Robert Fisk desabafava várias vezes, em entrevista, sobre a resistência das televisões e da imprensa internacional em mostrar as mais horríveis imagens que os jornalistas de guerra testemunhavam no terreno. Uma espécie de saneamento da desgraça, que poupa o leitor ou telespectador do choque, mas sacrifica a verdade sobre a tragédia que está a ser noticiada. Os editores das maiores agências de notícias internacionais lamentavam-se sobre a “pornografia do horror” para justificar o bloqueio dessas imagens e exigiam aos jornalistas que as tentavam publicar mais “respeito pelos mortos”. Fisk indignava-se contra a hipocrisia destas pessoas, que exigiam maior respeito pelas vítimas agora em pedaços do que quando ainda estavam vivas. Um dos maiores repórteres de guerra do pós-Segunda Guerra Mundial, que foi testemunha direta dos cenários mais sombrios do Médio Oriente, defendia, com os dentes trancados de indignação, que estas provas visuais violentas não se tratam de um fetiche pelo choque, mas de um dever de máxima exigência ética. Certas consciências adormecidas só acordam com um banho gelado de realidade.
Em Gaza, os 600 dias de massacre prolongado da população civil palestiniana não se fizeram apenas com bombas, doença e fome, mas também com ausência. Ausência de imagens. A tentação confortável de filtrar este horror diário, de poupar o espectador à visão de pesadelo de corpos mutilados espalhados pelas ruas, de hospitais em colapso onde as amputações se fazem sem anestesia, do choro das mães que já não têm leite para os filhos, do desespero e raiva de um pai que carrega ao colo um pequeno pedaço de carne, resto humano do que sobrou de uma filha que já não pode ser tudo.
Há quase dois anos que Israel bloqueia, quase sem exceção, a entrada da imprensa internacional independente no terreno. O mundo empurra assim a responsabilidade de contar o que se passa em Gaza para os próprios palestinianos e os seus telemóveis. Por lá, jornalistas, médicos, youtubers, cidadãos anónimos insistem em mostrar tudo, em partilhar tudo. Não querem que o mundo respeite os seus mortos desviando o olhar, mas que encare, sem filtro, a dimensão inimaginável do seu sacrifício. Um grande amigo, estudioso apaixonado por toda a história da Segunda Guerra Mundial, lembrava-me da advertência de Eisenhower ao visitar os campos de concentração nazis: “Registem tudo — filmem, recolham testemunhos — porque, algures no caminho da História, algum canalha vai levantar-se para dizer que isto nunca aconteceu.”
De acordo com dados do Committee to Protect Journalists (CPJ), desde o início do conflito até 21 de maio deste ano, morreram pelo menos 180 jornalistas e trabalhadores ligados à comunicação social em Gaza, dos quais 172 eram palestinianos. Em redes sociais de cerco menos apertado, como o X e o TikTok, os seus vídeos aparecem-nos na timeline como socos que vão direitos ao estômago. São imagens que desafiam qualquer pudor ou racionalidade, que não procuram neutralidade, que manifestam o desespero absoluto por empatia deste lado do ecrã. Agarram-nos o queixo à força com as mãos e fitam-nos nos olhos com uma verdade tão inimaginável e cruel que ninguém se atreve a esquecer.
Desde outubro de 2023 que vejo diariamente esses vídeos. Estes velhos e novos repórteres palestinianos gravam com a urgência de quem sabe que a sua única arma eficaz contra um dos mais poderosos exércitos do mundo é o testemunho sem cortes da sua realidade. E gravam a mão de criança que já não mexe por entre os escombros, registam os pedaços de corpos pendurados, que enfeitam com horror a fachada do prédio despejado à força pela fúria acéfala de mais uma bomba. Devo-lhes, pelo menos, a partilha, e faço-o até que o aviso da máquina a bloqueie. Prefiro tentar dormir com o terror dessas imagens na cabeça do que carregar, para o resto da vida, o peso na consciência de não as ter mostrado. Este horror visual pode ser insuportável, mas pelo menos não é cúmplice na indiferença. A um povo a quem já foi tirado quase tudo, que não se lhes roube a mensagem que nos querem passar. O suplício aflito para que os vejam.
Se quase sempre são criticadas pelo seu lado pernicioso para os nossos filhos, a verdade é que, neste contexto, as redes sociais tiveram um papel decisivo. Foi através delas que jovens de todo o mundo puderam testemunhar, muitas vezes em direto, o que muitos canais tradicionais e entidades de responsabilidade acrescida hesitavam em querer ver, quanto mais mostrar. Foi por ali que rebentou a comporta que insistia, teimosa, em travar a indignação das pessoas. O primeiro grito ouviu-se nas ruas, depois nas universidades e agora, por fim, em alguns corredores do poder. O silêncio tornou-se indesculpável e, aqueles que negaram as evidências durante demasiado tempo, forçam agora sorrisos enrascados para ficar bem na fotografia deste momento de maior vergonha da nossa história recente.
Por muito que os mais velhos, os que ainda mandam, não quisessem ver, juristas internacionais, a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch, multiplos relatores das Nações Unidas, grandes académicos do Holocausto, entre outros, já não se coíbem de afirmar que o que se passa em Gaza é a destruição sistemática de um povo, é limpeza étnica, é genocídio. Um dos mais prestigiados jornais neerlandeses, o NRC, publicou, a 14 de maio, uma reportagem onde analisava vários artigos académicos recentes do Journal of Genocide Research — a principal revista científica da área — concluindo que todos os oito académicos internacionais especializados em genocídio, que participaram nesses artigos, incluindo o editor-chefe da publicação, reconhecem em Gaza um genocídio, ou pelo menos, violência genocida. Também nessa reportagem, a presidente da International Association of Genocide Scholars, Melanie O’Brien, afirmou que o bloqueio deliberado de comida, água, abrigo e saneamento por parte de Israel constitui genocídio. O Tribunal Internacional de Justiça, há mais de um ano, alertou para a possibilidade plausível do que hoje já não se diz apenas entredentes, obrigando Israel a tomar medidas para o evitar e permitir o acesso de ajuda humanitária. Mais recentemente, o Tribunal Penal Internacional emitiu pedidos de mandados de captura para líderes de ambos os lados do conflito, por suspeita de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Em ambos os casos, Israel ignorou as decisões, por não reconhecer autoridade a nenhum destes tribunais. E hoje, na Europa, ainda que com cautela, começamos finalmente a ouvir líderes europeus prometer consequências para o atual governo israelita.
Neste ponto, importa ser ainda mais rigoroso. A condenação pelos crimes de guerra sistemáticos cometidos não é um ataque ao povo de Israel, nem pode ser uma generalização xenófoba e abusiva. O que se aponta, e deve ser apontado, são as ações concretas de um governo e de uma máquina militar, sobejamente documentadas até pelos próprios soldados no terreno, que, como disse anteriormente, já são objeto de processos judiciais em tribunais internacionais. Da mesma forma que todos os palestinianos não são terroristas do Hamas, o sofrimento em Gaza não pode continuar a ser abafado pela confusão deliberada entre a crítica justa e urgente a um Estado e o preconceito contra um povo. A dignidade de todas as vítimas, de ambos os lados, exige essa clareza.
Os números já não nos cabem na compreensão. Depois de 7 de outubro de 2023, em que cerca de 1200 pessoas foram mortas pelo Hamas, o horror ganhou uma nova dimensão impensável do outro lado do muro, com mais de 53 mil palestinianos assassinados, dos quais 17 mil são crianças, dezenas de milhares de feridos, milhares de novos amputados, cerca de meio milhão de pessoas à beira da fome extrema, a quase totalidade de hospitais e escolas destruídos (94% dos hospitais foram danificados ou destruídos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde), a ajuda humanitária bloqueada, saqueada, outras vezes bombardeada. Quase 300 funcionários da ONU mortos e dezenas de outros detidos ou impedidos de entrar na Faixa de Gaza, de acordo com os mais recentes UNRWA Situation Reports, em consequência da aprovação, pela Knesset, de leis que bloqueiam o acesso de novos elementos da equipa internacional desta agência das Nações Unidas. Sem estas imagens, a devastação seria apenas uma abstração estatística. Com elas, a realidade ganha osso, ganha carne, ganha rosto.
Fisk, que faleceu em 2020, dizia com aquele peso nas palavras de quem já testemunhou mais do que se deveria poder aguentar, que, se as pessoas vissem o que ele viu, nunca mais apoiariam uma guerra na vida. Nunca sentiremos verdadeiramente a dor dos outros, mas temos a obrigação humanista de partilhar, pelo menos, o seu pedido de ajuda. A imprensa tem o dever de mostrar tudo, por mais violento e difícil que seja. Não servirá para alimentar o horror, mas para que este nunca mais se torne invisível.
Nota: Um enorme agradecimento pela paciência e leitura à Joana Ricarte, professora e investigadora na Universidade de Coimbra, especialista em Relações Internacionais, com foco em estudos da paz, identidades e conflitos, extremismo quotidiano e (in)segurança ontológica, e autora do livro The Impact of Protracted Peace Processes on Identities in Conflict: the case of Israel and Palestine (2023).
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