Até há poucos dias, lá fora, o restaurante ainda se fazia anunciar como um bistrot (assim mesmo, com tê). E até a primeira página da ementa não se esqueceu de que essa era a sua definição quando o Cícero abriu portas em 2022.

Há pouco mais de um ano, quando cá estivemos a jantar, podemos atestar que era de facto o melhor embrulho para aquilo que aqui se servia, um híbrido de comida brasileira com toques franceses, em ambiente descontraído de galeria.

Mas não era só isso que queria Paulo Macedo, um dos proprietários, e por essa altura já ele teria ido jantar ao Nosso, em Paris, só com a ideia de trazer Alessandra Montagne – a primeira mulher brasileira a abrir um restaurante em nome próprio, na capital francesa – para o seu projeto em Campo de Ourique.

O “negócio” demorou quase um ano a efetivar e só agora a ementa com a assinatura da conceituada chefe está disponível para ser apreciada por quem gosta de criar memórias inesquecíveis à mesa.

A abrir, dadinhos e tapioca e pão de queijo com caviar. Foto: Fábio Pelinson

Para se ficar com uma fotografia bem nítida do trabalho criativo de Alessandra, feito com base em produtos portugueses testados pelo Projeto Matéria, de João Rodrigues, mas com mão brasileira e técnica francesa, nada melhor do que nos atirarmos ao menu degustação (€95), que começa com um amuse-bouche bem carioca – dadinhos de tapioca, com maionese trufada e cogumelos Paris.

Desta miscelânea de influências resultam pratos difíceis de catalogar, pela sua originalidade. Se por um lado, temos duas pré-entradas que evidenciam ao que vem esta chefe – coxinha (era isso que começou por vender, no início da sua carreira), pão de queijo (com caviar) – a terceira, que chega à mesa num delicado pratinho de cerâmica, rasga com a evidência.

Delicadeza: a cenoura em todo o seu esplendor, a brilhar nesta entrada. Foto: Fábio Pelinson

O patel de nata parece ser apenas uma gralha, pois a sua aparência é em tudo igual ao doce típico nacional, e até lhe põem um pozinho castanho por cima, como se fosse canela. Na realidade, trata-se de um recheio de couve-flor, com pó de couve-flor desidratada. “Amo este legume”, há de confessar Alessandra Montagne. E nós assinamos por baixo, a ponto de exclamarmos que, em nossa opinião, esta versão salgada supera a que é uma das mais fortes imagens de marca portuguesa. A chefe também contará que acordou um dia a pensar nesta receita e que se apressou a ligar a Ana Carolina – a chefe executiva, que está todos os dias na cozinha – que lhe deu imediato aval.

Passemos então para as entradas, que são arriscadas, por se centrarem, cada uma delas, em um só produto. A primeira trata-se de um mix de texturas de cenoura com lascas de bottarga, uma especialidade italiana feita com ovas de vários peixes secos. A segunda eleva os cogumelos a outra dimensão, servindo uma espécie de uma sopa com trigo sarraceno. Este prato, guloso, faz-se acompanhar por um brioche sem manteiga confecionado na casa, que se deixa comer com muita prontidão. Antes, viera um pão de fermentação lenta para banhar em excelente azeite do Douro.

A diversidade de hidratos continua pelos pratos principais adentro. O carabineiro, por exemplo, traz consigo um cremoso risotto de cevada com abóbora e à barriga de porco, cozinhada durante 17 horas para ficar na textura certa e obter crocância, junta-se um puré de aipo fumado e pedacinhos de beterraba. “Este foi o primeiro prato que criei para o meu Tempero [o outro restaurante parisiense]”, conta-nos Alessandra, meia nostálgica.

Beleza: Carabineiro e sua bisque com risotto de cevada e abóbora. Foto: Fábio Pelinson

Pelo meio, a própria chefe sai de trás do balcão da cozinha que dá para sala em que estamos, de tabuleiro em riste onde estão uma série de shots de caldinho de feijão, um tira-gosto que nos faz viajar de um tirinho para o Brasil. A seguir, ainda provamos um bacalhau, pois está claro, com couve e arroz negro.

A equipa está de olhos postos na sala, para avaliar as nossas expressões de contentamento, que não há outras que possam surgir à medida que vamos avançando pelo menu. E quando espreitamos para dentro da cozinha, até custa a crer que deste micro espaço saiam criações tão bem empratadas e com uma delicadeza só permitida aos melhores.

Não será por acaso que Alessandra foi levada pelo decano Alain Ducasse para ser uma das chefes a abrir um restaurante no Museu do Louvre durante o próximo ano. Quem poderia imaginar que a brasileira que foi criada pela avó numa roça numa pequena aldeia de Minas Gerais, e que nunca sonhou em ser cozinheira, pudesse chegar, aos 47 anos, a um patamar tão elevado? O sorriso contagiante da brasileira revela como está realizada. “É um sacerdócio. Hoje, vivo, penso e faço cozinha.”

Arte: nesta sobremesa, a inspiração são as formas geométricas usadas por Cícero Dias. Foto: Fábio Pelinson

Em Paris, a chefe esteve um ano a estudar pastelaria e quase seguiu a via doce da culinária. Isso nota-se nas duas sobremesas com que remata este menu. Inspirada num dos quadros do pintor Cícero que está nas paredes deste restaurante com alma de galeria, serve-nos um prato em que o figo é rei, seguido de outro chamado de Variações de Limão com formas geométricas Cícero Dias, o artista que dá nome a este projeto arrojado.

No final da refeição, com regada com vinhos do Douro e Alentejo, quase achamos que nos perdemos e, por engano, entrámos noutro restaurante. Até o número de lugar diminuiu para metade e as loiças são atualmente de uma beleza única – ficámos a saber que foi Alessandra quem as trouxe de Paris, apenas porque desconhece aquilo que também se faz por cá nessa matéria. De bistrot não resta mais nada, podemos atestar. Aqui faz-se agora fine dinning à séria, quem sabe se até a piscar o olho a uma Estrela Michelin?

Ambiente: o restaurante perdeu metade dos lugares e ganhou em elegância, que se nota também na loiça trazida de França. Foto: Fábio Pelinson

Cícero > R. Saraiva de Carvalho, 171 > T. 96 691 3699 > dom-ter 19h-22h, qua-qui 19h-22h30, sex-sáb 19h-23h30 (almoços sob reserva)

1. Pão do ló, por Marlene Vieira

Receita do livro Cozinha de Chef 2, editado pela Casa das Letras, que reúne as receitas do programa com o mesmo nome no canal Casa e Cozinha.

Ingredientes 

8 ovos

6 gemas 

350 g de açúcar 

350 g de farinha 

Groselhas  

Preparação

O primeiro passo é bater os ovos e as gemas com o açúcar durante algum tempo e este é o segredo de um bom pão de ló, por isso, devemos bater durante pelo menos 12 minutos.  

Depois, envolvemos lentamente a farinha. Nesta fase podemos também incluir as groselhas ou outro ingrediente à sua escolha. 

Caso prefira, pode manter simplesmente a massa. Humedecemos a forma e forramos com papel vegetal. 

Vertemos o preparado na forma e levamos ao forno a 220 ºC entre 20 e 30 minutos.

O nosso pão de ló está pronto a servir.  

2. Aletria de coco e pistácio, por Vasco Coelho Santos  

Receita do chefe de cozinha dos restaurantes Euskalduna Studio (uma Estrela Michelin) e Semea, no Porto

Foto: Lucília Monteiro

Ingredientes

1l de leite meio gordo

15 g amido de milho

6 gemas de ovo

400 g leite de coco (1 lata)

180 g de aletria

250 g de açúcar

2 cascas de limão

Pistácio picado

Preparação

Numa taça, misturar 150 g de leite, o amido de milho e as gemas. Envolver bem.

Num tacho, colocar 850 g de leite, o leite de coco e as cascas de limão. Levar a lume médio até começar a borbulhar.

Adicionar a aletria e cozinhar por cerca de cinco minutos a lume baixo.

Adicionar o açúcar e envolver. A fio, colocar a mistura de leite, amido de milho e gemas.

Sirva frio ou quente, em taças, polvilhado com pistácio picado.

3. Peras bêbedas no Natal, por Filipa Gomes

Receita da apresentadora do programa Os Cadernos da Filipa, no canal 24Kitchen.

Foto: DR

Ingredientes

6 / 8 peras-rocha médias

1 garrafa de vinho tinto

2cm gengibre

200ml vinho do Porto

1 chávena de açúcar mascavado húmido

1 pau de canela

Casca de 1 laranja

2 cabeças de cravinho

2 estrelas de anis

200ml natas

6 bolachas de gengibre

6 alperces secos

12 arandos desidratados

1 limão

2 colheres de açúcar branco

Confeção

Cortar a base às peras e descascar, inteiras, deixando o pé.

Colocar o vinho e os restantes ingredientes numa panela e mexer. (Usar uma panela nem muito pequena onde as peras tenham de ficar sobrepostas, nem muito grande onde o vinho só consiga cobrir a base).

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Juntar as peras, colocando-as em pé.

Cortar um circulo de papel vegetal com a medida da panela, molhar, machucar, e colocar sobre as peras. Ligar o lume e deixar que coza por 35-45 minutos.

Retirar as peras, deixar arrefecer um pouco e reservar no frio.

Com uma escumadeira retirar todos os extras que colocámos a dar sabor e devolver a calda ao lume, deixando ferver mais uns 10 minutos para reduzir e levar de seguida ao frio.

Cortar os alperces e os arandos e esmagar as bolachas.

Para servir, colocar uma colherada da calda na base, espalhando em circulo sobre o prato. Por cima uma colherada do chantilly.

Polvilhar com a bolacha.

Cortar a pêra em fatias, deixando agarrada pela base e colocar sobre o chantilly. Juntar o alperce e os arandos.

Ele há coisas que, no meio de todas as tragédias humanas existentes no mundo, nos fazem acreditar, senão na justiça divina, pelo menos numa certa ideia filosófica de que o bem se há de sobrepor ao mal – e de que não são assim tão poucos aqueles que agem pensando em si, mas também nos outros. Eu sei, caro leitor, cara leitora, estamos à beira do Natal, os atos e os pensamentos altruístas vão bem com a quadra.

Podia ser, mas não é do Natal que falo: falo da felicidade com que vejo inúmeras pessoas a olhar para Gisèle Pelicot – a mulher que durante dez anos foi drogada e violada pelo marido, que recrutou na internet dezenas de outros homens para a violarem também – e a reclamar que ela devia ser considerada a mulher do ano. Escrevi-o numa outra VISÃO do dia, a 13 de setembro, tinha o julgamento dos crimes de Mazan começado há duas semanas, em Avignon, no Sul de França: “Deveria ser uma evidência: ela não tem que se esconder, a vergonha não é sua, mas de quem cometeu os crimes de a drogar e de a violar. Aliás, pelo testemunho, pela coragem, Gisèle Pelicot, que em dezembro completará 72 anos, deveria ser eleita a mulher do ano.” 

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A Índia continua a ser o país que mais filmes produz no mundo, com uma média anual de mais de 1400, grande parte graças aos sucessos de Bollywood. Ao mesmo tempo, cresce um cinema indiano independente, na descendência de Satyajit Ray, que não nos deixa indiferentes. É nesse contexto que surge esta pérola, chamada Tudo o que Imaginamos como Luz, a segunda longa-metragem da jovem realizadora Payal Kapadia, um dos melhores filmes indianos que a Europa viu na última década.

Tudo o que Imaginamos como Luz é, em primeiro lugar, a sinfonia de uma cidade. É Bombaim que se celebra, nas suas cores e movimentos, observada em travellings, na leitura musical de Topshe: a banda sonora é um dos pontos altos de um filme que não tem pontos baixos. Uma cidade que nos impele, por onde somos levados através das cores, da energia, do seu devir. A cidade de todas as ilusões, como alguém a descreve.

Definida a cidade, entramos então nas personagens. Duas mulheres, ambas trabalham num hospital e partilham casa. A mais velha vive longe do marido que emigrou para a Alemanha e enfrenta com preceito a sua solidão. A mais nova vive um amor difícil, se não impossível, com um rapaz de outra religião.

Ambas se encontram numa luta subtil pelo direito a amar. Em entrevista, a realizadora explica que na Índia não há o costume de se dizer “eu amo-te”, por isso foi possível criar a sua linguagem própria de amor. Essa linguagem é feita de gestos, de momentos que por vezes são monumentos, tal a delicadeza na forma como são desenhados.

O filme é altamente poético. Mas também concreto. Tal como acontece com O Meu Bolo Favorito, o filme iraniano sobre o qual falámos na semana passada, aqui conta-se uma história de amor com obstáculos do tamanho de um país inteiro (ou de uma cidade). O peso social de uma Índia conservadora é brutal e devorador, mesmo numa cidade tão moderna e festiva quanto Bombaim.

Tudo o que Imaginamos como Luz é uma obra maior também pela forma como está filmado. A realizadora consegue tirar todas as emoções com os seus movimentos de câmara, que tanto focam um movimento de mãos como nos ampara num rosto terno. Sem dúvida um filme marcante de uma realizadora que queremos seguir até ao fim do mundo.

O filme da jovem realizadora Payal Kapadia recebeu o Grande Prémio do Júri em Cannes, e tem acumulado distinções por todo o mundo, além de figurar nas principais listas dos melhores filmes de 2024.

Tudo o que Imaginamos como Luz > De Payal Kapadia, com Kani Kusruti, Divya Prabha, Chhaya Kadam, Hridhu Haroon > 118 min

Grandes romances, reedições históricas, universos fantásticos aos quadradinhos e biografias, poesia e gastronomia. Selecionámos alguns dos melhores livros editados em Portugal este ano, incluindo novidades acabadas de chegar às livrarias, e chegámos a 101 sugestões que bem merecem ganhar um laçarote junto à árvore de Natal.

Livros do ano 2024: O melhor da ficção em português

Livros do ano 2024: O melhor da não ficção

Livros do ano 2024: Vozes da ficção estrangeira

Livros do ano 2024: Seis biografias

Livros do ano 2024: O melhor da poesia

Livros do ano 2024: O melhor da banda desenhada

Livros do ano 2024: O melhor nos infantojuvenis

Livros do ano 2024: Gastronomia, da mão para a boca

Palavras-chave:

1. A Minha Vida – Memórias
Golda Meir

Nasceu em Kiev, em 1898, e morreu em Jerusalém aos 80 anos. Originalmente publicadas em 1975, estas memórias, daquela que foi a única mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra israelita (entre 1969 e 1974), voltam agora às livrarias em português, num momento histórico em que Israel e o sionismo provocam muitas questões. Comprometida com o socialismo e o partido trabalhista, Meir surge-nos aqui entre o pragmatismo e a utopia, evocando uma certa inocência perdida do país que ajudou a fundar. Presença, 448 págs., €26,90

2. Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
Isabel Rio Novo

Camões foi uma das figuras de 2024, cinco séculos depois do seu nascimento. Esta exaustiva biografia de Isabel Rio Novo trouxe-nos o homem por detrás do mito. “Não conhecia a exata dimensão desse Camões tão humano, diferente do retrato oficial”, disse a autora em entrevista à VISÃO, falando de um “quotidiano marcado por escândalos e desacatos, pelo convívio com meretrizes, pelos problemas com a autoridade”, que, na época do poeta, “era menos estigmatizado do que podemos hoje supor.” Contraponto, 728 págs.€24,90

3. A Desobediente
Patrícia Reis

Foram três anos de pesquisas e dezenas de entrevistas de Patrícia Reis com Maria Teresa Horta, familiares e amigos. Resultaram numa biografia que se lê como um romance, retrato de uma mulher desassombrada, nascida em 1937, e que desde 1960 publicou mais de 30 livros, incluindo o histórico marco do feminismo português Novas Cartas Portuguesas, com outras duas Marias (Velho da Costa e Isabel Barreno). Contraponto, 424 págs., €20,90

4. Lou, o Rei de Nova Iorque
Will Hermes

O jornalista e crítico musical Will Hermes nasceu em Nova Iorque em 1960, 18 anos depois do nascimento, na mesma cidade, de Lewis Allen Reed – para sempre conhecido como Lou Reed. Nesta completa biografia que fez do fundador dos Velvet Underground, a cidade que nunca dorme é, também, protagonista. Até porque o autor de Dirty Boulevard (do álbum New York, de 1989) foi um dos artistas que mais contribuiu para a sua mitologia no século XX, em nome do rock e da rebeldia, mas também de um lirismo e romantismo muito seus. Casa das Letras, 656 págs., €33,90

5. O Ouvidor do Brasil, 99 vezes Tom Jobim
Ruy Castro

Não tem a estrutura de uma biografia clássica, mas chegando ao fim da leitura destas crónicas, escritas ao longo dos anos, com a saborosa prosa de Ruy Castro, é certo que ficamos a conhecer melhor Tom Jobim, o homem e o mito. “Escrevi certa vez que, sempre que Tom Jobim abria o piano, o mundo melhorava”, lê-se a páginas tantas. Tinta-da-china, 232 págs., €19,90

6. Sacadura Cabral, O Aviador na Marinha (1881-1915)
Luísa Costa Gomes

“Não será a almejada biografia completa, mas é um contributo que traz elementos inéditos”, diz a autora deste volume, a escritora Luísa Costa Gomes. Destacam-se, aqui, os primeiros anos de vida, em Celorico da Beira e na Guarda, deste aventureiro que se tornaria célebre, em 1922, por ao lado de Gago Coutinho ter concluído a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, entre Lisboa e o Rio de Janeiro. Dom Quixote, 240 págs., €19,90

1. Os Lusíadas
Luís de Camões

2024 foi ano fértil em edições comemorativas dedicadas aos 500 anos do nascimento de Camões, como esta, com fixação de texto e notas de Emanuel Paulo Ramos, e dez desenhos de figuras gráceis e reminiscências botânicas, a preto-e-branco, criadas por Valter Hugo Mãe. O poeta-desenhador sublinha uma leitura contemporânea desta “maravilha inesgotável”: “É preciso amar Camões como um diamante que nasce a partir das carnes vivas e mortas, do que floriu e do que se viu deitado a escombros.” Porto Editora, 304 págs., €34,99

2. O Inquieto Verbo do Mar
Sebastião da Gama

Volume impressionante que sobrecarregará qualquer meia de Natal guarda a poesia reunida de Sebastião da Gama (1924-1952), incluindo um conjunto de poemas inéditos. Com edição cuidada de João Reis Ribeiro, o livro ressuscita um autor de vida curtíssima e escrita dedicada às paisagens da Arrábida, dotado de um “gosto às alegrias” e de uma consciência protetora em torno do mar, urzes, flores, amieiros, Natureza…  Assírio & Alvim, 1200 págs., €44

3. Poesia Quase Toda
Zbigniew Herbert

Fiel à ideia do homem pequeno, cheio de falhas, dotado de ironia – “a arma dos impotentes” –, que ele sublimaria nos poemas de uma “persona autodepreciativa”, Senhor Cogito, Zbigniew Herbert (1924-1998) permanece demasiado esquecido. Uma falha agora colmatada. Nesta antologia com seleção de J.M. Coetzee, em que este defende que “a integridade teimosa e sem heroísmos que caracterizou a vida de Herbert durante o comunismo também fixou raízes na sua poesia”, está reunida parte significativa dos nove livros publicados em vida pelo autor polaco da linguagem transparente, musical e humanista. Cavalo de Ferro, 344 págs., €20,45

4. Mais uma Desilusão
Valério Romão

Primeiro livro de poesia de um escritor que descompassou a cena nacional com livros com escalpelo narrativo afiado, Mais uma Desilusão não é formalmente convencional. Haverá quem o rotule como prosa poética, e haverá quem siga o ritmo cardíaco das frases espaçadas na página deste longo poema único. Mas o que importa dizer é que é uma enxurrada poética, que traz memórias, revoltas, mordacidades sobre um Portugal de pequeninos nos cafés de bairro e nas assembleias nacionais, crises de meia-idade, (pre)conceitos, ridicularias. Valério Romão não poupa nada nem ninguém, nem a si próprio. Abysmo, 64 págs., €13

5. Tisanas
Ana Hatherly

São 463 “tisanas”, objetos poéticos assim intitulados porque Ana Hatherly (1929-2015) os considerava “infusões e não efusões.” Reclamando influências das vanguardas do século XX e do budismo zen, e a “pesquisa das estruturas da narrativa”, estes breves poemas em prosa refletem arte, memória, quotidiano. Leia-se, em Tisana 452: “O verdadeiro sábio escreve incessante o livro do não-saber, o livro do desassossego.” Assírio & Alvim, 224 págs., €22,20

6. O Centro da Terra
José Tolentino Mendonça

A elegia é um porto com muitos barcos. Em 25 poemas divididos em três “sequências”, o poeta, cardeal do Vaticano e Prémio Pessoa 2023 faz o seu luto literário pela perda da mãe. As begónias maternas, o barro da criação, a dor fantasma, a compaixão, tudo ilumina essa orfandade que “corta o fio que nos ligava às constelações”: “Toda a mãe é uma expedição/ enviada às origens/ uma sonda capaz de recolher o soterrado/ no seu incandescente sedimento/ na sua remanência/ porque somos seres que nunca se soltam bem/ seres nunca completamente nascidos”. Assírio & Alvim, 64 págs., €14,40

7. Claridade
João Luís Barreto Guimarães

Poeta atentíssimo, Barreto Guimarães regressa com 39 poemas escritos, entre 2022 e 2024, no Porto, Venade e “algumas cidades estrangeiras”. Do Mediterrâneo à Europa, por onde anda a “bomba obediente”, o poeta alça-se a observatório da “vida autêntica”. “Não percas tempo/ com poesia”, lança, irónico. Por tentadores que sejam o lírico mar e as estevas, ele exercita também o verso sobre a gaveta dos talheres (metáfora para a política de dois Estados na Terra Santa); o limpa-para-brisas que “só se ergue para discordar”; o espelho quebrado: “Que ocasião perdida! Isso/ da democracia: parecia uma ideia/ tão boa.” Quetzal, 64 págs., €12,20

1. Aqui
Richard McGuire

É um dos filmes mais esperados do ano, realizado por Robert Zemeckis e protagonizado por Tom Hanks e Robin Wright, mas antes disso foi uma banda desenhada publicada em 2014 e consagrada como uma das grandes obras do século XXI. Aqui, de Richard McGuire, é um trabalho sem igual, prova das imensas potencialidades da BD. Com uma fórmula engenhosa e original, o artista e designer norte-americano expande as possibilidades de cada prancha. Como o título indica, tudo se passa “aqui”, isto é, num mesmo lugar, na sala de uma casa, que antes foi um descampado habitado por dinossauros e que no futuro terá muitas variações, móveis, habitantes. E tudo se abre com caixas com data própria, em narrativas paralelas e em vidas que se multiplicam. Uma obra-prima. Cavalo de Ferro, 304 págs., €35,45

2. O Infinito num Junco
Irene Vallejo e Tyto Alba

Adaptação da obra de Irene Vallejo, O Infinito num Junco, que revela a construção da nossa relação com os livros a partir da antiguidade clássica. É a mesma narrativa, com os mesmos episódios e protagonistas fascinantes, mas contada de outra maneira. Um outro olhar para papiros e para códices, para poemas épicos e para sátiras, na definição de uma tradição cultural que ainda hoje perdura. Em destaque, também, o sonho e a utopia de muitos: as bibliotecas. Bertrand, 208 pags, €24,90

3. A Educação Física
Joana Mosi

Com uma obra publicada em Portugal e no estrangeiro com registos muitos diferentes, Joana Mosi oferece-nos agora uma aula de Educação Física, não no sentido desportivo, mas na pesquisa das hipóteses que um relato pode conter. “Um livro precisa de ter uma história?” é uma das muitas perguntas que ecoam nesta narrativa visual, centrada em Laura e nas suas circunstâncias – a família, os amigos, os sonhos. Uma inquietação dada com a expressividade do uso da cor e de vários registos gráficos. Iguana, 176 págs., €19,45

4. O Deus das Moscas
William Golding e Aimée de Jongh

É uma das grandes tendências dos últimos anos, com tradição maior em outros contextos editoriais: adaptações para BD/novelas gráficas de grandes obras da literatura universal. Esta traz-nos a ferocidade e os embates de O Deus das Moscas, obra que celebrizou William Golding. O seu primeiro romance, lançado em 1954, é uma cartografia do mal e uma refutação da bondade humana, tão propagada, na altura, na literatura juvenil. Aimée de Jongh faz jus à mistura de inocência e agressividade, paraíso e terror, que um conjunto de jovens vive numa ilha. ASA, 352 págs., €33,90

5. Lepanto
Jean-Yves Delitte e Federico Nardo

A BD ao serviço da divulgação histórica: mais um volume da coleção da Gradiva, que tem revelado grandes protagonistas do passado, os principais mitos da antiguidade clássica e, neste caso, as grandes batalhas navais. Depois de Jutlândia, na I Guerra Mundial, sai agora Lepanto, que opôs uma liga de países católicos ao Império Otomano, em 1571. A batalha é descrita e reinterpretada com a minúcia possível, sem esquecer os muitos quadros que então se pintaram, e o episódio é contextualizado num ensaio final. Gradiva, 64 págs., €20,99

6. Dragon Ball
​Akira Toriyama

Dragon Ball é um dos muitos exemplos da vasta e crescente oferta de manga nas livrarias portuguesas. O grande clássico, adaptado a série de animação, está de novo disponível, agora em volumes triplos, para acompanhar a demanda de Son Goku e Bulma. Os dois procuram as sete Bolas de Dragão e, pelo caminho, vivem aventuras extraordinárias. Na mesma editora, ou em chancelas mais recentes, é possível conhecer os grandes nomes do género e as mais recentes propostas, incluindo as vindas da Coreia do Sul e até da Europa. Devir, 580 págs., €23

1. As Peças Mais Pequenas
Miriam Alves e Yara Kono

Porque voam as aves? Porque é que algumas maçãs são vermelhas e outras verdes? Porque não caem os planetas do espaço? E de que são feitas as estrelas? Há tanta coisa que sabemos e tanta coisa que ainda nos falta descobrir… Neste livro, Miriam Alves, jornalista de ciência, conta como temos vindo a descobrir as mais pequenas peças de que são feitas todas as coisas. “Um tijolo é um bocadinho de conhecimento novo”, compara, “e cada tijolo gera sempre novos tijolos porque a resposta a uma pergunta faz nascer novas perguntas”. Sim, a ciência é um trabalho infinito e os desenhos de Yara Kono ajudam-nos neste mergulho até ao átomo e à microbiota. Planeta Tangerina, 80 págs., €19,80

2. Pequeno Urso Gosto de Ti
Benjamin Chaud

Farto de ouvir os roncos do Papá Urso, o Pequeno Urso decide construir uma cabana na floresta. Precisa de madeira, mantas, algumas ferramentas, tachos para cozinhar… e a empreitada está feita. Mas eis que uma guaxinim marota decide roubar-lhe o telhado, iniciando-se uma perseguição num labirinto de tocas subterrâneas, troncos ocos e ramos que quase tocam o céu. E é uma delícia tentar encontrar os protagonistas nestes desenhos do francês Benjamin Chaud, conhecido pelo seu sentido de humor e pelo detalhe das suas ilustrações. Orfeu Negro, 38 págs., €21

3. Um Gato é Um Gato
Amélia Muge

Um livro-disco com 31 poemas, 16 canções e muitas ilustrações de inspiração felina. O ponto de partida são os gatos e o que eles representam nas nossas vidas, e para isso Amélia Muge selecionou poemas de muitos poetas que falaram e falam da sua relação com estes animais. As canções (a que é possível aceder através de um código QR inserido no livro) têm letra e música da cantora e compositora, assim como composições suas para palavras de Fernando Pessoa, Manuel António Pina, Eugénio Lisboa ou W.B. Yeats. Ary dos Santos foi musicado por António José Martins, Baudelaire por Michales Loukovikas e Hélia Correia fez uma composição original também musicada por Amélia Muge. Miau! Edições Caixa Alta, 108 págs., €16

4. O Grufalão
Julia Donaldson e Axel Scheffler

Julia Donaldson, nas palavras, e Axel Scheffler, nos desenhos, são uma das mais conhecidas duplas internacionais de livros infantis. Conheceram-se através da editora britânica Macmillan, quando foi necessário ilustrar um livro de Julia, e não mais pararam de criar em conjunto. Com tanto sucesso que algumas das suas personagens foram adaptadas pelos próprios a teatros infantis. O Grufalão é um ser de “presas medonhas”, “unhas reviradas” e um “espigão no focinho para dar ferroadas”, inventado por um rato espertalhão para dissuadir os predadores, mas que acabou por ganhar vida e assustar todos os animais da floresta. Esta edição especial comemora os 25 anos da personagem e traz no final umas páginas dedicadas à vida dos autores, e até uma canção em rima (tal como toda a história). M.C.B. Jacarandá, 32 págs., €13,90

5. Criaturas Impossíveis
Katherine Rundell

Os jovens leitores que gostam do género fantasia têm aqui com que se entreter. As criaturas impossíveis que dão título ao livro vivem no Arquipélago, um conjunto de ilhas secretas e não cartografadas, de forma a mantê-lo a salvo dos seres humanos. A história começa com Christopher, que é mandado para casa do seu avô no sopé de uma colina íngreme na Escócia, onde existe um portal para esse mundo mágico. Este é o sexto romance de Katherine Rundell para jovens e alcançou rapidamente o estatuto de best-seller em Inglaterra, onde a autora nasceu. Há até quem já a compare a Tolkien, C.S. Lewis e Philip Pullman. Porto Editora, 368 págs., €18,85

Palavras-chave:

1. Eu Canto e a Montanha Dança
Irene Solà

Uma das boas novidades vinda de Espanha este ano, o segundo romance de Irene Solà, distinguido com o Prémio da União Europeia para a Literatura. Eu Canto e a Montanha Dança é uma obra singular, não só na forma, que integra vários registos, incluindo o desenho, como no conteúdo, no qual o elemento humano e o natural estão equiparados. Todos têm voz neste romance polifónico e todos revelam a sua sabedoria – os fantasmas e as bruxas, os animais e os fungos, as nuvens e as montanhas. No centro da narrativa estão Domènec e a sua mulher, Sió. Ele é um camponês que faz poesia só no falar. Ela fica viúva e tem pela frente a luta dos que ficam. Cavalo de Ferro, 192 págs., €16,45

2. A Idade Frágil
Donatella di Pietrantonio

Donatella di Pietrantonio nasceu em 1962, formou-se em medicina dentária e exerceu essa profissão durante anos. Mas, em 2011, surgiu na cena literária italiana com enorme êxito (de crítica e de leitores), tendo conquistado os principais galardões do país. O último foi o Prémio Strega, o mais importante da língua italiana, com o romance A Idade Frágil. Como A Filha Devolvida (2019), também é uma história familiar, entre mãe e filha. Passados muitos anos, Amanda regressa à casa materna na aldeia que sempre desvalorizou. E a mãe, com o seu instinto, rapidamente percebe que ocorreu uma pequena tragédia, tão diferente e semelhante à que a própria viveu na sua juventude. ASA, 240 págs., €18,60

3. A Pequena Comunista que Nunca Sorria
Lola Lafon

Os Jogos Olímpicos de Montreal, em 1976, foram inesquecíveis, devido às piruetas infalíveis, braços em cruz e “pontapé na Lua” da romena Nadia Comaneci, com 14 anos apenas. “A rapariga não esculpe o espaço, é o espaço, não transmite a emoção, é a emoção”, escreve a francesa Lola Lafon, que faz uma reconstituição – e um acerto de contas feminista e arrebatador – da vida da atleta que, ao crescer, perdeu a sua aura. Antígona, 272 págs., €17,50

4. A Parede
Marlen Haushofer

Apresentado como um “clássico ecofeminista”, poderia dizer-se deste romance que é um negativo de Walden ou a Vida nos Bosques (de Thoreau), uma versão de Robinson Crusoé e uma metáfora do temor existencial inspirada pela Guerra Fria à época da escrita. Mas é também um estudo minucioso sobre a finíssima linha que separa o animal social dos instintos. Uma mulher vai de férias para uma casa de campo isolada nos Alpes austríacos, descobrindo-se impedida de sair por uma barreira invisível. Confinada, descobre-se na Natureza. Imperdível. Antígona, 296 págs., €17,50

5. Vemo-nos em Agosto
Gabriel García Márquez

A publicação póstuma de obras inacabadas de grandes romancistas gera sempre muita polémica, e o derradeiro romance de Gabriel García Márquez não fugiu à regra. É certo que alguns dos capítulos já tinham sido publicados isoladamente em revistas e o conjunto chegou a ter a aprovação do escritor colombiano, Nobel da Literatura em 1982, mas Vemo-nos em Agosto não tem o fôlego de outras obras suas. Ainda assim, é o reencontro com a prosa inconfundível de um criador de personagens e enredos extraordinários, neste caso em torno de uma mulher que todos os anos regressa à mesma ilha. D. Quixote, 120 págs., €14,40

6. Dedico-lhe o Meu Silêncio
Mario Vargas Llosa 

Para um leitor, não há melhor forma de encarar o fim de um percurso literário do que ler uma nova obra. E é isso que Mario Vargas Llosa proporciona a todos os que, durante décadas, acompanharam as suas narrativas, crónicas e intervenções públicas. Dedico-lhe o Meu Silêncio será o seu último romance e nele encontramos algumas das linhas de força que fizeram a fortuna do escritor peruano, Nobel da Literatura em 2010, uma voz sempre ousada e controversa, independente e livre. Dedico-lhe o Meu Silêncio é um ensaio sobre a música crioula e uma investigação sobre um músico, da mesma forma que também é um livro sobre um livro que se quer escrever, uma reflexão sobre o ato criativo. Quetzal, 256 págs., €18,80

7. A Fraude
Zadie Smith

Baseado em acontecimentos reais, este livro apresenta-se como romance histórico para melhor espanejar os velhos bustos e as sombras do passado colonial. Em 1873, um criminoso australiano exigiu ser reconhecido como herdeiro de fortuna e título nobiliárquico numa Inglaterra classista até à medula. Esta revisitação do “caso Tichborne” é acompanhada por uma personagem extraordinária: a governanta Eliza Touchet, prima do romancista William Ainsworth, crítica de Dickens, cética quanto ao sistema, pró-abolicionista, letrada e desconfiada da velha Britânia. Zadie usa-a para debater verdades históricas e literárias. D. Quixote, 536 págs., €24,90

8. Caruncho
Layla Martinez

“Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego.” Eis a voz de uma neta a regressar ao lar rural familiar, fugida de uma acusação de crime, e que conduz o leitor para as terras áridas castigadas pelo franquismo espanhol – que também bem podiam ser as do salazarismo português – e para um mundo de regras que aproximam a realidade do fantástico. Uma narrativa de vingança e suspeição a duas vozes, uma leitura perturbadora e fascinante. Antígona, 128 págs., €15

9. A Vingança é Minha
Marie N’Daye

Já agraciada com o Prémio Goncourt, a romancista adentra-se agora num thriller psicológico que vai arrastando, devagar, o leitor para um labirinto tenso, tortuoso, nevoento. Tudo começa como numa banal história de detetives: o franzino e insignificante Gilles Principaux bate à porta do escritório de Susane, advogada acomodada. Ela conhece-lhe já a tragédia: a sua mulher está acusada do homicídio dos três filhos, uma Medeia contemporânea. Mas o que a faz retesar-se em desconforto, esfregando a testa “convencida de que ali tinha um vago ferimento”, é o encontro com este homem. Uma master class sobre poder e ambiguidade. Alfaguara, 240 págs., €18,45

10. A Picada de Abelha
Paul Murray

Distinguida por vários prémios, esta saga familiar ilustra extraordinariamente a tragicomédia realista, entre desesperança e humor negro, que a literatura irlandesa conhece bem. Nas Midlands pós-crise de 2008, fortuna e esperança andam arredadas da família Barnes: o pai Dickie afundou-se em negócios perdidos, a mãe Imelda frustra-se com a falta de dinheiro, a filha Cass vive uma amizade feminina que abana os preconceitos e o filho JP é uma caixa de ressonância pré-adolescente de várias angústias – e todos contam o seu lado da história. A infelicidade tem um momento big bang? A culpa foi da picada de abelha no dia do casamento dos pais? Uma leitura arrebatadora. 

11. Maniac
Benjamín Labatut

Percurso singular o de Benjamín Labatut, nascido nos Países Baixos, em 1980, mas há muito radicado na América do Sul. Até há pouco tempo escrevia sobretudo em espanhol, mas com Maniac estreou-se na língua inglesa. Este é também o seu primeiro romance, depois de vários volumes de contos, incluindo Um Terrível Verdor, dominado por grandes figuras da ciência. Labatut segue agora a pista de outras figuras extraordinárias – Paul Ehrenfest, John von Neumann e Lee Sedol – para perceber a nossa ligação com as máquinas. Com muita inventividade e inúmeras variações de capítulo para capítulo, Maniac mostra as figuras por detrás das grandes criações dos últimos séculos e, mais do que isso, a vida própria que essas criações alcançaram (simbolizadas, no romance, no confronto de Sedol com um computador num jogo de Go). Relógio d’Água, 248 págs., €21

12. Retrato Huaco
Gabriela Wiener

Um dos grandes exemplos da força da literatura pós-colonial, aquela que não só desfaz estereótipos construídos no passado, mas que também evidencia a desconfiança em relação ao Outro que ainda marca as antigas potências coloniais. Nascida em Lima, em 1975, Gabriela Wiener vive há vários anos em Espanha e toda a sua existência balança entre os dois lados do Atlântico, sobretudo porque se acredita que a sua família descende de um explorador austríaco e francês que, no século XIX, andou pela Bolívia e pelo Peru. Agora, diante da sala com os objetos que Charles Wiener, esse explorador, trouxe da América do Sul, Gabriela dá início a um relato em que tudo questiona: a história, a opressão, o racismo, a identidade e a sexualidade. Antígona, 168 págs., €16 

13. Desertar
Mathias Ènard

Duas narrativas fortes correm aqui, atravessando uma Europa assolada por conflitos, e onde se adivinha o espetro do conflito russo-ucraniano: a descrição vívida de um soldado desertor a lutar contra elementos exteriores e pulsões interiores, algures no maqui mediterrânico enlameado; e o apaixonante arco narrativo do matemático (alemão de leste) Paul Heudeber e da brilhante e livre Maja Scharnhorst, sua mulher (alemã ocidental), entre a ascensão do nazismo e o desmoronar das utopias comunistas. Ambas procuram “outros nomes para a esperança”, sustentadas pela escrita vigorosa de Énard. D. Quixote, 232 págs., €18,80

14. A Guardiã
Yael van der Wouden

Primeiro romance de Yael van der Wouden, escritora neerlandesa nascida em Telavive, em 1987, que chegou à short list do prestigiado Prémio Booker. Esta é uma história de vidas reconstruídas com os destroços da Segunda Guerra Mundial e a destruição nazi como pano de fundo. Uma mulher cuida obsessivamente da sua casa no campo. Chega a fazer inventários de tudo o que tem, com medo de roubos impossíveis. Essa aparente estabilidade será fortemente abalada pela chegada da namorada do irmão, Eva, que avivará, apenas com a sua presença e descuido (para os padrões de Isabel) memórias há muito enterradas. Uma narrativa sobre um lar que, como as pessoas, países e períodos históricos, esconde muitos traumas. Asa, 304 págs., €17,90

15. Intermezzo
Sally Rooney

Retratista exímia, Rooney tem uma naturalidade narrativa que introduz o leitor na mesa e na cama dos seus jovens adultos imaginados. Intermezzo foca-se no intervalo entre o verão e o Natal de 2022, quando o tabuleiro afetivo entre dois irmãos rivais e as suas parceiras amorosas vai mudando peças de lugar. O controlado Peter –  bem sucedido advogado de Dublin que divide afetos entre Sylvia, alma gémea dos tempos de faculdade, e a jovem Naomi, uma carta fora do baralho – e o jogador de xadrez Ivan – a fazer um regresso celebrado a um caso com Margaret, uma mulher casada mais velha – testam as regras do mundo à sua volta. Há lágrimas, risos, sexo, momentos perfeitos. Que mais se pode pedir? Relógio D’Água, 423 págs., €24

16. Velar por Ela
Jean-Baptiste Andrea

Não se nasce sem consequências numa família italiana, mesmo que pobre, com o nome de Michelangelo. E esse será o fardo e a graça de um dos protagonistas do novo romance de Jean-Baptiste Andrea, realizador francês que se converteu às artes literárias com grande êxito. Velar por Ela chega a Portugal depois de ter sido distinguido, no ano passado, com o Prémio Goncourt, o mais prestigiado galardão das letras gaulesas. Michelangelo, ou Mimo, como é conhecido, recorda a sua vida quando se encontra à beira da morte, destacando o seu improvável percurso artístico e a relação com Viola Orsini, filha de uma família abastada. Ao correr das páginas, Velar por Ela faz-se de opostos que se atraem e se alimentam: a arte e a vida, o amor e a amizade, o génio e a vulgaridade, a guerra e a paz. Porto Editora, 376 págs., €19,99

17. A Corneta Acústica
Leonora Carrington

A pintora surrealista, cujos bestiários e figuras oníricas estão hoje a ganhar reconhecimento, foi uma escritora original e ferozmente não convencional, como bem patenteia este clássico de 1976, do qual poderia dizer-se que é também um bizarro manifesto contra o idadismo. Nesta edição ilustrada pelo filho de Carrington e prefaciada por Ali Smith, acompanham-se as aventuras de um grupo de senhoras idosas em guerra com o sistema e os pequenos poderes numa comunidade dita “de repouso” – onde, diga-se, estranhos acontecimentos têm lugar. Antígona, 228 págs., €18

18. Paradaise
Fernanda Melchor

Depois do torrencial Temporada de Furacões, caímos neste novo romance numa terra dividida por sonhos, contas bancárias e o inominável narcotráfico. Melchor cria um dispositivo de opostos nesta paisagem mexicana: o adolescente Polo vive na estagnada localidade mexicana de Progreso, para onde adia o regresso diário “enfrascando-se até aos gorgomilos”, mas trabalha no condomínio de luxo Paradise – Paradaise para os locais – como jardineiro explorado. Aí, deixa-se convencer pelo menino rico Franco, viciado em pornografia e obcecado por uma vizinha casada, a deitar mãos à miragem… Uma radiografia de tempos de violência, em que o mal regressou sem desculpas.Elsinore, 136 págs., €16,65

19. O Bebedor de Vinho de Palma
Amos Tutuola

É como uma espécie de Aventuras de João Sem Medo, de José Gomes Ferreira, em versão iorubá, esta obra até agora inédita em português. O Bebedor de Vinho de Palma é um clássico das literaturas africanas, publicado em 1952, e um quebra-cabeças para os tradutores. O seu autor, o nigeriano Amos Tutuola, escreveu-o no seu inglês rudimentar, com erros e até palavras inexistentes. O que era embaraçoso para a elite culta nigeriana foi visto como uma qualidade extraordinária por intelectuais como T.S. Eliot, responsável pela sua edição em Inglaterra e pela revelação ao mundo deste universo onírico assente na tradição oral iorubá. Tinta-da-china, 120 págs., €17,90

20. Como Amar uma Filha
Hila Blum

É possível uma mãe amar demasiado uma filha? Deve dosear-se a entrega? Como reagir quando os filhos começam a fugir ao controlo? As complexas questões da maternidade são levantadas à medida que esta ficção altamente intrigante decorre. A ação arranca na Holanda, quando Yoella, a mãe, assiste através da janela, na rua, sem revelar a sua presença, a uma cena doméstica da filha, Leah, com as respetivas filhas. Leah abandonou a família há vários anos, sem deixar rasto, e estas páginas são uma tentativa de perceber o porquê. O tom da escritora israelita é, às vezes, autopunitivo, outras apenas o das lembranças; tem laivos de diário e muita carga emocional. Quetzal, 272 págs., €18,80

21. Dia
Michael Cunningham

Dizer que Dia, o novo romance de Michael Cunningham (um regresso ao fim de dez anos) é sobre a pandemia de Covid-19 é obviamente dizer muito pouco. Mas salientamos esta dimensão da narrativa porque ela mostra a atenção que o escritor norte-americano sempre dedicou à intimidade, aos espaços familiares, às relações entre pessoas próximas, condição que o vírus que parou o mundo só potenciou, para o bem e para o mal. Na verdade, Dia é uma narrativa em três tempos que reflete as vicissitudes de uma família no mundo contemporâneo. No mesmo dia – 5 de abril – de três anos diferentes – 2019, 2020 e 2021 –, tece-se uma rede de afetos, desafios e obstáculos que vão questionar a harmonia de cada membro e do conjunto. Gradiva, 320 págs., €18,50

22. Canção do Profeta
Paul Lynch

Vencedor do Prémio Booker em 2023, o romance do irlandês Paul Lynch insere-se na longa tradição da literatura distópica. Como num romance histórico que olha para trás para interrogar o presente, também esta visão de um futuro radical interroga as opções e os desgovernos da atualidade. O palco, neste caso, é a Irlanda que se vê dominada por um regime totalitário apoiado pela extrema-direita. Com o desaparecimento do marido, um sindicalista, Eliish, sozinha com os quatro filhos, tem de decidir se fica e resiste ou se foge e sobrevive. Num estilo único e torrencial, Lynch capta as angústias de cada personagem e dos nossos tempos. Relógio d’Água, 336 págs., €22