear em 2025 e 2026, numa peça para ensemble, a apresentar no próximo ano, e no espetáculo de dança “Clementina”, entre outros projetos, alguns de caráter comunitário.
Nisto de olhar o mundo, “haverá sempre matéria para impulsionar a criação, e a música revela-se particularmente pertinente em contextos adversos”, afirma Pedro Lima, nessa entrevista. “Imaginando que o futuro poderá trazer consigo desafios, prevejo que nesse contexto a música e arte se revelem como ‘armas’ ainda mais poderosas na sua inegável capacidade para sensibilizar, educar, refletir e porventura curar as feridas que possam, ou não, surgir pelo caminho. […] Enquanto houver vida haverá sempre música e haverá sempre arte, uma vez que são parte basilar da nossa essência e não teremos como renunciar a algo tão identitário. Na busca pela beleza, sempre”.
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A Terra passou por diferentes fases desde a sua formação e uma equipa de investigadores sugere agora que o planeta possa mesmo ter tido um anel semelhante aos que encontramos em Saturno. Esse anel pode ter tido origem num asteroide, com vários destes blocos mais pequenos de rocha a despenharem-se na Terra. A hipótese é avançada depois de um extenso trabalho de investigação e pode ajudar a explicar também outros mistérios, como o arrefecimento global que se seguiu a esse período.
Para começar, a equipa mapeou a localização de 21 crateras datadas de há 466 milhões de anos e usou modelos para aferir onde as placas tectónicas estavam localizadas na altura. Todas as crateras estão concentradas dentro de 30 graus do equador, algo que pode ser considerado uma anomalia na amostragem.
De seguida, os investigadores calcularam quanta superfície continental estaria coberta e capaz de manter as crateras preservadas durante tanto tempo. A equipa focou-se em porções estáveis e excluiu regiões que poderiam ter sido enterradas ou desfeitas pela atividade tectónica e os resultados mais prováveis foram encontrados na Austrália, África e secções da América do Norte e Europa.
Os mesmos modelos foram usados para perceber onde é que esses terrenos estariam localizados e descobriu-se uma concentração perto do equador, o que pode ser entendido como uma anomalia estatística. No entanto, se a Terra estivesse cercada por um anel gerado pela passagem, captura e destruição de um asteroide, é possível que assistíssemos a um fluxo de meteoritos provenientes desta cintura e que cairiam na mesma região, em torno do equador.
Os vestígios destes meteoritos apresentam sinais de não terem passado muito tempo no espaço antes da queda, o que corrobora a teoria do anel da Terra. Além disso, 20 milhões de anos depois desta altura, o nosso planeta passou por uma Idade do Gelo, algo que também pode ser explicado pela sombra gerada pelo anel e potencialmente causando um arrefecimento global.
O professor Andy Tomkins, que liderou o estudo, afirma que “a ideia de um sistema de anel ter influenciado as temperaturas globais adiciona uma camada de complexidade ao nosso entendimento de como eventos extraterrestres possam ter formado o clima da Terra”.
Os próximos passos da equipa envolvem perceber como os asteroides se separam e formam anéis e como isso pode evoluir ao longo do tempo e o trabalho posterior será sobre modelar os efeitos desses anéis no clima.
Leia o estudo completo publicado no Earth & Planetary Science Letters.
Em 2015, As Mil e Uma Noites, talvez o mais ousado filme de Miguel Gomes, entrou em Cannes pela ‘porta pequena’. O comité de seleção alegou que o filme era demasiado comprido (na verdade, divide-se em três parte e equivale a três longas-metragens), e exclui-o do concurso principal, selecionando-o apenas para uma das secções paralelas, a Quinzena dos Realizadores. Produtores e realizador não disfarçaram a desilusão, apesar de o filme ter ganho dois importantes prémios no certame. Em Grand Tour, o festival fez uma espécie de reparo histórico ao selecionar o filme para a secção principal. E o júri, presidido por Wim Wenders, fez-lhe justiça, ao distingui-lo com o prémio para a melhor realização.
Baseado num conto de Somerset Maughan e com Crista Alfaiate e Gonçalo Waddington nos principais papéis, Grand Tour oferece-nos o périplo pela Ásia, atrás das duas personagens: um homem em fuga e a noiva que o persegue.
Para esta ficção, Miguel Gomes filmou uma espécie de arquivo contemporâneo, cruzando a ficção com imagens documentais de cada um dos sítios por onde passa. O filme é falado em português e narrado em diferentes línguas asiáticas.
Miguel Gomes é um dos mais reconhecidos realizadores portugueses da atualidade. Começou o seu percurso, em 1999, com a curta-metragem Entretanto. Entre outros, a sua obra inclui filmes como Aquele Querido Mês de Agosto (2008), Tabu (2012), As Mil e uma Noites (2015) e Diário de Otsoga (2021, realizado com Maureen Fazendeiro.
JL: Já filmaste em África, tens um projeto no Brasil e agora a Ásia. A ideia é dar a volta ao mundo em filmes?…
Miguel Gomes: Tenho ainda outro projeto na Bretanha… Mas começo a chegar à conclusão de que, para mim, fazer filmes tem a ver com o desejo de partir, de preferência, à aventura (uma aventura o mais aventurosa possível). Existe uma separação clara entre aquilo que é o meu quotidiano e a ideia de fazer um filme.
Isso aplica-se mesmo a Aquele Querido Mês de Agosto, apesar de ser filmado em Portugal?
No caso, era partir para um território particular, em Portugal, com os seus próprios rituais e regras de funcionamento. Cabia a mim desvendá-las e expô-las no filme. Para partir não é necessário fazer milhares de quilómetros. Mas, no caso do Grand Tour, foram mesmo milhares: não só pela distância de Portugal, mas pelos quilómetros durante o próprio filme.
Ao mesmo tempo que há essa partida, deslocando o cenário do filme para locais que não dominas, mantém-se uma linguagem que une o teu trabalho… Como isso acontece?
A isso pode chamar-se o meu sistema nervoso, que engloba a minha sensibilidade, o sentido de humor, grupos de interesses. Tudo isso permanece ativo, esteja eu na Ásia, no Brasil ou na Europa. Em cada lugar, há oportunidades para o deslumbramento, para poder capturar coisas que falem comigo, porque são divertidas, bonitas, comoventes. Não acho que haja um território que tenha mais capacidade para me seduzir do que outro.
É um cinema de sedução e deslumbramento?
Não sou da família dos realizadores que querem dizer coisas. Não quero falar. Quero ver, filmar e mostrar. O deslumbramento tem a ver com nunca compreender porque é que nas Filipinas existe um desporto nacional chamado karaoke e o My Way é o objeto central. Não faço ideia porquê. Apenas contacto com esse fenómeno e tento captá-lo. Não sou eu que tenho de explicar essas coisas, somente partilho a minha fascinação não racionalizada por isso.
Também não fazes parte da família de realizadores obcecado pela realidade. Não é muito importante saber se aquele rio, efetivamente, não se pode subir…
De facto, o rio não se podia subir. Mas não hesitamos um segundo em enquadrar elementos que fogem à realidade, se isso tornar mais interessante aquele mundo paralelo que é o cinema.
Ao mesmo tempo, há no filme uma dinâmica de argumento, em que uma parte mais documental parece ilustrar emocionalmente a narrativa.
Gosto sempre de tentar fazer uma coisa e o seu contrário. Sou adepto dessa dialética. Quis criar mecanismos de narração e montagem, com um fluxo contínuo em que, mesmo nos momentos em que os personagens estão ausentes, eles pudessem de alguma forma estar presentes. A próprio natureza da proposta é descontínua. Passamos imagens de estúdio de 1918, ao lado de outras, com telemóveis e motos, ligadas ao nosso tempo de hoje. Acho divertido ver as respostas dos espectadores a isso. Há quem veja a continuidade, não perdendo de vista o Edward e a Molly; e há quem reaja à descontinuidade de forma positiva ou negativa, vendo dois mundos diferentes que se vão sucedendo, apesar de estar sempre a acontecer a mesma história. Usamos imagens de arquivo não do passado, mas sim do futuro (do futuro daqueles personagens). Apesar disso, tentamos que os personagens continuem a existir. Fazer um filme é sempre difícil, temos que tentar acertar e ver se as coisas funcionam. Mas para mim é irresistível a ideia de fazer dois filmes num só.
Não é a primeira vez que acontece…
Olhando para trás, penso que os meus filmes são sempre o resultado de um processo pré-definido, que pode passar por coisas muito diferentes. Por exemplo, no Mil e Uma Noites, a ideia foi criar ficção a partir daquilo que estava a acontecer na atualidade, sem poder antecipar nada, sem um argumento prévio – tivemos de escrever em cima do acontecimento e filmar o mais rapidamente possível. Em Diários de Otsoga, entrámos todos numa casa, num confinamento artístico, em que a única coisa que sabíamos era que íamos fazer um diário sobre esse momento, invertendo as suas páginas. O resto quisemos descobrir fazendo.
E no caso do Grand Tour?
Tirei a história de duas páginas do Somerset Maugham, que tinham o percurso e a piada que as mulheres são teimosas e os homens cobardes. Disse à produtora que, antes de mais, gostaria de filmar a viagem, fazendo uma espécie de arquivo, que iria integrar o filme. Por isso quis viajar, não só com os argumentistas, mas também com os diretores de fotografia e de som. Depois, em Lisboa, tratámos de fabricar ficção através destas imagens.
O filme divide-se em duas partes. É muito comum no teu cinema ficar exposta esta ideia de partes ou capítulos, usando mesmo separadores. O que pretendes com isso?
Fico muito fascinado pelo facto de haver uma estrutura visível, que parece definir muito as regras do jogo. Enquanto espetador, acho interessante entrar num filme e ver como funciona – porque os filmes não têm que funcionar todos da mesma maneira. Depois, a partir do momento em que se instala um modelo, que não oculto, começam as variações dentro desse quadro que parece ser muito normativo. É como acontece com o Alain Resnais: ele fabricava mundos com regras muito definidas que as mostrava. Por exemplo o Smoking /No Smoking, filme que se vai bifurcando e mostrando várias possibilidades. Ou É Sempre a Mesma Cantiga, em que os personagens começavam a cantar em playback standards da chanson française. Às tantas atirava à cara do espectador a mecânica do filme, mas depois aquilo era surpreendentemente livre apesar de estar tão pré-definido. No caso de Grand Tour, há uma comunicação entre o registo do real e o estúdio. E quisemos perceber que tipo de dialética pode nascer nessas passagens permanentes.
As personagens principais são inglesas, mas falam em português. Não seria esta uma oportunidade para conquistar novos mercados, fazendo um filme inglês, ao exemplo daquilo que tem acontecido com alguns realizadores europeus? Pensaste nisso?
Havia alguma pressão dos coprodutores para essa possibilidade, de um aproveitamento mais comercial do mercado, com a presença de alguns atores americanos ou ingleses. Então eu tomei a decisão de que no filme se vai falar tudo menos inglês. É verdade que é uma maneira de reverter a predominância cultural, o imperialismo linguístico. Embora eu não tenha qualquer problema com isso, porque aceito o cinema naquilo que tem mais de artificial. Há decisões que têm a ver com o sistema económico de produção de cada país. Se os americanos que filmam Roma antiga com toda a gente a falar com o sotaque do Bronx, não é isso que vai constituir um problema para mim. Tal como quando vou ver uma peça do Tchekov não me parece que a verdade da encenação da peça passe pelo facto de não ser falada em russo. A verdade do espetáculo passa por um mundo com convenções próprias, em que os britânicos passas a ser portugueses.
Ainda assim, reformulo a pergunta. É comum alguns realizadores europeus, quando chegam a determinado estatuto, deixarem-se tentar pelo mercado e fazer um filme em inglês. Depois de o prémios em Cannes, não sentes essa tentação?
Teria mais facilidade em responder a essa questão caso essa proposta tivesse aparecido. E parece-me que isso nunca vai aparecer. O prémio em Cannes é importante, e vai contribuir para expor o meu trabalho a uma escala maior. Contudo, o que pratico é demasiado singular ou caprichoso para ser digerido por esquemas mais industriais. Ninguém está à espera que eu me porte bem. Não estou a ver no horizonte esse tipo de convites da indústria. Vão sempre achar que eu não vou fazer um filme que agrade a um grande público. Mas, o que sei eu, se calhar daqui a uns anos vou estar a fazer O Senhor dos Anéis 20, ninguém prevê o futuro.
No Guardian dizem que o teu filme é, ao mesmo tempo, sofisticado, inocente e charmoso. Esta junção parece ser algo muito difícil… Como manténs a inocência dentro da sofisticação?
Tem a ver com o deslumbre, a capacidade de olhar para as coisas e dizer ‘uau’. Hoje em dia é cada vez mais difícil dizer ‘uau’, porque o mundo está mais decifrado, explorado, comercializado, empacotado de uma maneira que ninguém perca muito tempo a descobri-lo. A ideia do viajante que olha para alguma coisa e é uma surpresa total tende a extinguir-se. O mundo já vem empacotado ao estilo fast food.
No final de Grand Tour, repete-se a ideia de desconstrução do cinema, de que mostrar que estamos… É uma espécie de assinatura?
O filme sempre foi um filme, desde o início e não é uma questão de metacinema. As personagens do cinema são marionetas, seres de ficção, completamente falsos, que podem nos ajudar a conectar com a nossa vida real, com nós próprios e com o futuro. A falsidade é uma maneira de aceder a verdade.
É por isso que há tantas cenas de marionetas no filme?
As marionetas são imortais, podem sempre pôr-se de pé, mas nunca irão fazer parte da vida. O Eduard e a Molly, por mais que o espectador se conecte com eles, continuam a ser sempre marionetas. Não me interessa a psicologia das personagens, mas sim o espectador Desde muito cedo, está definido que aquelas personagens são criações da cultura ocidental e também da cultura asiática.
São personagens levadas por obsessões, uma da fuga e outra de perseguição…
O ponto de partida é esse: dois personagens que estão em movimento, quase em antítese. O Edward é um personagem introvertido, que se esconde no mundo, pelo que o seu tempo de ecrã é bastante menor. Ela, por seu lado, faz uma espécie de take over do mundo, de acordo com o seu desejo e objetivo. Mas não estou completamente certo do que se passa pela cabeça dos personagens. O Gonçalo Waddington deu-me uma liçao em Cannes. Porque eu olho para o Edward como um cobarde e ele disse que não o fez como um cobarde.
Uma das marcas é o riso da Molly. Onde foram buscar aquilo?
Foi um dia bastante absurdo da minha vida, em que ficámos não sei quantas horas a tentar inventar risos. Era o primeiro dia de trabalho com a Crista. Quando o encontrámos ficámos muito satisfeitos e não fizemos mais nada. Sabíamos que iria ser muito importante para a personagem.
Continuas a trabalhar com o comité central?
Nasceu com o Tabu. Como havia problemas financeiros, tivemos que reformular o filme em cima do momento da filmagem. Decidimos não fazer uma versão mais pobre, quisemos encontrar cenas que nos podiam dar o que nos interessava, apesar da falta de recursos. Portanto a ideia foi escrever enquanto filmávamos. Desta vez a ideia foi reagir àquilo que filmámos na Ásia, para depois voltar à escrita na altura da montagem. São processos muito orgânicos que misturam as fases de escrita, preparação, rodagem e montagem.
Neste filme também se divertiram?
Às vezes parece que nos divertimos mais do que aquilo que aconteceu na realidade, porque há sempre momentos em que parece que as coisas não vão funcionar. O filme decisivo para tudo aquilo que vim a fazer foi Aquele Querido Mês de Agosto. Um filme em que havia um argumento clássico, mas em que tudo se desmoronou. Então resolvemos ir para região da Beira e filmar o que nos parecesse interessante. Foi a rodagem mais feliz da minha vida. Percebi, nesse momento, que alguma coisa iria acontecer com os filmes se seguíssemos uma lógica de prazer e de descoberta, sem saber de véspera o que íamos filmar. Isso manteve-se de filme para filme. Talvez hoje procure modelos de fabricação de ideias para filmes, em que esses momentos possam existir. Em Grand Tour, tivemos o prazer da viagem. No início de 2020, percorremos aqueles países todos, menos a China, porque na véspera anularam o ferry que fazia a ligação entre o Japão e Xangai, por causa do Covid. Chegámos a Lisboa com 80 por cento do material filmado. E, de repente, entramos em confinamento, o oposto a todos aqueles quilómetros percorridos. Mas também achei interessante ir para estúdio e criar um mundo a partir dali.
Qual será o próximo projeto? Será finalmente o Selvajaria?
Sim, é a adaptação do Sertões, do Aclides da Cunha. Em 2018, vivi o período mais difícil da minha vida profissional. Nunca trabalhei tanto num argumento como nesse e fui várias vezes ao Brasil, mas parecia uma montanha impossível de escalar. Com o Grand Tour reabriram-se as perspetivas. Estamos bastante otimistas. Na altura, eu e o Luís Urbano estávamos a preparar o Selvajaria, não existia dinheiro público do Brasil. Isso agora mudou.
Foi um problema orçamental?
Sim, depois ainda se meteu o Covid. Chegámos a ter bastante dinheiro, mas todos esses apoios tinham um prazo de validade. Houve um momento em que tínhamos vários apoios a caducar, sendo que o produtor achou que não havia as condições para avançar com o projeto, por lhe faltar a parte brasileira. Agora vou voltar a isto, com a Filipa Reis, e estou otimista. Se tudo correr bem, em finais de 2025 ou início de 2026, iniciaremos a rodagem.
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A 5 de setembro de 1977, no dia do lançamento da Voyager 1, ninguém teria a expectativa de que a sonda ainda estivesse em funcionamento aos dias de hoje. A verdade é que o aparelho se mantém funcional, mesmo estando a 24 mil milhões de quilómetros da Terra e esteja a passar por alguns problemas, nomeadamente com algumas peças a falharem. Quando tal acontece, as equipas na Terra têm de ser criativas para encontrar soluções que não afetem os restantes componentes.
Há alguns meses, os engenheiros perceberam que havia um problema com o tubo de combustível dentro de um dos propulsores da sonda, que estava entupido. Os propulsores são essenciais para manter a Voyager 1 estável e com a antena apontada para Terra, para poder receber comandos ou enviar dados. A solução encontrada passa por mudar para outro par de propulsores, mas não seria de execução fácil.
A Voyager 1 tem três conjuntos de propulsores, um dos quais dedicado a correções de trajetória. Agora que está numa rota inalterada para longe do Sistema Solar, só precisa de usar um dos conjuntos para manter a antena apontada para Terra. Para os alimentar, combustível líquido é convertido em gás e libertado em 40 pequenas doses por dia. Um resíduo desta operação, proveniente do desgaste do diafragma de borracha do tubo de combustível, acabou por levar ao entupimento deste e fez com que o propulsor gerasse menos força. Há seis anos, este tubo tinha um diâmetro de 0,25 milímetros e agora, com o entupimento, passou para os 0,035 milímetros ou metade de um cabelo humano, explica a CNN.
Com o passar do tempo, a equipa da missão Voyager (a gerir as sondas Voyager 1 e 2) tem vindo a desligar os sistemas não essenciais para aumentar a longevidade e manter energia, nomeadamente o calor. Assim, como alguns dos componentes estão mais frios e não se ligam imediatamente (por as sondas estarem cada vez mais distantes do Sol), a equipa teve de perceber o que teria de desligar para poder ativar os aquecedores dos propulsores. Os engenheiros optaram por desligar um dos aquecedores principais durante uma hora, para dar a possibilidade de ligar os aquecedores dos propulsores e executar a troca necessária.
O plano foi bem sucedido e a 27 de agosto a Voyager 1 passou a usar o ‘novo’ conjunto de propulsores para se manter em contacto com a Terra. Já em 1999 e 2019 tinha sido executada a mesma operação de troca na Voyager 2, mas esta sonda está numa situação menos crítica e mais próxima da Terra, situada a ‘apenas’ 20 mil milhões de quilómetros da Terra.
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Junto à montanha de Halavala, no planalto central de Angola, um pelotão militar português aí acampado é encontrado morto. Mas à volta não é encontrado qualquer indício de ataque, de revolta, de crime. O mistério, tão denso quanto o silêncio que envolve cada soldado, tem de ser desfeito, sob pena de se revelar a fraca ocupação colonial portuguesa no país. Estamos em 1902 e no início de uma viagem narrativa que nos transporta até ao que se viveu naquele tempo, entre a realidade e a ficção, entre factos que podiam ser reais e imaginações bem documentadas. Falamos de Mestre dos Batuques, o novo romance de José Eduardo Agualusa, que continua a mapear, em romance, a história recente ou mais antiga do seu país. Neste caso, uma missão militar destapa uma outra história de Angola, uma outra ocupação do território, outros protagonistas que também definiram o curso de tudo o que estava em jogo naquela região. Pelo meio, uma história de amor e de autodescoberta, pessoal e coletiva.
Nascido em 1960, no Huambo, José Eduardo Agualusa estreou-se, em 1989, com A Conjura, logo distinguido com o Prémio Revelação Sonangol. Seguiram-se muitos outros romances, volumes de contos e poemas, biografias e livros de crónicas, como Nação Crioula (Grande Prémio Literário RTP, Fronteiras Perdidas (Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco), O Vendedor de Passados, As Mulheres do Meu Pai, Teoria Geral do Esquecimento (Prémio Fernando Namora e Prémio Literário Internacional IMPAC de Dublin) ou A Rainha Ginga. Com uma vasta obra também no cinema assina o guião de dois filmes a estrear em outubro, Sobreviventes, de José Barahona, a 3 de outubro, e Os Papéis do Inglês, de Sérgio Graciano, a partir da oba de Rui Duarte de Carvalho, a 24 de outubro.
Jornal de Letras: A ficção continua a ser a melhor forma de revelar outros tempos e geografias de Angola?
José Eduardo Agualusa: Sim. Eu estreei-me com um romance histórico, há mais de 30 anos, precisamente porque achava que através do romance histórico era possível refletir e discutir questões que tinham que ver com a formação de Angola e que, de certa forma, explicam situações que aconteceram depois, como é o caso da Guerra Civil. Este livro não exatamente um romance histórico – é outra coisa, quanto muito um falso romance histórico, mas também vou atrás da História para para tentar compreender e discutir o presente.
Parece que cada região de Angola, um país enorme, tem as suas histórias, os seus nós, os seus encontros, todos muito parecidos, todos os diferentes.
É verdade. E esta é a primeira vez que escrevo um romance que em grande parte se passa no planalto central de Angola, a zona onde nasci. E, sim, no contexto do processo de colonização de Angola, que é muito complexo, o que se passou no Huambo não é comparável com o que se passou em Benguela ou em Luanda,e o contrário também. São todas situações muito diferentes. Vivo agora em Moçambique e também não se pode comparar o que se viveu aqui com Angola. Quando se pensa no processo colonial, tem-se a imagem de uma conquista rápida e pacífica. Fala-se sempre nos 500 anos em que os portugueses estiveram em Angola (ou em Moçambique) e não é verdade.
Em que sentido?
A ocupação efetiva e completa do território que hoje conhecemos como Angola é muito tardia e limitada no tempo, só no século XX e até 1975. É um domínio muito breve. Isso quer dizer que as populações do planalto central de Angola estiveram sob domínio colonial português durante muito pouco tempo.
Ao passar-se sobretudo no final do século XIX e inícios do XX, o romance capta essa ocupação ainda frágil.
Interessa-me mostrar que, neste processo, os africanos também participam de uma forma ativa, não são agente passivos. Têm os seus próprios interesses. Se é certo que esse processo colonial foi feito de uma forma violenta, na maior parte das vezes foi negociado, cada parte defendia o seu interesse económico. Esses interesses também estavam presentes nos poderes locais do planalto central de Angola. No romance tento mostrar essa dinâmica.
O Reino do Bailundo, onde decorre o romance, tem uma dimensão histórica e mítica forte no imaginário angolano?
De certo forma, sim. Ainda hoje existe e é reconhecido pelo Estado angolano. Tem, por isso, uma presença relevante até hoje. E o Reino do Bailundo é importante porque está no coração da origem da UNITA. E a formação da UNITA é completamente diferente, em termos culturais e conceptuais, representa de facto interesses distintos dos do MPLA. A UNITA existe por causa da realidade concreta do Reino do Bailundo e do que foi o processo colonial português naquela região. Luanda teve efetivamente uma colonização portuguesa muito prolongada que deu origem a uma cultura muito integrada e mestiça, com elementos portugueses e africanos e com a predominância da religião católica. No planalto não foi assim, notando-se mais a influência das missões protestantes de língua inglesa, com um processo mental completamente diferente e com uma influência nativa muito mais forte.
Diz no fim do romance que este lhe surgiu num clarão. Que imagem ou ideia surgiu em primeiro lugar?
Nos meus trabalhos anteriores, parti quase sempre de uma ideia muito vaga: um homem que vendia passados aos novos ricos, em O Vendedor de Passados, ou uma mulher fechada num apartamento em Luanda, em Teoria Geral do Esquecimento. A história só a descobri depois. Neste caso foi diferente. Estava em Portugal, numa viagem entre Porto e Braga, se não me engano, e de repente a história caiu-me no colo. É claro que surgiu porque eu tinha estado, nos meses anteriores, lendo tudo o que tivesse que ver com a História do Bailundo por causa do livro anterior, Vidas e Mortes de Abel Chivukuvuku. Por um lado, estava muito imerso naquele universo. E, por outro, também andava a ler o fenómeno das drogas digitais ou sonoras. E tudo se misturou naturalmente, o que fez com que começasse a escrever com uma ideia muito mais sólida.
Essas muitas leituras que fez estão presentes nos apartes da narradora (colocados entre parênteses retos) que abordam aspetos antropológicos e citam vários viajantes. O que o interessou nesse diálogo?
A história é contada por uma mulher que está no presente, nos dias de hoje, que tem de certa forma um interesse grande no que está a ser contado. E, como ela, também fiquei fascinado com alguns testemunhos curiosíssimos que fui encontrando. Custa deixar de fora. O sentimento é: tenho de partilhar isto, pois é tão bom e bonito. Estas notas são a partilha de um deslumbre com livros reais.
Algumas dessas notas parecem bem certeiras nas observações que fazem.
Sim. O que procurei aqui, como em outros livros meus, foi partilhar o lado menos conhecido e mais capaz de desmontar as narrativas oficiais, aqueles testemunhos que de repente dinamitam todas as convenções e ideias feitas.
Jan Pinto também é uma dessas personagens que dinamitam convenções…
Ele é uma ponte entre o mundo europeu e o africano mais profundo e por isso mesmo mais difícil de compreender, no sentido em que não é tão conhecido fora de Angola. É filho de um colono português e de uma mulher bóer, mas nasce e cresce no contexto do planalto central. É uma personagem interessante porque vive dividido e meio perdido. Não é um herói clássico, antes alguém apanhado pela história. Mas faz esse papel de ligar dois mundos.
A História de Angola, para o bem e para o mal, também se fez de pessoas como esta personagem, longe do herói de causas bem definidas?
Sim, sim. Aliás, estas personagens às vezes têm mais importância do que as outras, até porque provavelmente são em maior número. A maioria das pessoas não tem convicções muito profundas. Tivemos isso em Angola, com muitos angolanos a combater nas tropas portuguesas e, depois da Independência, a juntarem-se às novas forças do país. As pessoas são resultado de uma série de situações e acontecimentos. São poucos os que se rebelam contra os movimentos da História.
Conhecemos Jan Pinto também pela história da sua família. Esse tempo longo também ajuda a mostrar as vicissitudes do processo colonial angolano?
Houve a procura de tempo longo, sim. Porque os processos coloniais são sempre processos complexos, feitos por pessoas, que não são lineares, antes complexas, não são uma coisa só, defendendo interesses muitos distintos. É uma multiplicidade que também me interessa trabalhar.
Não concebe a sua literatura sem pessoas com dúvidas, hesitações, heterodoxias?
As personagens mais estimulantes, reais, genuínas e autênticas, são essas, as que têm dúvidas e que às vezes podem fazer atos heroicos, mas não são super-heróis. Aliás, nunca gostei de super-heróis, até hoje. Gosto de pessoas. E escrevo para as compreender, incluindo nas suas debilidades e fragilidades.
No romance, há muitos elementos que uma mente mais racionalista facilmente associaria à magia ou ao realismo mágico. É inevitável convocar esse universo quando estava a falar de certas regiões de Angola?
Obviamente que estas culturas mais antigas de Angola têm uma ligação com o universo mágico. Também é verdade que aquilo a que chamamos mágico são as tecnologias que não conseguimos explicar. Se chegássemos ao século XIX com um iPhone na mão, esse objeto seria considerado mágico. E o romance também debate a questão das tecnologias apropriadas para cada situação, que os portugueses também enfrentaram em África. Mas além disso, é claro que há todo um universo mental, de ligação à natureza, que está presente de uma forma muito mais viva nas zonas rurais de Angola.
E com uma ligação mais forte também à música?
A música sempre esteve ligada à magia, tal como a palavra e a poesia. Num livro anterior, Os Vivos e os Outros, parte da primeira frase da Bíblia – “No princípio era o Verbo.” – que é pura magia: a realidade criada através da palavra.
O romance aborda muito as questões da identidade, sobretudo as que envolvem a raça e a religião. Uma temática muito atual…
As questões identitárias são muito relevantes em todos os países jovens. E as literaturas desses países refletem esse interesse. Mas, curiosamente, na Europa essas questões, também por questões migratórias, passaram a estar na ordem do dia. Veja-se o caso da Inglaterra, que tem uma enorme percentagem de habitantes oriundos de outros países, o que depois tem um impacto muito grande na literatura, na música, no cinema. No caso de Angola, as questões identitárias são discutidas desde antes da Independência. Aliás, acredito que esse debate é mais forte e premente na Europa, incluindo Portugal, do que Angola, que tem esse assunto mais apaziguado.
E vê neste romance outras temáticas que rimam com a atualidade angolana?
Não foi isso que me moveu. O desejo maior foi contar um pouco da História de Angola afastando-me de Luanda, da capital. É um outro olhar, que também esteve presente na biografia que fiz de Abel Chivukuvuku. Na verdade, não falta matéria para muitos outros romances. Temos muito passado à nossa frente. E isso é muito apelativo para qualquer escritor. Nesse sentido, pode ser que regresse a outro tempo histórico. Tenho romances passados no século XVII, XIX e XX. Falta-me o século XVIII [risos].
Estamos a caminho dos 50 anos da Independência de Angola. Podemos dizer que nesse período a literatura desempenhou um papel fundamental na construção da identidade angolana?
Mais do que isso. É sempre bom lembrar que todo o movimento independentista moderno começou com a poesia, foi antecedido e preparado por um movimento literário. Primeiro surgiram os poetas que, em muitos casos, se tornaram políticos. E foi através da poesia que acordaram as pessoas. Não por acaso, os primeiros governos pós-Independência tinham uma grande percentagem de poetas. O que não significa que tenham sido bons governantes [risos]. Não basta ser poeta para ser um bom governante, talvez até não seja a principal condição. Pergunta-se muitas vezes para que serve a poesia. E eu respondo: para criar realidade.
Para além da sua vocação, sentiu ao longo do seu percurso literário um espírito de missão, uma “obrigação” de contribuir para essa construção nacional?
Na verdade, todos os meus livros foram escritos para me compreender a mim próprio dentro do país. Agora, acredito que quando o escritor é honesto consigo próprio, quando tem a coragem de ir buscar os seus medos e inquietações mais profundos, outras pessoas se vão identificar com essas preocupações. Porque somos todos pessoas, todos muitos parecidos. Espero, por isso, que os meus livros tenham contribuído para levantar alguns debates em Angola.
Em Portugal, as comemorações dos 50 anos da Revolução do 25 de Abril ficaram marcadas pela tema das reparações às ex-colónias. Como leu as palavras do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa?
Foi muito curioso assistir a esse debate. Porque normalmente quando se fala em reparações, em Portugal, as pessoas tendem a pensar imediatamente em dinheiro. Angola, por exemplo, tratou logo de dizer que não queria dinheiro. Mas há muitas formas de reparações. Uma delas, e bem importante, é escutar o Outro, ouvir a sua versão. Nesse sentido, a circulação dos escritores africanos em Portugal é importante e uma forma de reparação. A contribuição dos historiadores africanos para a construção dessa história comum também é importante para os dois lados. Ouvir a versão do Outro engrandece os dois lados. Também não percebo a polémica em relação ao pedir desculpa. Quando se faz uma coisa errada, pedir desculpa é um ato de nobreza, não empobrece em nada. Se houve erros e crimes no processo colonial – e ninguém duvida de que os houve, pois tudo parte de uma injustiça, alguém achar-se no direito de dominar o Outro –, é preciso reconhecê-los. E não estamos a condenar pessoas, mas o sistema. É por isso que acho que o professor Marcelo estava coberto de razão.
Como o debate sobre as estátuas no espaço público, não se trata de perceber quais temos de deitar abaixo, mas as que temos de construir ao lado para completar a história?
Nunca gostei de estátuas, sempre achei uma abordagem um pouco ridícula isto de se fazer bonecos. Se alguém quiser homenagear o Eça de Queirós, construa uma biblioteca com o seu nome. Mas, sim, concordo. O importante não é derrubar, mas contextualizar. E também temos esse problema em Angola. A estátua do Agostinho Neto também esteve envolvida em polémica. Não há dúvida de que Agostinho Neto foi uma pessoa fundamental no combate político ao poder colonial. Mas também esteve ligado aos massacres que se seguiram ao 27 de maio de 1977. Muitas das pessoas que perderam os pais nesse processo de repressão sentem-se insultados. É de tirar a estátua? Não. É preciso contextualizar, explicar naquele ou noutro espaço o percurso daquela pessoa. E isto vale para tudo. O importante é a informação
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Este é um caso que promete marcar para sempre a forma como dispositivos eletrónicos podem ser usados para um ataque violento de grande escala. Milhares de pagers – pequenos equipamentos de comunicação eletrónica –, que pertenciam a membros da organização militar libanesa Hezbollah, explodiram praticamente em simultâneo e em diferentes localizações.
Segundo a CNN, o ataque provocou nove mortos e feriu mais de 2800 pessoas. Segundo o relato de testemunhas do ataque, foi visto fumo a sair dos bolsos de muitas das vítimas antes de se ouvirem sons parecidos com tiros ou fogo de artifício. O ministro da Saúde do Líbano refere que 200 dos feridos estão em estado crítico e que muitos têm ferimentos no rosto, olhos, mãos e estômago.
Ainda segundo o canal norte-americano, neste momento a principal suspeita é que um carregamento de pagers destinados aos membros do Hezbollah tenha sido intercetado e os dispositivos foram armadilhados. Não foi ainda apurado, no entanto, como é que um número tão grande de equipamentos e em diferentes zonas do Líbano foram ativados em simultâneo.
O Hezbollah acusa Israel de ser responsável pelo ataque. O The New York Times refere que fontes de Israel não quiseram comentar o tema. No Líbano, muitas pessoas estão com receio do que possa acontecer aos seus aparelhos com bateria, mesmo com os telefones, e se podem ser utilizados em outros ataques semelhantes.
O Hezbollah teme há muito utilizar telemóveis junto às fronteiras com Israel devido às capacidades de geolocalização dos aparelhos e passaram a usar pagers para comunicar entre si. Um porta-voz do grupo paramilitar, Hassan Nasrallah, recomendou, em fevereiro, que todos os elementos destruíssem ou enterrassem os telemóveis, alertando que poderiam estar a ser usados para os espiar.