A recente aposta europeia na dinamização da indústria de defesa oferece uma nova possibilidade de dinamização de um setor económico que, apesar de não ser muito conhecido, ainda tem um grande impacto na criação de riqueza em Portugal.
Face à evolução da geopolítica internacional e com a possibilidade de os EUA reverem o seu compromisso de defender os seus aliados da NATO, a Europa prepara agora um plano de rearmamento que irá envolver um total de 800 mil milhões de euros de financiamento.
Desse total, 150 mil milhões serão atribuídos em forma de empréstimos com taxas de juro reduzidas e servirão para a aquisição de armamento avançado e munições.
Esta parte do programa contará com o apoio do Banco Europeu de Investimento, que já enviou um comunicado a todos os países da União Europeia que são seus acionistas, no qual se propôs permitir investimentos em produtos de defesa não letais, conceder empréstimos ilimitados a empresas de defesa e motivar os bancos comerciais a juntarem-se no empréstimo de dinheiro a esta indústria.
Os restantes 650 mil milhões de euros serão atribuídos através de isenções fiscais em investimentos em defesa.
Uma verba equivalente a quase três vezes o PIB português e que está a mobilizar muitas empresas europeias para este tipo de indústria. Portugal não é exceção e muitas das empresas nacionais ligadas a este setor terão agora oportunidade de reforçar os seus investimentos.
Segundo os dados mais recentes, Portugal tem 363 empresas de defesa e 61 entidades na área de formação ou de investigação e desenvolvimento deste setor, que geram um volume de negócios da ordem dos 4,6 mil milhões de euros e dão emprego a quase 40 mil pessoas.
Do total da faturação, apenas 1,85 mil milhões são trabalhos para o setor da defesa, enquanto os restantes 2,75 mil milhões são para empresas de outros setores.
Cerca de 40% da atividade é dirigida aos mercados externos, tendo este setor um peso de 2,5% nas nossas exportações. Os EUA são o maior mercado, com um total de 364 milhões de euros de compras à nossa indústria de defesa, um valor muito perto do da Alemanha, que importa de Portugal 325,8 mil milhões de euros de bens e serviços deste setor.
França é o nosso terceiro mercado externo, com 250,3 milhões de euros, seguindo-se a Espanha, 164,4 milhões de euros, e o Reino Unido, 136 milhões de euros.
A indústria de defesa tem ainda a vantagem de criar, em termos económicos, mais riqueza, pois consegue um maior valor acrescentado bruto por trabalhador do que a média da restante economia, a diferença é de 33,6 mil euros para 28,9 mil euros. Além disso, tem 6,1% da sua mão de obra afeta a investigação e desenvolvimento, enquanto nas restantes empresas esta percentagem não vai além dos 0,8%. Das 424 entidades nacionais deste setor, 59% são empresas de serviços, 27% de indústria, 9% de investigação e 5% de formação.
O programa ReArm Europe irá, entretanto, mudar de nome para Readiness 2030 por sugestão de Espanha e Itália, que argumentaram que a designação poderia ser demasiado belicista e corria o risco de ter outras interpretações.
As ações da empresa alemã Rheinmetall subiram 120% desde o início deste ano e o seu valor em bolsa ultrapassou o do gigante automóvel VW
“Acredito que o termo ReArm Europe é enganador. Nós somos chamados a reforçar as nossas capacidades de defesa, mas isso não significa que iremos comprar armamento de uma forma trivial”, disse Giorgia Meloni, primeira-ministra italiana.
Já Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol, defendeu que o termo “rearmamento” é “uma abordagem incompleta que pode ser explicada sob um tema muito mais amplo, que é a segurança”.
O plano europeu tem ainda o objetivo de que os países europeus comprem cada vez mais equipamento dentro da própria Europa, criando dinamismo industrial e, desta forma, tentando revitalizar este setor. Além disso, pretende-se que as compras possam ser feitas em conjunto por todos os países, utilizando uma estratégia semelhante à que foi usada na aquisição de vacinas durante a pandemia, que, devido à maior dimensão das encomendas, gerou reduções substanciais nos custos.
Mais orçamento
Em 2023, a despesa do Estado português na área da defesa rondava os 4,18 mil milhões de euros e, em meados do ano passado, Luís Montenegro garantiu que pretendia que em 2029 o gasto estatal em defesa atingisse os 2% do PIB, o equivalente a seis mil milhões de euros.
“Estamos a falar de um esforço acrescido correspondente a cerca de 400 milhões de euros por ano”, disse o primeiro-ministro.
Na mesma ocasião, Luís Montenegro garantiu que este investimento não iria recair apenas na compra de equipamento, mas também no apoio à criação de uma indústria de defesa em Portugal.
“Estamos muito empenhados no Governo em fazer com que a nossa indústria de defesa, nas suas mais variadas dimensões, possa ser uma componente importante do contributo que vamos dar. Ou seja, que este dinheiro possa ser despendido na aquisição de material na nossa indústria”, explicou, dando como exemplos a indústria de armamento, de material militar, de desenvolvimento dos drones, de componentes e até a indústria têxtil, para efeitos de fardamentos.
Com as novas diretivas europeias, o governo português terá de aumentar consideravelmente esta verba dos tais seis mil milhões anunciados por Luís Montenegro para dez mil milhões de forma a atingir os 3,5% do PIB, como pretende o plano europeu.
Um estudo do Instituto Kiel, na Alemanha, mostra que a mudança de 2% para 3,5% do PIB em gastos de defesa poderá ter um grande impacto na economia, mas apenas se essa verba for suportada por empréstimos financeiros e não por uma subida de impostos.
O instituto diz que este aumento do montante a investir em defesa poderá ter um impacto económico positivo no PIB europeu entre os 0,9% e os 1,5%, caso o financiamento seja feito através de apoios garantidos por dívida pública. De outra forma, se os Estados-membros aumentarem os impostos para financiar o programa, o impacto pode até ser negativo.
No mesmo documento, é sugerido que exista, de forma coordenada, uma cada vez maior contratação intraeuropeia de equipamento militar, pois atualmente a Europa continua depender em 80% de terceiros na aquisição de material de defesa.
Um aumento de 1% do PIB na despesa militar pode fazer crescer a produtividade do país em 0,25%, segundo um estudo do Instituto Keil
O Instituto Kiel defende ainda que haja um maior incentivo para criar uma cadeia de pequenos fornecedores que desenvolvem tecnologias que poderão ter múltiplas aplicações, o que irá “criar um efeito de arrasto” no aparecimento de mais empresas privadas a investir em defesa.
“As aplicações militares são alguns dos melhores exemplos de pesquisa e desenvolvimento do setor público. E existe uma clara demonstração de efeitos de arrasto deste investimento ao setor privado. Uma subida de 1% do PIB na despesa militar pode, a longo prazo, aumentar a produtividade em 0,25%, através de investigação e desenvolvimento”, explica o relatório.
Por fim, no mesmo documento é emitida uma espécie de alerta dizendo que não basta investir nem definir objetivos de investimento, pois o mais importante é estabelecer metas de custo-benefício de longo prazo, de forma a que os equipamentos que os governos irão contratar tenham a mais alta qualidade com o menor custo possível.
Subidas em bolsa
Os receios de que os EUA renunciem ao seu compromisso com a NATO colocaram as ações do setor de defesa da Europa numa trajetória ascendente. A empresa alemã Rheinmetall, que fabrica os famosos tanques Leopard, é talvez o melhor exemplo. Desde o início do ano, as ações desta empresa já subiram 120% e o seu valor em bolsa atingiu, na segunda quinzena de março, os 57 mil milhões de euros, ultrapassando o gigante alemão do setor automóvel Volkswagen.
Segundo o jornal alemão Handelsblatt, a empresa tem vindo a somar cada vez mais encomendas ao longo dos últimos meses. Por exemplo, só do governo italiano recebeu uma proposta para a aquisição de 350 veículos blindados Lynx e mais 200 tanques Phanter, que serão entregues ao longo dos próximos 15 anos.
Outra das empresas que mais se têm valorizado é a britânica Rolls-Royce, que fabrica motores a jato para a aviação. Em 2023, menos de um terço das suas receitas eram provenientes da defesa, ou seja, menos de cinco mil milhões de euros. O seu negócio principal era a venda de motores para a aviação comercial. No final de 2024, as encomendas em defesa ultrapassaram os dez mil milhões de euros.
Depois de ter passado por um período difícil, devido à pandemia e à consequente paralisação das viagens aéreas, o que resultou em menos encomendas para a empresa, a Rolls-Royce é atualmente uma das empresas que mais se valorizaram na bolsa de Londres, subindo 105% desde março do ano passado.
As ações de defesa são sensíveis a eventos geopolíticos e às ameaças de conflito. Basta olhar para a História recente. Aumentaram quando a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022 e voltaram a subir quando o Hamas atacou Israel em outubro do ano seguinte.
“As empresas de defesa não reagem ao ciclo macroeconómico. Reagem à geopolítica. E estes fenómenos não são cíclicos. Não se conseguem prever a cada quatro ou seis anos, como se faz com as análises económicas”, explica Nicolas Owens, analista de mercados da Morningstar.
Na manhã seguinte ao ataque do Hamas a Israel, a grande maioria das empresas de armamento dos EUA e da Europa disparou mais de 10% nas bolsas em apenas quatro horas.
Neste momento, além das guerras e da instabilidade política, outro fator se juntou à equação para que as ações destas empresas continuem a subir. Como explica Nicolas Owens, “existe um novo comprador em cena, os governos europeus, que estão a aumentar os seus gastos em defesa”.
Também a francesa Thales, a maior empresa de equipamento eletrónico para a indústria de defesa, disparou 41% em bolsa apenas nos dois primeiros meses e meio deste ano. A empresa já fechou 2024 com vendas de 20 mil milhões de euros e lucros de 2,35 mil milhões de euros, apesar de estar a perder dinheiro na sua divisão aeroespacial.
“A instabilidade geopolítica é hoje uma constante e, em grande medida, está a alimentar os investimentos feitos pelos países na sua defesa”, diz Patrice Caine, CEO da Thales.
Existem outras grandes empresas a beneficiar desta tendência, como a BAE Systems, do Reino Unido, a Leonardo, de Itália, ou a SAAB, da Suécia. E as ações poderão continuar a subir, como constata analista financeira Loredana Muharremi: “O montante total da despesa em defesa ainda é incerto. E não sabemos que parte dos valores que estão a ser anunciados irá traduzir-se em encomendas reais. À medida que esses detalhes se tornem mais claros, poderemos ver novas revisões nos preços das ações da indústria de defesa.”
Mas não é só de grandes empresas que vive este setor. Com as novas táticas de combate, com recurso a equipamentos cada vez mais sofisticados, começam a surgir pequenas startups que ganham expressão numa indústria que anteriormente era dominada pelos gigantes já estabelecidos.
A Helsing é talvez o melhor exemplo destes jovens que começam a descobrir novas formas de interagir nos teatros de guerra.
Fundada em 2021, na Alemanha, a empresa tem menos de quatro anos de atividade, mas já vale mais de cinco mil milhões de euros.
O seu negócio está focado no desenvolvimento de software para armamento, veículos e estratégia militar, mas são as suas armas autónomas que estão a ter um grande impacto na guerra na Ucrânia, que muitos consideram o conflito que trouxe a Inteligência Artificial para o campo de batalha.
No final do ano passado, lançaram um novo drone de ataque, denominado HX-2, que se tem mostrado muito eficaz em várias situações de combate e estão ainda a preparar novos equipamentos que serão usados como escudos contrainvasão ao longo das fronteiras do país e contra forças terrestres hostis.
O drone pode ser produzido em massa a um custo reduzido, tem um alcance até 100 quilómetros e pode também bloquear aparelhos inimigos de guerra eletrónica, devido aos sofisticados recursos de Inteligência Artificial que incorpora.
Em fevereiro, a Helsing anunciou uma parceria com outra startup francesa, a Mistral – considerada a concorrente europeia da OpenAI e avaliada em 5,8 mil milhões de euros – para, juntas, desenvolverem sistemas “de defesa para a Europa”.
A ideia é concentrar esforços no desenvolvimento de modelos VLA – vision-language-action –, um setor emergente na Inteligência Artificial em que se misturam perceções visuais com entendimento de linguagem e respostas para robótica. Estes modelos podem ser integrados nas plataformas de defesa e suportar melhor os processos de tomada de decisão, de perceção do ambiente e de comunicação com os operadores. O novo orçamento europeu para a defesa abre agora portas para que outras empresas como a Helsing e a Mistral possam desenvolver os seus produtos “made in EU”. E
3,5%
Percentagem do PIB
Que cada orçamento dos Estados-membros da União Europeia terá de reservar para a defesa
2,5%
Exportações
Peso das vendas da indústria de defesa nacional nas exportações portuguesas
€10
Mil milhões
Montante que o governo português poderá ter de dedicar ao orçamento da defesa ao longo dos próximos anos para cumprir as indicações da União Europeia
€800
Mil milhões
Verba prevista no plano da UE para reforçar a defesa europeia. Deste total, 150 mil milhões por financiamento bancário com juros reduzidos e os restantes 650 milhões através de bonificação fiscal