Já sentiu uma pressão silenciosa para ceder, mesmo quando tudo dentro de si grita que não devia? Como se fosse mais fácil desistir do que enfrentar. Como se a batalha custasse mais do que a derrota.

Há pessoas que parecem ter um estranho poder de moldar tudo à sua volta. Não precisam de gritar, nem de bater com a mão na mesa. E, ainda assim, tudo acaba sempre por gravitar nelas Em reuniões de família, nas decisões mais importantes ou até nos pequenos detalhes do dia a dia – há sempre uma forma subtil, quase impercetível, de conduzirem tudo a seu favor.

E o mais desconcertante? Nem sempre são pessoas carismáticas ou rodeadas de grandes amizades. Muitas vezes, vivem isoladas nas suas próprias muralhas emocionais, afastando os outros com o desgaste que provocam. Aos poucos, quem as rodeia aprende que é mais fácil ceder do que insistir. Porque tentar contrariar custa demasiado. Porque discutir parece inútil. Porque, de algum modo, o silêncio torna-se uma forma de sobrevivência.

Este padrão não é raro. Pessoas com este tipo de comportamento não são, necessariamente, maliciosas. Muitas nem percebem plenamente o impacto que têm. Mas há algo que sabem bem: o resultado compensa. E, por isso, continuam.

O que se observa, na prática, é uma tendência para manipular sem o fazer de forma óbvia. Uma chantagem emocional disfarçada. Uma culpabilização subtil. Um jeito de fazer parecer que contrariar é errado, desleal ou injusto. Não é violência. Mas é uma pressão constante, que vai corroendo devagar a vontade dos outros. Até que, sem darmos conta, deixamos de ser inteiros nas relações para sermos apenas extensão das necessidades alheias. Vamo-nos anulando, devagar.

A neurociência ajuda-nos a entender isto: comportamentos como este podem estar ligados a padrões enraizados no funcionamento do cérebro – nomeadamente nas zonas que regulam o controlo emocional, a empatia e o sistema de recompensa. Pessoas que, desde cedo, aprenderam que conseguem o que querem através da cedência dos outros, reforçam esses caminhos neuronais. Cada vitória silenciosa é um novo tijolo nesse comportamento, por ser uma forma eficaz de satisfazer as próprias necessidades.

Então, como lidar com alguém assim na nossa vida?

O primeiro passo é reconhecer a dinâmica. Perceber quando se está a ceder apenas para evitar o confronto, quando se começa a sentir que as próprias vontades já não têm espaço ou quando há um padrão de desgaste emocional. Criar limites – mesmo que subtis – é essencial. Dizer “não” sem gritar, afastar-se de discussões cíclicas, evitar justificar-se em excesso e procurar manter alguma distância emocional daquilo que é dito ou pedido.

É também importante manter relações com outras pessoas, cultivar espaços onde exista liberdade para ser quem se é. Cuidar da autoestima. Estes ambientes ajudam a lembrar que não se está errado por sentir desconforto – seja por contrariar, seja por não o fazer – e que ninguém deve viver preso ao jogo emocional de outra pessoa.

Se começar a ser demasiado pesado, procurar ajuda profissional pode ser o primeiro passo para recuperar a perceção de autonomia. Porque mesmo que quem nos rodeia não mude, podemos mudar a forma como nos posicionamos. Não se trata de cortar relações – trata-se de não nos perdermos dentro delas.

No fundo, quem exerce esse controlo também está, muitas vezes, preso à própria forma de existir. Mas isso não significa que se tenha de aceitar viver em desequilíbrio. Há sempre forma de recuperar espaço, leveza… e liberdade.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Nestes tempos de luta política, a paisagem das cidades é assolada por cartazes insalubres carregadinhos de frases cliché que duvido muito – mas mesmo muito – que convençam alguém a votar. “Este cartaz está mesmo bom. Tem a fotografia de um líder partidário e a palavra ‘confiança’. É isto mesmo.”, disse ninguém, nunca.

Mais vale apostar forte e feio no digital, nas redes sociais, onde, de facto, é possível fazer um pouco mais do que “foto do candidato e frase entediante”. E assim, ao menos, o cidadão pode escolher não ver este tipo de conteúdo ao configurar a sua página para isso.

O passeio pela cidade, nestes dias, torna-se uma caminhada entre outdoors e cartazes em postes de eletricidade.

Alguns destes cartazes ficarão, eternamente, em exposição, pois haverá sempre os que escapam à recolha pós-eleição. São deixados de propósito? Escapam genuinamente aos militantes? Não interessa. Ficam lá.

A questão não fica, porém, pela política. Por onde quer que os pedestres andem, veem publicidade intensiva. Esta invasão do espaço público pela ideologia, pelo marketing, pelo negócio, está a objetificar a cidade – a torná-la num gigante outdoor visualmente poluente.

O caso de Lisboa é paradigmático: não basta as ruas com buracos, o lixo acumulado, casas vazias, o mau cheiro – os cartazes dão o golpe final.

Está claro que a cidade é ideológica: os quadradinhos “AL” por toda a cidade; os passeios estreitos e estradas largas; a existência ou não de ciclovias; a falta de espaços públicos verdadeiramente gratuitos – it doesn’t get more political than this.

Mas ser ideológica não significa ser feia.

Há boa propaganda e com bom gosto, é uma verdade. Do marketing político ao marketing empresarial, há toda uma comunidade de criativos que levam para a frente a forma de comunicar. E ainda bem.

Mas há, no entanto, limites que têm de proteger a decência. Não é saudável bombardear as ruas com interjeições, ordens, palavras, vote neste, compre aquilo, ligue para ali. É essencial proteger a liberdade dos cidadãos, não permitir estas tentativas constantes de condicionar e controlar comportamentos.

Que se invente rapidamente uma nova forma de fazer comunicação política. Uma comunicação para libertar e não condicionar.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Um estudo publicado no Science mostra que os exoplanetas do tipo superterra são mais comuns do que se julgava até agora e que estes mundos podem existir mesmo longe das suas estrelas-anfitriãs. A equipa de investigadores da Universidade do Ohio revela que analisou as anomalias de luz causadas pela estrela-anfitriã dos planetas recém-descobertos e cruzou-as com uma amostra maior obtida pela KMTNet, uma rede de telescópios da Coreia.

Andrew Gould, co-autor do trabalho, afirma que “os cientistas sabiam que há mais pequenos planetas do que planetas grandes, mas neste estudo conseguimos mostrar que dentro desse padrão, há excessos e défices”. O estudo estima que por cada três estrelas exista pelo menos uma superterra com uma órbita semelhante à de Júpiter, o que sugere que estes mundos são mais prevalentes do que se calculava até agora. Outra conclusão confirmada é que estes planetas podem ser localizados mais facilmente quando estão em órbitas próximas das estrelas e de forma mais difícil quando estão em caminhos mais longos e distantes destas com recurso a microlente gravitacional.

“Observamos o evento de microlente OGLE-2016-BLG-0007 que indica um exoplaneta com um rácio de massa planeta-para-estrela duas vezes à do rácio de massa Terra-Sol, numa órbita mais longa que a de Saturno”, conta esta equipa ao Interesting Engineering.

As descobertas deste estudo foram possíveis graças ao efeito de microlente, quando uma estrela ou planeta passa entre o observador e uma estrela mais distante e a sua gravidade afeta a perceção da luz, causando um aumento do brilho. Este tipo de observação ocorre quando o campo gravitacional de uma estrela atua como uma lente, ampliando a luz de uma estrela de fundo distante.

“Combinamos este evento com uma amostra maior de dados de microlente para determinar que a distribuição de rácios de massa para planetas em órbitas alargadas. Inferimos que há cerca de 0,35 planetas superterra por estrela em órbitas como a de Júpiter. As observações são consistentes com uma distribuição bimodal, com picos separados para superterras e gigantes gasosos. Sugerimos que isso reflete diferenças no processo de formação”, conclui a equipa.

Os jornalistas do Wall Street Journal quiseram testar os limites dos assistentes de chat da Meta e concluem que os chatbots podem estabelecer conversas de cariz sexual, mesmo com contas de utilizadores menores. Os investigadores revelam que quer os bots oficiais da Meta, quer os que são criados pelos utilizadores conseguem manter este tipo de conversas e, em alguns casos, guiar mesmo a conversa para fantasias sexuais.

Segundo este trabalho, até os chatbots que usam vozes de celebridades como Kristen Bell, Judi Dench ou John Cena podem ter este tipo de comportamento. Numa conversa com um assistente com a voz de Cena, ouve-se o bot dizer que “Quero-te, mas preciso de saber se estás pronta” a uma conta de uma pessoa registada com 14 anos e a prometer que iria “celebrar a tua inocência”, cita o Engadget. Este mesmo bot ‘sabe’ que o que está a fazer é ilegal e imoral e descreve um cenário hipotético onde seria apanhado pelas autoridades depois de estabelecer atos sexuais com um menor, de 17 anos.

A Meta já reagiu a este trabalho jornalístico e acusa o relatório de ser mostrar de “uma forma manipulativa e pouco representativa de como a maior parte dos utilizadores interage com os bots de IA”. “Não obstante, já tomámos medidas adicionais para assegurar que outros indivíduos que passem horas a manipular os nossos produtos para casos extremos tenham uma experiência ainda mais difícil”, respondeu a empresa de forma oficial.

O advento da Inteligência Artificial em diferentes setores tem trazido também o crescimento rápido de assistentes potenciados por estes algoritmos e capazes de estabelecer conversas ou realizar tarefas para o utilizador. Segundo o relato do WSJ, Mark Zuckerberg pediu para as ‘fronteiras’ éticas dos bots fossem mais alargadas por forma a permitir aos utilizadores uma experiência mais envolvente e que os chatbots permanecessem competitivos. Um porta-voz recusa que a empresa tenha ‘ignorado’ a implementação destes mecanismos de defesa.

A agência espacial da China estima que a baixa órbita possa vir a ter, em breve, mais de cem mil satélites a operar e considera, por isso, que é necessário haver um melhor sistema de gestão de tráfego para aquela região. A China National Space Administration anunciou que está a desenvolver uma forma para melhor organizar a localização e operação de satélites na baixa órbita, deixando o alerta de que sem esse sistema, os múltiplos projetos que se estão a sobrepor e a competitividade desenfreada podem vir a minar o crescimento da indústria.

Os dados do setor mostram que a China tem 58 fábricas de satélites já a operar, em construção ou a serem planeadas, o que evidencia a forte aposta de Pequim neste setor. As estimativas apontam que a China possa vir a produzir mais de cinco mil satélites por ano a partir deste ano já. Um dos grandes projetos que está a ser desenvolvido prevê uma rede de satélites que revolucione as comunicações, a navegação e a monitorização entre a Terra e a Lua, com a rede a fornecer capacidades de comunicação em tempo real aos utilizadores e comunicações simultâneas de vídeo, imagens e áudio para até 20 passageiros, noticia o Interesting Engineering.

A agência espacial anunciou na semana passada a constituição da Commercial Space Innovation Alliance, onde pretende trabalhar com organizações e empresas desta indústria para endereçar desafios comuns como a utilização de recursos, a aprovação de padrões de regulação e a coordenação geral no setor comercial espacial. O principal objetivo da aliança é assegurar o rápido e seguro desenvolvimento deste setor.

Prevenção de colisões no espaço, coordenação de serviços entre satélites e uma colaboração mais segura entre parceiros internacionais são algumas das atividades em que a aliança vai estar envolvida.

A União Europeia atinge hoje o chamado “Dia da Sobrecarga do Planeta”, o momento a partir do qual passa a usar “a crédito” os recursos que só deveria usar no próximo ano. Os cálculos da organização internacional “Global Footprint Network” significam que os recursos do planeta disponíveis para este ano terminariam esta terça-feira se todas as pessoas do mundo consumissem como as da UE. Em 2024, o Dia da Sobrecarga do Planeta foi a 3 de maio, o que significa que não só não melhorámos o nosso comportamento a este nível como até piorámos, recuando cinco dias no mapa dos consumos excessivos. Já se todas as pessoas do planeta vivessem como os portugueses os recursos para este ano esgotavam-se no dia 5 de maio (em 2024 foi a 28 de maio).

Embora a UE represente apenas 7% da população mundial, seriam necessários três planetas para satisfazer a procura se toda a gente na Terra vivesse como os europeus, recordaram as mais de 300 organizações da sociedade civil que, no ano passado, apelaram aos responsáveis políticos, numa carta aberta, para que trabalhassem no sentido de uma economia com impacto neutro no clima e positiva para a natureza.

Segundo a “Global Footprint Network”, o primeiro país a esgotar os recursos este ano foi o Qatar, logo a 6 de fevereiro. No ano passado também tinha sido o primeiro, mas a 11 de fevereiro.

O Luxemburgo aparece de novo em segundo lugar, consumindo tudo a 17 de fevereiro, e em terceiro lugar Singapura, a 26 de fevereiro.

Os Estados Unidos esgotaram os recursos a 13 de março, a Dinamarca e a Austrália a 19, a Federação Russa a 6 de abril e a França a 19. Espanha só esgota os seus recursos no próximo dia 23.

Do outro lado do mapa, dos países que conseguem poupar mais os seus recursos destaca-se o Uruguai, que apenas esgota os que lhe estão destinados a 17 de dezembro.

A Indonésia esgota-os a 18 de novembro, a Nicarágua a 11 e o Equador a 31 de outubro.

A “Global Footprint Network” é uma organização internacional de investigação que fornece a decisores ferramentas para ajudar a economia humana a funcionar dentro dos limites ecológicos da Terra. Os cálculos para estimar os dias de sobrecarga são baseados nos dados mais recentes.

O Dia da Sobrecarga do Planeta em 2024 foi no dia 1 de agosto, um dia mais cedo do que no ano anterior.

Daqui a pouco, pelas 10 horas, o ex-juiz Rui Fonseca e Castro, atual líder do partido Ergue-te, e o neonazi Mário Machado, líder do grupo 1143, estarão no Campus da Justiça, em Lisboa, a apresentarem-se junto da Autoridade Judiciária competente. Vem este episódio no seguimento dos desacatos que provocaram na sexta-feira, 25 de Abril, no Largo de São Domingos, junto ao Rossio, ao mesmo tempo que decorria a tradicional e saudável celebração da Liberdade, avenida abaixo.

Quem por lá andava, de cravo ao peito, entoando loas ao “dia inicial, inteiro e limpo”, nas palavras de Sophia, não deu por nada. A festa fez-se como sempre, com milhares de pessoas de todas as idades e credos, indiferentes ao luto nacional decretado por Marcelo, na sequência da morte do Papa, ou ao estapafúrdio adiamento das celebrações inventado por Montenegro para este ano.

As notícias do que se passava paredes meias com o desfile iam chegando via relatos de quem seguia as notícias em casa ou nos alertas dos telemóveis. E já eram mais ou menos esperadas, depois de ser oficial que a manifestação que alguma extrema-direita programara para aquele dia, no Martim Moniz, tinha sido proibida pela polícia, após análise de todos os prós e contras.

Mas quando soubemos, passava pouco das quatro da tarde, das detenções do ex-juiz e do eterno condenado Mário Machado, a alegria subiu de tom.

Daqui a pouco, pelas 10 horas, o ex-juiz Rui Fonseca e Castro, atual líder do partido Ergue-te, e o neonazi Mário Machado, estarão no Campus da Justiça, em Lisboa, a apresentarem-se junto da Autoridade Judiciária competente. Vem este episódio no seguimento dos desacatos que provocaram na sexta-feira, 25 de Abril, no Largo de São Domingos, junto ao Rossio, ao mesmo tempo que decorria a tradicional e saudável celebração da Liberdade, avenida abaixo.

Quem por lá andava, de cravo ao peito, entoando loas ao “dia inicial, inteiro e limpo”, nas palavras de Sophia, não deu por nada. A festa fez-se como sempre, com milhares de pessoas de todas as idades e credos, indiferentes ao luto nacional decretado por Marcelo, na sequência da morte do Papa, ou ao estapafúrdio adiamento das celebrações inventado por Montenegro para este ano.

As notícias do que se passava paredes meias com o desfile iam chegando via relatos de quem seguia as notícias em casa ou nos alertas dos telemóveis. E já eram mais ou menos esperadas, depois de ser oficial que a manifestação que alguma extrema-direita programara para aquele dia, no Martim Moniz, tinha sido proibida pela polícia, após análise de todos os prós e contras.

Mas quando soubemos, passava pouco das quatro da tarde, das detenções do ex-juiz e do eterno condenado Mário Machado, a alegria subiu de tom.

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Nasceu em Coimbra, em 1988, e licenciou-se em Direito pela Universidade Nova de Lisboa. Venceu dois prémios e, em seis meses, publicou dois livros arrebatadores: Aqui Onde Canto e Ardo (Gradiva) e Morramos ao Menos no Porto, que acaba de sair com a chancela da Quetzal. Escreve há mais de dez anos e, durante esse tempo, fez algumas tentativas de publicação que não foram bem-sucedidas. É sem ponta de exagero que se diz: Francisco Mota Saraiva sabe o que faz e a sua literatura vai dar que falar.

Quando recebeu o Prémio Saramago, disse que “vivíamos momentos com pouca luz”, dando a entender que o livro era a sua proposta de iluminação, no meio das sombras do mundo. Ainda é assim que olha para ele?
Sim, acho inevitável que alguém que se coloque no espaço e no tempo que hoje habitamos não veja ou não se sinta ameaçado, de alguma maneira, relativamente àquilo que eram valores que tínhamos por mais certos. A seguir à II Guerra Mundial, sobretudo no mundo ocidental, vivemos uma relativa paz e agora vivemos…

Tempos de incerteza?
Há muita incerteza e há também um certo discurso… Não me refiro tanto ao discurso dos que detêm o poder, dos políticos. Mas há um discurso que se tornou banal na sociedade e que também noto nas pessoas que me rodeiam. Dizer determinadas coisas, afirmar determinados pensamentos, é um pouco aquela ideia da banalidade do mal de Hannah Arendt… Os tempos estão mais sombrios. Obviamente que há que ter alguma esperança e há que lutar para que as coisas possam ser diferentes. Mas tenho algum medo do mundo em que hoje vivemos.

Até que ponto pode a arte ‒ um livro, neste caso ‒ mudar o mundo, contribuir para essa mudança?
Não vejo a arte como algo capaz de mudar o mundo. No entanto, julgo que a arte tem sempre um papel relativamente político. Se calhar, a maior parte dos artistas não pretende, através da arte, fazer uma afirmação política ou apresentar propostas políticas. Mas qualquer artista (um escritor, um pintor ou um escultor), a bem ou a mal, esconde sempre algo de político, naquilo que é a sua proposta artística. Porque se trata de um comportamento social, e nós, enquanto seres sociais, acima de tudo, somos seres políticos. É natural que a criação artística possa representar alguma ideia, alguma proposta de valores. O próprio sentido estético também está muito associado a esta proposta de valores. Mas isto não era o meu objetivo com o livro, só tinha uma ideia…

O que tinha, quando começou?
Não tinha absolutamente nada. Já contei esta história algumas vezes: anteriormente, vivi numa outra casa, uma daquelas casas antigas de Lisboa, com chão de madeira, numa grande avenida, poluída e barulhenta. Era uma casa dos anos 30 e, de certa forma, essas casas têm vida. Um dia, sentei-me à secretária para escrever, não sabia muito bem o que ia escrever e senti que aquele chão respirava, havia barulhos… Através das próprias paredes também se ouviam algumas coisas.    

A dinâmica do prédio, tal como no livro. 
Exatamente. Então, comecei a imaginar as personagens que viviam debaixo daquele chão, como se os nossos mortos e as nossas memórias eclodissem desse chão e ganhassem vida. Depois, fui povoando o livro com outras personagens, aquilo para mim era só o início da narrativa. Nunca tive uma ideia política, mas, como eu dizia, parece-me inevitável que acabemos por convocar determinadas realidades que nos são próximas. 

Também foi buscar a questão do aborto clandestino, que parece estar mais ou menos resolvida em Portugal. Porquê?
Acho que, em Portugal, temos por vezes a ideia de dar os problemas como resolvidos através de uma lei e não sei se é exatamente assim. Sobre a questão do aborto, tem-se levantado a possibilidade de ser algo de legal e, simultaneamente, haver tantas mulheres que continuam a fazê-lo de forma ilegal. Fiquei mais desperto para algumas realidades, nomeadamente, a violência sobre as mulheres, a violência de género que, muitas vezes, está presente não só na violência doméstica mas também na forma como os abortos são praticados em Portugal. Um amigo chamou-me a atenção para essa realidade. E, entretanto, também comecei a ler mais escritoras, despertei para uma literatura feminina que, finalmente, parece estar a eclodir. É um lado da literatura que está pouco explorado e que também me interessa. Para mim, é desafiante tentar construir narrativas a partir de um lado que não é o meu. 

Acautele-se: esse não é “o lugar da fala”. 
[Risos.] Sim, isso aconteceu com o Afonso Reis Cabral por causa do seu livro [Pão de Açúcar, que também venceu o Prémio Saramago, em 2019] sobre a transgénero que foi assassinada [Gisberta Salce Júnior, que morreu no Porto, em 2006]. Nos EUA, gostaram do livro, mas disseram-lhe que, como ele não era transgénero, não podia escrever sobre isso. Tudo isto também me assusta, estamos a colocar muitas amarras à arte quando dizemos quem é que pode ocupar o lugar da fala, quais é que devem ser as vozes. Julgo que todo o artista pode debruçar-se sobre qualquer criação que entenda que faz sentido, independentemente de ter uma ligação mais ou menos próxima dessa realidade. Posso dar um exemplo: por esta ordem de ideias, eu nunca poderia escrever sobre a experiência de um cárcere, sobre um prisioneiro que está preso, a menos que me enfie numa prisão. Zola foi viver para os bairros sociais, mas não creio que isso seja necessário. Podemos escrever através de uma certa transmutação, a partir de uma experiência de sentimentos e tentar transformá-los.  

Como se um escritor não fosse livre de escrever sobre o que bem entende, além do mais?
Claro. Quando apresentou o meu primeiro livro [Aqui Onde Canto e Ardo, vencedor do Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís], o Gonçalo M. Tavares foi muito generoso e disse-me uma coisa: “Nunca deixes de escrever o que entendes.” Ou seja, nunca deixes uma palavra por dizer, não te deixes amarrar por convenções, pelos leitores, pelo mundo editorial, seja por quem for. Porque, se o fizermos, não estaremos a ser honestos com a literatura. 

Já li que não quer contar histórias, pois considera que as grandes histórias já foram todas contadas. Se eu for muito literal, ao resumir a história do livro, concorda que fica a parecer demasiado tétrico?
Sim, é verdade. O que me interessa é a exploração da personagem, mergulhar nas suas dores e violências. Como disse, quando comecei a escrever o livro, não tinha grandes ideias, mas a certa altura esse protagonista, o António, começou a ganhar alguma relevância. Imaginei: e se este homem tivesse vivido uma grande história de amor? E se essa história de amor se prolongasse além da vida, literalmente, como seria? No fundo, uma espécie de efabulação: posso prolongar esse amor, torná-lo quase perpétuo, um amor entre alguém que está vivo e alguém que está morto; uma relação que pode prolongar-se até ao ponto de eles puderem juntar-se na mesma condição física, continuarem esse amor para lá das suas vidas.

É lírico e melancólico, mas também é um sinal de esperança.
Sou um pessimista, mas sou um pessimista esperançoso. E acredito profundamente nesta ideia de que duas pessoas podem estabelecer uma relação para lá da sua própria vida. A certa altura, no momento da escrita, percebi que estava a contar uma história que eu próprio já tinha presenciado. O nome das personagens, António e Silvina, são os nomes dos meus bisavós. A minha bisavó morreu repentinamente. Ela e o meu bisavô tinham uma relação tão forte que, muito pouco tempo depois da morte dela, o meu bisavô acabou por morrer, sem uma doença que se conhecesse. Teve um profundo desgosto de amor.

Estamos a colocar muitas amarras à arte quando dizemos quem é que pode ocupar o lugar da fala, quais é que devem ser as vozes. Todo o artista pode debruçar-se sobre qualquer criação que entenda que faz sentido

Quando lhe atribuíram o prémio, a Adriana Lisboa, membro do júri, também disse que o livro era “o espelho da desintegração do mundo”. É possível estabelecer uma relação direta com o que se passa em Portugal?
Obviamente que, no papel de escritor, é com essa lente que observo e que trago isso para a minha escrita. Julgo que quem ler o livro vai, inevitavelmente, encontrar um paralelismo com o Portugal de hoje. A verdade é que sinto que as pessoas estão relativamente doentes dos olhos, estão reféns das suas ambições, das redes sociais, viraram-se muito para elas próprias, para as suas raivas e para os seus ódios. Enquanto isso, de facto, há um mundo que se desintegra lá fora. Estamos cada vez mais longe uns dos outros. E também é por causa disso que, no livro, há uma série de personagens que, apesar de habitarem o mesmo prédio, não conseguem comunicar. 

Nota muita indiferença, é isso?
Vivem as suas histórias, as suas dificuldades e são relativamente indiferentes uns aos outros. Acho que deixámos de olhar para o outro, deixámos de olhar para o meio que nos rodeia com simpatia e generosidade. Estamos tão interessados no que somos, no que queremos ser ou no que queremos transmitir aos outros que deixamos de olhar para o outro. E julgo que, efetivamente, é através do outro que nos completamos. Ficámos desatentos. E, quando estamos desatentos, do outro lado, provavelmente, está alguém demasiado atento, a dirigir a sua atenção não necessariamente para o bem.

Percebe-se que é um grande leitor. Como foi o seu caminho enquanto leitor: o que foi gostando ao longo dos anos, o que foi lendo, o que foi descobrindo…? 
Tenho sempre dificuldade em responder a isso, porque claro que há muitos autores que me influenciaram… Os meus pais também eram grandes leitores. Quando comecei a ler literatura portuguesa, comecei muito pelo Eça de Queirós e, depois, fui fazendo um caminho largo. Penso que existem alguns livros cujo contacto me fizeram pensar que a escrita podia ser feita de uma forma relativamente diferente. Aconteceu-me com O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, com O Outono do Patriarca, de Gabriel García Márquez, muitos dos livros de António Lobo Antunes, Borges, Cortázar, Bolaño… Tenho um prazer recente, que é ler teatro: gosto muito de teatro, gosto muito de ir ao teatro e acho fascinante que também possa ser lido, estando inicialmente pensado para ser representado. Como disse, também tenho lido muitas escritoras: Clarice Lispector, Virginia Woolf, Deborah Levy, Leila Slimani, Fernanda Melchor, Annie Ernaux, Natalia Ginzburg… E depois há ainda dois escritores que me marcaram muito: Proust e Céline. O Em Busca do Tempo Perdido é um colosso literário e a literatura de Céline é magnânima, apesar de muitas vezes ser tido como um autor não recomendável, por motivos políticos…

Nessa avaliação, não se dissocia a figura do escritor?
Sim. Acho que o que as pessoas também procuram é tentar perceber quem está do outro lado. Agustina dizia que achava que as pessoas eram muito simpáticas com ela na rua, mas que nunca tinham lido um livro dela. Só gostavam dela enquanto pessoa que aparecia nos jornais e na televisão. É natural, o leitor quer conhecer quem está do lado de lá, mas a mim isso parece-me um mau princípio para a descoberta da criação artística. 

Tal como outros meios, o meio literário também vive de figuras.
Pois, mas isso não me interessa muito, às vezes até prefiro não conhecer quem está do outro lado. Li há pouco tempo um livro do Javier Marías, Vidas Escritas, em que ele diz qualquer coisa como: um escritor não é muito diferente de uma pessoa normal, alguém que viva no perfeito anonimato. E nós temos tendência para atribuir determinados caprichos, extravagâncias, irritações e depois empolá-los, porque, de alguma maneira, isso também nos permite estabelecer uma relação com o escritor, sentimo-nos atraídos por saber que também tem defeitos…

Prémios literários: que importância lhes dá?
No meu caso, os prémios que ganhei tiveram alguma importância porque me deram a possibilidade de publicar. Mas, na verdade, não lhes dou grande importância. Atribuo-lhes algum valor, porque estão ali algumas pessoas – leitores mais experimentados, académicos, críticos… – que, de alguma maneira, dizem que o que eu fiz é digno de ser publicado. Ao mesmo tempo, os prémios também podem ajudar a separar o trigo do joio, embora aqui eu possa estar a ser muito injusto porque há tão bons escritores que nunca foram premiados… 

E não sente que trazem também alguma visibilidade?
Sim, os prémios também são importantes porque dão alguma visibilidade à literatura. Precisamos de grandes momentos, de grandes ocasiões, de desígnios que às vezes só se cumprem com determinados rituais. É um pouco como uma religião, com todos aqueles ritos associados que atraem as pessoas para a religião. Tal como os festivais literários, os prémios também têm isto: chamam a atenção, permitem que os livros estejam vivos. Num tempo em que se fecham livrarias e cinemas, os prémios têm o condão de dizer que a literatura está viva, que há pessoas que merecem, que são dignas de os receber. Todos esses ritos alimentam não só os leitores mas também quem escreve.  

Uma última pergunta sobre o Direito. E, no fundo, para saber se faz com gosto ou se é apenas uma forma de pagar contas?
Tinha muitas ilusões relativamente ao mundo do Direito, tinha a ilusão de que seria uma profissão mais romântica do que aquilo que ela é realmente… O que gosto mesmo de fazer é escrever. Mas o Direito acabou por se tornar um trabalho, digo sempre que tenho dois ofícios. Em Portugal, infelizmente, contar-se-ão pelos dedos de uma mão os escritores que podem viver da sua escrita, muito menos eu, que ainda agora comecei…

E tem conseguido conciliar as duas coisas de forma disciplinada? 
Já o faço há alguns anos, mas acho que esse é o meu maior desafio. Como é que todos os dias encontro uma disciplina, uma rotina para que as duas coisas não se atrapalhem, para que nem uma nem outra fiquem prejudicadas. Obviamente que isto é feito com muito sacrifício, mas há tantas pessoas que, por razões financeiras, têm dois empregos e que se dão a eles com afinco… É o que procuro fazer. O meu trabalho como jurista também me ensinou muito esse lado da disciplina. Mas, pronto, são menos horas que se dormem, programas que às vezes ficam adiados, com a família ou com os amigos. Acho que vale a pena. E, na verdade, eu também não conseguiria fazer de outra forma. Preciso disto para um certo bem-estar pessoal e, além do mais, já se tornou uma espécie de vício.

Antes de mais, as explicações sobre o debate mais importante destas legislativas: Luís Montenegro vs André Ventura. Para evitar qualquer contaminação, mesmo que por simpatia, não li, ouvi ou vi qualquer comentário sobre o debate. Ouvi-me apenas a mim próprio.

O que estava em causa naquele debate, e daí a sua importância, não era saber se Luís Montenegro ganharia, mas apenas se poderia ser derrotado por Ventura. Parece confuso, mas é a dinâmica eleitoral. Um é incumbente, e o outro candidata-se ao cargo. A ideia é que o maior esforço tem de ser do desafiador.

A Cruz de Serviços Distintos (a segunda mais importante) foi atribuída, por mérito próprio, a Luís Montenegro. Esteve calmo, não esbracejou, não atropelou ninguém, nem andou com papéis de um lado para o outro. Isso já foi moda. Já não pega. Esclareceu a razão para não ponderar nenhuma aproximação ao Chega — imaturidade e inconfiabilidade — e deu depois uma estocada final: recordou os 16 anos em que André Ventura esteve no PSD e o apoio que lhe deu. E nunca respondeu a qualquer provocação do líder do Chega.

André Ventura bem tentou, mas não conseguiu. Os 16 anos no PSD pesaram, perturbaram e aniquilaram qualquer ideia de ofensiva. A imaturidade e a permanente agitação do líder do Chega, o erro de soberba ao garantir que vai ganhar as eleições e, finalmente, talvez o mais importante, o tratamento deferente que sempre concedeu a Luís Montenegro — referindo-se-lhe constantemente como “Primeiro-Ministro” —, confirmaram, intuitivamente, que Montenegro continuará nesse cargo.

O tiro longo e cuidadosamente preparado por Ventura não chegou a ser disparado. Confirma-se, por isso, que Luís Montenegro descolou com um grande desempenho perante o líder do Chega, que enfrenta ainda outra dificuldade: nunca fala do seu programa e das suas medidas, mas apenas dos outros. Não estará chegada a altura de se saber o que faria André Ventura como Primeiro-Ministro? Apesar de tudo, mereceu a Legião de Honra, pela tentativa de um desempenho excecional. Que nunca aconteceu.

Este debate, pense-se o que se pensar, poderá ter dado a Luís Montenegro uma vitória histórica. E, curiosamente, o último encontro não servirá para definir quem vai ganhar as eleições. Esse tempo já passou.