Visão
Kamala perderia as eleições se fossem hoje, apesar de estar algumas décimas à frente de Trump na votação nacional. Mas isso pouco importa para escolher um presidente. Atualmente, Trump teria 277 (só precisa de 270) grandes eleitores do Colégio Eleitoral que escolhe o presidente dos EUA, contra 261 para a vice-presidente.
É extraordinário como Kamala Harris parece estar a deixar escapar a Casa Branca para Trump, e, por arrasto, o Congresso. Sendo incumbente, ainda que vice, tem o cargo e a pompa a seu favor, reuniu mais fundos para a campanha eleitoral, e o resultado é fraco e talvez trágico: até estados tradicionalmente azuis estão a fugir-lhe das mãos. O que falhou? Credibilidade e discurso.
Na economia – o tema que verdadeiramente leva os americanos às urnas – Kamala não conseguiu apresentar um programa claro, com princípio, meio e fim, ou com coerência, ficando colada aos fracasso económicos de Biden. A isso somou-se a falta de energia e carisma para mobilizar e unir os vários eleitorados americanos.
Finalmente, Kamala cometeu um erro de principiantes: aceitou a polarização eleitoral, preocupando-se apenas com as «loucuras» discursivas do adversário. Tudo desacertado. Deveria ter deixado Trump a falar sozinho, como conseguiu nas primeiras semanas, mas quando virou o discurso, apenas insuflou o ego e a mitomania do potencial 47º presidente dos EUA, Donald J. Trump. Haverá surpresa, por estes dias?
Há cerca de 15 anos, Mariana Albuquerque Teixeira de Carvalho largou o Direito Internacional e passou a dedicar-se à arte contemporânea. Trabalhou em galerias internacionais, em São Paulo, em Nova Iorque e em Londres. Aos 46 anos, assume a presidência da Albuquerque Foundation, que vai acolher a coleção do seu avô, o engenheiro e empresário brasileiro Renato de Albuquerque, colecionador de porcelana chinesa de exportação, dinastias Ming e Quing, e porcelana imperial. A partir de fevereiro de 2025, em Sintra, tudo estará à disposição do público português (e não só).
O seu avô, que fará 97 anos no final do ano, mantém-se a par dos negócios e da coleção de cerâmica?
Sim, completamente, além de ser um exemplo de vida, é um exemplo de longevidade bastante inspirador.
Provavelmente, em grande medida, também é o trabalho que o mantém vivo.
Exatamente. A pandemia mexeu muito com ele, porque não podia sair de casa e todos tinham de estar muito resguardados. Agora, que tudo isso acabou, continua a ir diariamente ao escritório, no Brasil, onde passa a maior parte do tempo. Apesar de serem apenas sete minutos a partir de sua casa, acho que é uma loucura. E também acho que é uma irresponsabilidade da parte do técnico que lhe aprovou a renovação da carta de condução… [risos]. Mas, sim, o meu avô continua muito ativo, continua com projetos no Brasil e em Portugal, continua a adquirir novas peças para a coleção.
Também está por dentro do projeto Albuquerque Foundation, que vai abrir em Sintra, em fevereiro do próximo ano?
Embora não tenha sido uma ideia sua, o meu avô está completamente por dentro da fundação. No princípio, ele não queria envolver-se, dizia que não sabia como ia ser, se ia estar por aqui… Além disso, ele tem uma grande aversão a isto ser visto como um projeto de ego, como um legado. Fica incomodado com essa associação muito próxima, não sente necessidade de mostrar o que fez, de se afirmar em vida, muito menos em morte…
E a questão do ego é, justamente, um dos aspetos dos colecionadores.
Não sei, no mundo contemporâneo, sim, as pessoas querem ser reconhecidas por aquilo que têm e, de preferência, em vida. Com o meu avô, foram pequenas batalhas, até o próprio nome da fundação… Mas, pronto, agora está muito entusiasmado. E, na verdade, estava cheio de vontade de voltar a reencontrar-se com as peças em depósito. No princípio, também não queria envolver-se com a construção, mas depois acabou por participar, do princípio ao fim. Enfim, ele é um construtor, um engenheiro e, por isso, não dá muito para competir com um grande patriarca no seu próprio habitat [risos].
Como a coleção começou, há 60 anos?
Em certo sentido, a coleção é muito caseira. O meu avô não começou a colecionar com a ambição de criar uma grande coleção, a maior do mundo dentro desta especialidade ou qualquer coisa do género. A cerâmica sempre foi uma paixão que foi crescendo, e o que o orientou foi, sobretudo, o seu gosto pessoal. Foi-se especializando, estudando, melhorando a qualidade dos objetos que comprava… Coleciona desde os 30 e poucos anos. E é completamente self-made man, não tinha dinheiro de família, não tinha esse tipo de educação em casa, acabou por comprar à medida que foi progredindo na carreira, foi tendo cada vez mais tempo, foi conhecendo mais pessoas, visitando outras coleções, inspirando-se… Nem a família sabia quão relevante tudo isto era.
E, ao longo do tempo, foi estabelecendo uma rede de contactos?
Eu sou do contemporâneo [do meio da arte contemporânea] e [no meu mundo] é verdade que as pessoas gostam de fazer parte de uma comunidade, colecionadores, galeristas, mercado… No caso do meu avô, ele não participa em nada disso. Sempre lidou com dealers, com casas de leilões, mas nunca gostou muito do lado social, da ideia de “clube”. Quando vai a Maastricht, à TEFAF, uma feira de antiguidades de que ele sempre gostou muito, evita as inaugurações…
De certa maneira, é uma coleção que esteve escondida?
Escondida não digo, porque ele nunca teve intenção de a esconder, mas na verdade sempre foi uma coleção pouco dividida. Quando chegámos à conclusão de que se trata de uma coleção de extrema relevância, histórica, cultural e académica, verificámos que grande parte dessa relevância reside no facto de as peças estarem reunidas. Individualmente, são objetos incríveis, mas uma grande parte do valor da coleção está no conjunto. Por exemplo: existem milhares de histórias, pares de candelabros que estavam separados e que ele juntou, terrinas que todos achavam que tinham naufragado numa grande remessa e que, 150 anos depois, apareceram numa coleção que ninguém conhecia… A ideia do projeto é, justamente, disponibilizar uma riqueza que é privada. E fazê-lo da melhor forma possível. Antes de chegarmos aqui, vislumbrámos outras possibilidades, grandes instituições, mas depois chegámos à conclusão de que, por vários motivos, tínhamos de ser nós a fazer isso.
Tem dito que o projeto da Albuquerque Foundation não é apenas o de criar um museu. Quer explicar melhor do que se trata?
A ideia nunca foi criar um lugar de estagnação, um mausoléu, para a coleção, a ideia é bastante ambiciosa e passa por criar um espaço dinâmico. A coleção ancora o projeto, mas este também quer chegar, por exemplo, à cerâmica contemporânea. Vamos ter um programa paralelo de exposições temporárias, de artistas visuais ou ceramistas, mas também de artistas históricos, não vivos. Outro dos pilares do projeto tem que ver com o programa de residências, de residências artísticas, mas não só, também está direcionado para académicos, investigadores, estudantes de mestrado e de doutoramento.
Podemos dizer que, atualmente, existe uma revisitação da cerâmica?
Sim, e a ideia é criar um dinamismo que permita aproveitar esse momento em que a cerâmica está a ser revisitada, sobretudo na arte contemporânea. A cerâmica existe desde que nos conhecemos como espécie, atravessou várias fases, mas sempre foi muito mais utilitária para uso doméstico. Só depois começou a ser usada como arte, como design, como objeto decorativo. As grandes instituições que detêm coleções de cerâmica costumam colocar a cerâmica nas artes decorativas, europeias, orientais, asiáticas… Mas, hoje, há uma linha cinzenta entre artesanato e fine arts (que não quer dizer exatamente belas-artes), e a cerâmica está a ser considerada muito mais fine arts do que artesanato… Os produtores deixaram de ser artesãos e passaram a ser vistos, essencialmente, como artistas. Julgo que este momento é muito interessante e traz-nos inúmeras possibilidades (mais do que uma confusão, gosto de olhar para tudo isto como uma oportunidade, um redirecionamento).
Porque decidiram trazer a coleção para Portugal?
Por vários motivos, mas sobretudo por causa da relação que o meu avô tem com o País, desde os anos 80 que ele tem negócios em Portugal. No princípio dos anos 90, também adquirimos essa propriedade em Sintra: é uma quinta do século XVIII, mas que agora permanece e vai ser revitalizada. Tudo isto também corresponde a um projeto de família: começou numa geração e está a ser desenvolvido por outra, dentro da mesma família. Há ainda um conceito que permeia muita coisa deste projeto: a união entre o velho/o antigo e o novo. Precisamos de respeitar o que passou, de dar valor ao que já tem grande valor e, ao mesmo tempo, transmitir todas essas ideias ao público, que já não é o público daquela geração, mas que é também o público da minha geração e da geração seguinte.
Conhece a coleção do Museu do Oriente?
Falámos muito por alto, mas a ideia também é criar uma rede de troca. Com o Museu do Oriente e com a Fundação Calouste Gulbenkian, porque eles também têm uma coleção de cerâmica importante, de outra época, mas igualmente relevante.
Nunca se é dono da arte em si, somos apenas custodians, fiéis depositários. Os artistas são os grandes produtores, os idealizadores. Os colecionadores não passam de cuidadores dessa riqueza
Em Portugal, já existe um público para a cerâmica?
A nossa ideia é expandir esse interesse, porque, na verdade, acho que o público conhecedor, provavelmente, já sabe ou já ouviu falar da nossa coleção…
Mas nunca a viu, uma vez que ela foi muito pouco exibida.
Sim, é praticamente inédita. Houve duas exposições internacionais: uma no Metropolitan, em Nova Iorque, em 2016, e outra, no início de 2020, no princípio da pandemia, em Milão. A questão é que o público habitual da cerâmica, de certa forma, está ganho. O nosso desafio é criar um interesse do público que, em princípio, não se interessaria por uma coleção deste estilo. Então, quais são os artifícios que eu vou usar para que isto seja um êxito? Que elementos externos podemos usar para cativar esse tipo de público, para que a coleção possa ser vista por outros olhos, para que esse museu não seja óbvio, para que o nosso display não seja o esperado? Queremos fazer tudo com muito rigor, muita precisão, muita sofisticação, muito conhecimento por detrás, mas também queremos que a coleção seja esteticamente atraente.
Portugal atravessa um momento particular, em termos de turismo e de investimento estrangeiro. Isso também foi tido em conta na vossa opção pelo País?
Foi, tudo isso foi considerado e, nomeadamente, a ideia de que Portugal se está a tornar um país muito internacional, com muitos expatriados, muitos estrangeiros e uma comunidade artística de portugueses e de estrangeiros cada vez mais forte. Portugal passou a ser olhado de outra forma.
Não pensaram no Brasil?
Pensámos, sim, mas a relação da coleção com o Brasil é apenas o facto de a família ser brasileira. Faz muito mais sentido começar este projeto num lugar onde já exista algum interesse por parte do público. A nossa ideia também é a de ter sempre uma ponte com o Brasil.
De que maneira uma advogada especialista em Direito Internacional vai parar ao mundo da arte? A advocacia já ficou arrumada na sua vida?
Uma vez advogado, sempre advogado, não é?
Portanto, olha sempre para todos os contratos…
Leio todos. Sou uma cliente muito chata [risos]
Mas deixou de exercer?
Deixei. Mudei de carreira mais ou menos em 2009. Acho, aliás, que o grande responsável por isso foi o meu avô. Por causa dele, comecei a frequentar feiras de arte, a ir a Maastricht, foi aí que ele começou a pensar em catalogar a coleção… Acabou por ser uma transição muito orgânica, a partir de certa altura passei a interessar-me mais pela arte do que pelo trabalho que fazia durante o dia. Sempre tive um apreço muito grande por arte contemporânea, por artistas vivos, pela produção autoral, pela mensagem da arte contemporânea. São esses os artistas que me inspiram. Na verdade, eu também coleciono…
A arte aproxima as pessoas?
Sim, acho que sim. Não sei se todos pensam como eu, espero que sim… Mais do que interesse, julgo que temos a obrigação de fazer com que uma riqueza histórica deste porte não fique guardada a sete chaves, não fique trancada no quintal de uma casa… É uma riqueza para ser dividida, é uma obrigação que temos para com o público.
Tornar visível um património que é propriedade da família e, assim, partilhá-lo com os outros?
É, isso leva-nos àquela discussão que se tem sobre a arte… Nunca se é dono da arte em si, somos apenas custodians, fiéis depositários. Os artistas são os grandes produtores, os idealizadores. Os colecionadores não passam de cuidadores dessa riqueza.
Palavras-chave:
É madrugada na vila de Lukashivka, no Oblast de Chernihiv, no Centro da Ucrânia. De dentro das tendas, ouve-se o zumbido dos drones a voar lá fora. Estes “pássaros” (como são chamados pelas tropas russas) estão apenas de passagem. Na rede social Telegram, as tropas ucranianas relatam a sua trajetória ao minuto. A maioria acaba abatida, com explosões ruidosas que os locais já conseguem identificar. “Este é dos nossos”, garantem.
Neste acampamento da associação Repair Together, que se dedica à construção de casas para famílias a quem a guerra roubou o teto, os voluntários podem escolher entre dormir numa tenda ou num dos três quartos a servir de dormitório. Mas, apesar de as noites estarem cada vez mais frias, dormir dentro de portas não é necessariamente mais confortável.
A casa que dá abrigo ao grupo também foi vítima dos combates diários durante o período de ocupação russa, em março de 2022. Os buracos das balas ainda são visíveis nos portões e as condições são bastante precárias. As camas são improvisadas em placas de esferovite e a higiene é um dos grandes desafios. Mas já há água quente para os primeiros a chegar ao duche…

Na verdade, as condições do campo (ou a falta delas) parecem ser secundárias. Neste momento, vivem aqui 16 pessoas, na sua maioria jovens, oriundos de várias partes da Ucrânia e do mundo. Quase todos ficam “o máximo tempo possível,” dizem. Alguns vinham apenas duas semanas e, entretanto, passaram vários meses. Sacrificaram o conforto e o tempo em família, mas encontraram neste acampamento um sentido de propósito e de comunidade que não tinham em casa.
Anton tem 24 anos e é natural de Chernihiv. Apesar de não ter chegado a ser capturada, a sua cidade esteve cercada por tropas russas durante 20 dias, e as batalhas diárias deixaram um rasto de destruição. Foi isso que o levou a juntar-se à Repair Together, e que mudou drasticamente a sua vida. No início da guerra, queria juntar-se ao exército ucraniano. Passados dois anos, acredita que poderá ser mais útil nas cadeiras da universidade, e prepara-se para começar um mestrado em Políticas Públicas.
“Fiz uma licenciatura em Engenharia Informática, que não está relacionada, mas o trabalho na associação mostrou-me que temos falta de pessoas que implementem políticas públicas eficazes e organizadas. Apesar de me aproximar da idade de alistamento (na Ucrânia a idade mínima são os 25 anos), continuar a estudar é um direito que tenho. E alguém tem de se preparar para ajudar o país depois da vitória,” defende.
O irlandês Eoin carregou o jipe com todasas ferramentas que tinha e fez mais de três mil quilómetros para ir ajudar um país em guerra
Se esse dia chegar, talvez Vera regresse a Kiev para retomar a sua carreira de estilista. Por enquanto, celebra o seu aniversário de 30 anos no acampamento da associação e não faz planos para o futuro, que “já não é garantido”.
“Quando a guerra começou, senti que não fazia sentido perder tempo a desenhar roupa, que precisava de fazer algo mais útil. A primeira vez que vim para Lukashivka, para ajudar a Repair Together, vinha apenas quatro dias, mas no final desses quatro dias já não quis ir-me embora. Senti que era mesmo isto que queria fazer”, confessa.
Também Eoin, um irlandês proprietário de uma quinta de criação de perus, sentiu que era altura de mudar de vida quando viu as imagens de destruição que lhe chegavam pelas notícias. Deixou para trás a sua vida em Kells, carregou o jipe com todas as ferramentas que tinha e fez mais de três mil quilómetros para ir ajudar um país em guerra.
“Eu tinha alguma experiência de carpintaria, então decidi que poderia ser útil aqui. Enchi o meu jipe com ferramentas e vim para Kiev,” conta. Desde então, a sua vida é exclusivamente dedicada ao trabalho na associação, com exceção dos meses mais duros de inverno em que interrompem atividade.
“No ano passado, fechámos o campo no final de novembro porque as condições meteorológicas estavam a ficar demasiado duras para conseguirmos trabalhar. Ainda assim, foi um último mês muito difícil. Muito frio, dormíamos em tendas, trabalhávamos todo o dia à chuva e no dia seguinte vestíamos as mesmas roupas molhadas. Foi absolutamente horrível. Mas queríamos terminar o trabalho a tempo, para que a obra resistisse durante o inverno. Este ano, estamos a pensar fechar no final de outubro e voltamos ao trabalho assim que o tempo começar a melhorar”, garante.
Enquanto fala, e coordena os trabalhos que decorrem numa das casas, vê chegarem os proprietários desta moradia, que trazem consigo uma bebé. “É por ela que estamos aqui,” lembra Eoin à equipa. “Ela não vai lembrar-se de nós, talvez nem desta guerra. Mas vai ter uma casa para crescer, e por isso vale a pena continuar.”
Dizem que enquanto existirem crianças, existe também esperança. Aqui, numa aldeia fustigada por balas e traumas, são várias as histórias sobre os dias escondidos nas caves. Mas a preferida de todos é a de um nascimento, num abrigo subterrâneo, ao som de tiros e explosões, de uma bebé a quem chamaram Viktoriya.
Palavras-chave:
A diabetes mellitus (DM) é um grave problema de saúde pública, com um significativo impacto nos gastos em saúde e na qualidade de vida dos utentes, causando importante morbilidade e mortalidade prematura.
Apesar de existirem outras classificações, esta doença crónica é maioritariamente classificada como DM tipo 1 e tipo 2. Enquanto a DM tipo 1 resulta da destruição autoimune das células pancreáticas, com consequente défice absoluto de insulina, a DM tipo 2 deve-se à perda progressiva da secreção de insulina pelas células pancreáticas, habitualmente no contexto de insulinorresistência.
Por efeito, a hiperglicemia associada provoca, no decurso da doença, múltiplas lesões em vários órgãos. Deste modo, o objetivo final do tratamento desta patologia será prevenir e atrasar as complicações associadas à mesma, bem como otimizar a qualidade de vida dos utentes. Tal requer, em primeira instância, uma abordagem sistemática à mudança de comportamento do utente, incluindo o apoio e a educação na autogestão desta patologia.
Adicionalmente, o tratamento da DM pode incluir diversos fármacos, nomeadamente os antidiabéticos orais e os tratamentos injetáveis, como a insulinoterapia. A escolha terapêutica deve considerar, entre outros, o risco de hipoglicemia, sendo este um dos principais efeitos secundários da terapêutica com insulina.
Sabe-se que cerca de 90% das pessoas insulinotratadas já tiveram episódios de hipoglicemia e que, aproximadamente, 20% das pessoas com DM referem episódios de hipoglicemia ligeira a moderada, nos últimos três meses.
Por definição, a hipoglicemia é um episódio de glicemia anormalmente baixa, que predispõe o indivíduo a um dano potencial. Nos indivíduos diabéticos, define-se como glicemia inferior a 70 mg/dL e pode ser classificada em três níveis: o nível 1, quando a glicemia é inferior a 70 mg/dL e maior ou igual a 54 mg/dL; o nível 2, quando a glicemia é inferior a 54 mg/dL; e o nível 3, quando se trata de um episódio grave, caracterizado pela alteração do estado mental e/ou físico, que necessita da assistência de terceiros para o tratamento da hipoglicemia.
Os sinais e sintomas de um episódio de hipoglicemia podem incluir fome, palpitações, tremores, diaforese, palidez, parestesias, visão turva, alterações do comportamento, confusão, lentificação psicomotora, convulsões, perda de consciência, coma e morte. Ademais, a hipoglicemia também pode manifestar-se através de irritabilidade, tonturas, cefaleias, náuseas e ansiedade. As complicações deste evento incluem, nomeadamente, aumento da mortalidade, cardiopatia e arritmias.
O tratamento da hipoglicemia deve ser efetuado sempre que a glicemia capilar for menor ou igual a 70 mg/dL, na presença ou na ausência de sintomatologia.
Em indivíduos conscientes e com capacidade de deglutição, o tratamento da hipoglicemia nível 1 baseia-se no consumo de cerca de 15g a 20g de glicose. Face à sua indisponibilidade, pode ser igualmente utilizado qualquer hidrato de carbono contendo este nutriente, como, por exemplo, três pacotes de açúcar diluídos em água, 150 ml a 200 ml de bebida açucarada com 10g de hidratos de carbono por 100 ml (coca-cola, por exemplo) ou uma colher de sopa de mel (20g).
Quinze minutos após este tratamento, se o utente mantiver níveis de glicemia capilar compatíveis com hipoglicemia, o mesmo procedimento deverá ser repetido. Na ausência da normalização dos valores de glicemia, após três tratamentos, deve ser administrado 1 mg de glucagon intramuscular.
Assim que a glicemia for igual ou superior a 70 mg/dL, o indivíduo deverá fazer uma refeição ou lanche, nos próximos 30 minutos, para prevenir a recorrência da hipoglicemia.
O tratamento da hipoglicemia nível 2 segue as mesmas diretrizes de abordagem à hipoglicemia nível 1, com a particularidade de que devem ser ingeridos 20g de glicose.
No indivíduo não cooperante, sem capacidade de deglutição ou inconsciente, com hipoglicemia nível 3, a abordagem consiste na sua colocação em posição lateral de segurança, na manutenção da permeabilidade da via aérea e no contacto do 112. Em particular, todos os indivíduos com elevado risco de hipoglicemia (nível 2 ou 3) devem ter glucagon disponível, cujas indicações de administração e forma de aplicação devem ser igualmente ensinadas aos cuidadores e/ou conviventes.
Na realidade, são várias as repercussões que as hipoglicemias podem provocar na saúde do indivíduo, sendo que estas dependem da gravidade do episódio, da resposta e da duração da recuperação. Adicionalmente, sabe-se que as hipoglicemias graves se associam a um custo substancial para as pessoas com DM, para a sociedade e para o Serviço Nacional de Saúde.
Além disso, os episódios de hipoglicemia podem ser uma barreira na manutenção dos objetivos terapêuticos e na adesão ao tratamento pela adoção de comportamentos defensivos baseados no medo, na ansiedade, no absentismo laboral e na perceção de diminuição da qualidade de vida. Em concordância, os resultados do Estudo DAWN 2 (Diabetes Attitudes Wishes and Needs) realçaram os receios das pessoas com DM e familiares/cuidadores relativamente à ocorrência de hipoglicemias, em especial as hipoglicemias noturnas.
Portanto, e tendo em consideração a orientação clínica da American Diabetes Association, é fulcral a avaliação da ocorrência e do risco de hipoglicemia em todas as consultas, visando a identificação das causas deste episódio, bem como a educação para a prevenção e autogestão de episódios futuros.
*Em coautoria com Rafaela Costa e Raquel Brites, Médicas internas de Formação Específica em Medicina Geral e Familiar
(Artigo publicado originalmente na VISÃO Saúde nº 29 de abril/maio de 2023)
Duas denúncias ao Ministério Público (MP) apontam para irregularidades na atribuição de centenas de vistos gold a cidadãos turcos desde 2019. Em causa estão suspeitas da utilização de “documentos sem validade” e da “simulação de negócios” imobiliários que serviram para que “os processos fossem ao encontro do que estava previsto na lei”, aponta, à VISÃO, a advogada Isabel M. Alves, que tem vindo a chamar a atenção para este caso. A investigação corre no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa. As denúncias também deram entrada na Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), na altura ainda Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). “O meu interesse é denunciar uma situação que considero ilegal e que lesa os interesses de todos os portugueses. Apesar de identificado um conjunto de irregularidades, temos centenas de cidadãos turcos na posse de vistos gold, elegíveis para requisitarem passaporte português. A situação comprova as falhas que existem nos serviços do SEF/AIMA e a incapacidade que o próprio Estado português tem para corrigir ou resolver um problema que é muito sério”, acrescenta.
Do epicentro da polémica emerge o nome de Abdullah Çoruhlu, cônsul honorário da Turquia em Aveiro, a residir em Portugal há mais de três décadas. Isabel M. Alves acredita que este homem criou um esquema, com vista a “angariar clientes” no seu país natal que estariam interessados nos vistos gold: através da aquisição de imóveis a precisarem de ser reabilitados, condição que permitia baixar o preço exigido pelo Estado português – dos €500 mil para “apenas” €350 mil –, garantia aos requerentes a Autorização de Residência para Atividade de Investimento (ARI), dando-lhes a possibilidade de circular livremente no Espaço de Schengen.
Negócio da Turquia
“Percebi que algumas coisas não podiam estar certas”, diz Isabel M. Alves. A advogada fez duas denúncias ao MP e queixa à AIMA por alegadas irregularidades na obtenção de vistos gold por cidadãos turcos
Em 2016, a Turquia era um caldeirão de tensões políticas e sociais. A viver tranquilamente em Portugal, Abdullah Çoruhlu aproveitou a oportunidade para, através dos vistos gold – que começaram a ser emitidos em 2012, por decisão do governo de Pedro Passos Coelho –, fazer negócio, chegando a criar, em abril desse ano, uma página de Facebook intitulada Portugal Golden Visa, que rapidamente reuniu cerca de nove centenas de seguidores.
No espaço de dois anos, tornou-se representante legal e fiscal em Portugal “de, pelo menos, 60 turcos”, diz, à VISÃO, um antigo parceiro de negócio do cônsul. “[Abdullah Çoruhlu] chegou a ter mais de 200 números fiscais que tinham a sua residência como morada. Cheguei a alertá-lo para o facto de que ainda teria problemas com isso”, conta a mesma fonte. “Os interessados nos vistos [gold] eram cidadãos turcos de classe média-alta, formados, com um pé-de-meia razoável. Perante a situação que se vivia naquele país – em julho de 2016 chegou a haver uma tentativa falhada de golpe de Estado –, estas pessoas queriam assegurar um passaporte que lhes desse mais liberdade e segurança na Europa Ocidental, mais até a pensar no futuro dos filhos do que neles próprios”, explica.
A estratégia era simples: os cidadãos turcos passavam uma procuração a Abdullah Çoruhlu, com a qual este conduzia os processos para a obtenção da autorização de residência em Portugal, atribuída após o investimento na aquisição de imóveis a precisar de reabilitação, situados em Lisboa e no Algarve. De acordo com a lei, o investimento tinha de ser de, pelo menos, €350 mil. “Não houve nenhum ‘esquema’. As casas existiam, foram compradas, as obras foram realizadas, o dinheiro veio, de facto, das contas daqueles que, depois, requeriam os vistos gold. Obviamente, houve um aproveitamento da lei; mas tudo era aparentemente legal”, sublinha esta fonte, que pede anonimato.
Zangam-se as comadres
Durante dois anos, o negócio correu sem percalços. Segundo uma fonte próxima de Abdullah Çoruhlu, o turco lucrava perto de €2 mil por processo (informação que o próprio não confirma). Dezenas de turcos e respetivos familiares diretos terão obtido ARI através deste expediente; tudo parecia correr lindamente.
A coisa só azedou quando surgiram desentendimentos entre a sociedade controlada por este cônsul e uma outra empresa (representada por Isabel M. Alves), contratada pela primeira para reabilitar alguns dos imóveis comprados com dinheiro made in Turquia. O “braço-de-ferro” resultou em dois processos cíveis, que ainda correm nos tribunais e que acabaram por estar na origem das duas denúncias apresentadas ao MP e da queixa ao SEF/AIMA.
“Percebi, à medida que os processos cíveis foram avançado, que algumas coisas não estavam certas: as procurações davam poder a Abdullah Çoruhlu para comprar imóveis, mas não para assinar contratos para a reabilitação dos mesmos, o que, neste caso, era obrigatório; depois, há a questão dos prazos das procurações (que terminavam a 31 de dezembro de 2018), com vários vistos gold a serem pedidos apenas a partir de 2019 e 2020. Só posso supor que a documentação estava inválida. Pergunto: o SEF/AIMA não detetou estas falhas? Para mais, foi ainda identificado o que parece ser um negócio simulado, entre uma outra sociedade, detida por sócios também de nacionalidade turca, e dois cidadãos turcos, que assinaram a escritura de compra e venda dos imóveis (por €580 mil), mas não transferiram a verba do negócio até essa data. Podemos estar perante um acordo para que estas pessoas pudessem pedir um visto gold, sem entrada de capitais no território nacional, como previsto na lei”, enumera Isabel M. Alves. “Hoje, conhecemos estas situações. Passados cinco anos, os cidadãos turcos estão habilitados a pedir a nacionalidade portuguesa, e tudo graças a documentos que, logo à partida, tinham de ter sido considerados inválidos pelas entidades competentes”, lamenta a advogada.
Turcos tranquilos
Contactado pela VISÃO, Abdullah Çoruhlu manifestou surpresa em relação às denúncias apresentadas. “É a primeira vez que ouço isto”, garante. O cônsul honorário da Turquia em Aveiro admitiu que “foi o procurador de pessoas que conhecia” no âmbito de processos para a obtenção de ARI, mas realça que “tudo foi feito dentro da legalidade, sem quaisquer problemas”. Sobre a investigação que corre no DIAP e a queixa apresentada na AIMA, Abdullah Çoruhlu manifesta despreocupação. “É algo que não tem nada que ver comigo. Não posso comentar mais nada”, conclui.
Recorde-se que os vistos gold terminaram em Portugal em setembro de 2023, por decisão do governo de António Costa, como parte de medidas para solucionar a crise na habitação em Portugal (no âmbito do plano Mais Habitação).
Até àquela data, Portugal tinha atraído mais de 12 mil investidores de diversas nacionalidades, a maioria oriunda de países de fora da União Europeia. Os vistos gold emitidos para familiares superavam os 20 mil. O Estado português acredita que o programa tenha gerado €7,3 mil milhões em investimentos, embora grande parte se ficasse pelo setor do imobiliário, tendo permanecido “esquecida” a aposta na criação de emprego. No ranking das nacionalidades, a Turquia ocupa o quarto lugar, com mais de 600 vistos gold atribuídos, apenas atrás de China, Brasil e EUA. Abdullah Çoruhlu terá sido responsável por boa parte destes documentos.
CORREÇÃO: Ao contrário do que foi referido no artigo intitulado “Vistos gold: mancha turca”, assinado pelo jornalista João Amaral Santos, publicado na edição n.º 1651 da VISÃO, do dia 24 de outubro, a advogada Isabel M. Alves não terá afirmado, como consta no texto, que “foi ainda identificado o que parece ser um negócio simulado, entre a sociedade de Abdullah Çoruhlu e dois cidadãos turcos, que assinaram a escritura de compra e venda dos imóveis”. O que deveria estar referido é que o descrito como “negócio simulado – e que motivou uma denúncia no SEF/AIMA – terá sido realizado por “uma outra sociedade, detida por sócios também de nacionalidade turca”, mas à qual Abdullah Çoruhlu não tem ligações. Aos visados, apresentamos as nossas desculpas.