A 16 de outubro último, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman foi calorosamente recebido em Bruxelas por Ursula von der Leyen e pelos chefes de Estado e de governo dos países da União Europeia, para a primeira cimeira UE-Golfo. Mas, naquele mesmo dia, um “tribunal especial” controlado pela monarquia absolutista de Riade condenou o cartoonista saudita Mohammed al-Ghamdi a 29 anos de prisão, numa sentença irrecorrível. Nada que perturbasse o bom andamento dos trabalhos de tal cimeira.

E que crimes, afinal, cometeu Al-Ghamdi, que se assina Al Hazza nas suas ilustrações, para tão brutal punição? “Ofensas” ao rei Salman e ao príncipe herdeiro Bin Salman, acrescidas de “mensagens hostis” ao regime ditatorial saudita, sentenciou o referido “tribunal especial”.

Este talvez seja o caso mais grave que a Cartooning for Peace (CFP), uma ONG que monitoriza pelo mundo fora e denuncia os ataques à liberdade criativa e de expressão dos cartoonistas, tem agora em mãos. O trabalho de vigilância, porém, é crescente, como o ilustram os oito casos que a VISÃO aqui apresenta, incluindo o de Al-Ghamdi – desde um rapto intimidatório, no Quénia, prisões preventivas sem prazo, no Egito, e sentenças de cadeia por “propaganda contra o Estado”, no Irão, a julgamentos intermináveis, na Turquia, e ao impune bloqueio de um site de uma newsmagazine, na Índia.

Recentemente, a CFP celebrou um acordo com o Global Media Defense Fund, dependente da UNESCO, para a produção, até agosto de 2026, de um relatório que destacará e documentará, a nível global, casos de ameaças, ataques e de punições judiciais sobre cartoonistas e a sua liberdade de expressão. Nunca como hoje, dir-se-ia, os regimes ditatoriais, ou tendencialmente autocratas, tiveram as garras tão afiadas contra os cartoonistas e as suas incómodas sátiras.

EUA

A coragem de satirizar o próprio “patrão”

A cartoonista Ann Telnaes, que trabalhava há 17 anos para o The Washington Post, desenhou, para publicação, Jeff Bezos, dono do jornal, ajoelhado, com um saco de dólares, diante de uma estátua de Trump. Cartoon censurado e relação acabada

Ann Telnaes tem no currículo um Pulitzer, arrecadado na categoria da caricatura editorial. Mas nem a conquista desse prestigiado prémio impediu que a ligação da cartoonista norte-americana ao The Washington Post terminasse a 4 de janeiro último, ao fim de 17 anos.

É certo que Ann Telnaes testou ao máximo a liberdade de expressão agora ali em vigor. Naquele dia, submeteu para publicação no jornal um cartoon em que Jeff Bezos, o dono do The Washington Post, está ajoelhado, com um saco de dólares, diante de uma estátua de Donald Trump.

Sabia-se que Bezos tinha doado um milhão de dólares para financiar a tomada de posse, a 20 de janeiro, do Presidente eleito, Trump. No cartoon, em conjunto com Bezos, e também a oferecer, de joelhos, sacos de dinheiro ao novo líder da Casa Branca, aparecem outros financiadores da cerimónia de posse – Mark Zuckerberg (Meta) e Sam Altman (OpenAI), além de Patrick Soon-Shiong (proprietário do Los Angeles Times) e até do rato Mickey, que na caricatura representa a Walt Disney Company, dona da cadeia de TV ABC News.

A mensagem do cartoon era clara: um grupo de bajuladores bilionários procurava comprar benesses ao então Presidente eleito. E, pela primeira e última vez, Ann Telnaes viu o The Washington Post recusar-lhe a publicação de um trabalho.

Aviso A cartoonista Ann Telnaes diz ter sido alvo, no The Washington Post, de uma “censura sintomática de um declínio cada vez mais acentuado na liberdade e independência da imprensa nos EUA” Ann Telnaes(EUA), Cartooning for Peace

Nos anos anteriores, conta a cartoonista, “esboços foram ocasionalmente rejeitados ou revisões solicitadas, mas isso nunca se relacionava com a mensagem que o cartoon pretendia passar”. Na última caricatura que desenhou para aquele jornal, Ann Telnaes diz ter sido alvo de uma “censura sem precedentes e sintomática de um declínio cada vez mais acentuado na liberdade e independência da imprensa nos EUA, o que deve alertar para o que isso pressagia em termos de respeito pelas regras do jogo democrático”.

A quem lhe pergunte se não foi deselegante, no mínimo, satirizar o próprio “patrão”, responde: “Estamos a falar de órgãos de comunicação social que têm deveres públicos e que são obrigados a nutrir uma imprensa livre numa democracia. E os donos dessas organizações são responsáveis por salvaguardar essa imprensa livre.”

Na altura, quando questionado sobre o caso, o The Washington Post negou qualquer censura e alegou que a abordagem do assunto – a aproximação de bilionários da tecnologia e dos média a Trump – se estava a tornar “repetitiva” nas páginas do jornal. Já a Cartooning for Peace saudou a “determinação” de Ann Telnaes (que por iniciativa própria logo se desvinculou do The Washington Post) e secundou-a na preocupação com um caso de censura que “muda a situação e representa um perigo para a liberdade de imprensa”. Mas a cartoonista garante que vai continuar o seu trabalho de “responsabilização dos poderosos”. Porque “a democracia morre na escuridão”.

TURQUIA

Ter graça e arriscar três anos de cadeia

No confinamento causado pela Covid-19, a cartoonista Zehra Ömerogˇlu fez uma ilustração, a que chamou de “sexo e pandemia”, para divertir e pôr a rir quem a visse. Resultado: um inferno judicial que dura até hoje

Estamos em 2020, em pleno confinamento provocado pela pandemia de Covid-19, e a cartoonista turca Zehra Ömeroğlu precisava de se descontrair. Nada melhor para isso do que fazer uma ilustração humorística. Além do mais, naqueles dias incertos e assustadores, iria propiciar um momento de divertimento e riso aos apreciadores dos seus cartoons. “Sexo e pandemia” foi o título que deu à caricatura publicada em novembro daquele ano na revista satírica semanal turca LeMan. No desenho, vê-se um homem com o rosto encostado às nádegas de uma mulher e a dizer: “Ufa! Pelo menos não perdi o paladar e o olfato!”

À conta deste cartoon, que apenas pretendia oferecer a quem o visse uma pausa de boa disposição nos depressivos tempos da pandemia, Zehra Ömeroğlu viu-se envolvida num interminável inferno judicial, que dura há mais de quatro anos. Tudo, para ela, ficou no fio da navalha: a carreira, a sua segurança e, no fim, o risco de ser condenada a três anos de prisão.

A cartoonista foi logo processada pelo Ministério Público de Istambul, que só em outubro de 2022, quase dois anos após a publicação da caricatura, deduziu uma acusação contra a artista, pelo crime de “obscenidade”. Nas contra-alegações ao libelo acusatório, o seu advogado, além de insistir no óbvio objetivo lúdico do desenho de Zehra Ömeroğlu, sublinhou que, “de acordo com decisões do Tribunal Constitucional, a presença de elementos eróticos” em obras artísticas “não é um crime”.

“Ousadia” Os cartoons de Zehra Ömeroğlu são publicados em numerosos jornais e revistas, dentro e fora da Turquia, e já deram lugar a três livros. Ela aborda a sexualidade feminina e os tabus sexuais, para gáudio dos seus fãs e fúria do regime de Erdogan

O trabalho da cartoonista turca é conhecido por se centrar na sexualidade feminina, nos tabus sexuais e na complexidade da psicologia humana, sempre com mensagens que também pretendem divertir. Os seus cartoons são publicados em numerosos jornais e revistas, dentro e fora da Turquia, e já deram lugar à edição de três livros.

De volta ao caso em concreto, a caricatura que levou Zehra Ömeroğlu a ser processada e acusada pelo Ministério Público de Istambul foi publicada numa revista satírica obviamente para adultos. E, no entanto, o procurador responsável por sustentar a tese da acusação em julgamento pediu ao juiz, e conseguiu, que fosse solicitado um parecer ao Conselho para a Proteção de Menores de Publicações Obscenas, dependente do Ministério turco da Família. Tal parecer foi divulgado numa audiência do julgamento em março de 2024 e, claro, não ajudou em nada a cartoonista: invocando um artigo de uma lei do país, aquele conselho considerou que a caricatura em causa “ofende a decência e a modéstia públicas, é contrário à moralidade geral”, e que “desperta e explora desejos sexuais”. Tudo “efeitos nocivos” de que as crianças devem ser protegidas, quando a ilustração de Zehra Ömeroğlu, como é evidente, não se lhes dirigia.

Depois, o juiz, numa audiência em setembro passado, determinou que um painel independente de especialistas em Belas-Artes e Literatura produzisse um segundo relatório, este de análise artística à caricatura, em contraponto ao primeiro, que a considerou “obscena”. Mas, em fevereiro último, quando a cartoonista e o seu advogado esperavam conhecer, em mais uma sessão do julgamento, o teor daquele parecer “artístico”, o juiz informou-os de que o documento não fora enviado ao tribunal, agendando nova audiência para junho próximo.

O julgamento arrasta-se e ainda está na 1.ª instância – com crescentes danos pessoais e profissionais para Zehra Ömeroğlu. Comenta a Cartooning for Peace: “Estes adiamentos constantes, que condenamos, são uma prática regular das autoridades turcas para restringir a liberdade de expressão.”

EGITO

Prisão preventiva infinita

Fez cartoons sobre a elevada dívida externa do país e os frequentes apagões elétricos. Demasiado para a ditadura militar do general Al-Sisi, que aplicou a Ashraf Omar o corretivo da prisão contínua sem julgamento

Em janeiro último, agentes da Procuradoria egípcia de Segurança do Estado entraram na casa de Nada Mougheeth e detiveram-na. Um mês antes, Nada, que é mulher do cartoonista Ashraf Omar, que está em prisão preventiva desde julho de 2024, tinha dado uma entrevista ao jornalista Ahmed Siraj, do site de notícias ZatMasr, na qual denunciou que, na altura da detenção do marido, também na residência do casal, haviam sido apreendidos objetos pessoais e quantias em dinheiro, sem que isso fosse registado no relatório da ação policial.

Na ditadura militar, liderada pelo general Al-Sisi, que hoje governa o Egito, não se admitem tais acusações, apesar de a corrupção generalizada ser apontada por diversas entidades internacionais. Nada Mougheeth seria libertada sob caução e acusações pesadas da Procuradoria de Segurança do Estado: “ligação a um grupo terrorista” e “disseminação de notícias falsas”. Já Ahmed Siraj, o jornalista que a entrevistou, ficou em prisão preventiva, acusado dos mesmos delitos.

Agora, Nada Mougheeth está altamente condicionada nas suas movimentações para lutar pela libertação do marido. Ashraf Omar fazia os seus cartoons para o site de notícias Al-Manassa. Antes de ser preso, as suas ilustrações humorísticas visaram a elevada dívida externa do Egito e os frequentes apagões elétricos no país.

Para a ditadura do general Al-Sisi, foi longe demais. Após ser preso, a mulher, a família e o seu advogado não souberam do paradeiro de Ashraf Omar durante dois dias. Há alegações de que, nesse período, o cartoonista foi espancado e ameaçado de tortura com eletrocussão por agentes da Procuradoria de Segurança do Estado. Num interrogatório de seis horas, ser-lhe-ia perguntado se, com os seus cartoons, tencionava incitar uma revolta popular.

Alarme Várias ONG assinaram uma petição que rejeita as “acusações criminais infundadas” contra Ashraf Omar e que pede a sua “libertação imediata” 

Para o advogado Khaled Ali, não foram surpresa nenhuma as acusações atribuídas ao seu constituinte Ashraf Omar, sem apresentação de provas: lá estavam a “ligação a grupo terrorista”, e a “disseminação de rumores, notícias e informações falsos”, acrescidas de “abuso de utilização dos média e das redes sociais”. Mas o que agora preocupa o defensor do cartoonista são as sucessivas extensões por mais 45 dias da prisão preventiva de Ashraf Omar, depois de ultrapassado o limite legal para tal tipo de reclusão. E Nada Mougheeth apenas pode fazer breves visitas de meia hora, uma vez por mês, ao marido, na cadeia de Ramadan.

A Human Rights Watch denuncia as “exacerbadas práticas abusivas de prisão preventiva” pelas autoridades egípcias, que constituem “violações flagrantes do devido processo legal”. Já Sarah Leah Whitson, diretora executiva da DAWN, a ONG fundada por Jamal Khashoggi, jornalista saudita assassinado em outubro de 2018, afirma que “a prisão contínua de Ashraf Omar diz tudo o que é preciso saber sobre a liberdade de expressão no Egito”.

A Cartooning for Peace diz-se “alarmada com a extensão da prisão preventiva” do cartoonista egípcio e a “ausência de qualquer garantia de um julgamento justo”, e assinou com outras organizações uma petição que rejeita as “acusações criminais infundadas” que o visam e que pede a sua “libertação imediata”. Mas aposta-se que o general Al-Sisi fez questão de ignorar tais críticas e apelos.

ÍNDIA

Bloquear um site? É fácil

Uma caricatura mordaz que Hasif Khan fez do primeiro-ministro, Narendra Modi, levou à censura do site da revista Vikatan, um título quase centenário da imprensa do país

Na noite de 15 de fevereiro passado, os editores e jornalistas que estavam na redação da revista Vikatan, um título quase centenário da imprensa indiana (foi fundado em 1928) e sediado em Chennai, a capital do estado de Tamil Nadu, foram tomados pela ansiedade. O tráfego do seu site caíra a pique, de forma abrupta.

Os técnicos informáticos da revista tentaram encontrar respostas para a situação, mas não as obtiveram. A explicação apenas surgiria no dia seguinte, e era uma estreia para a Vikatan, alvo de numerosos processos judiciais, em resultado da sua conduta editorial de afiada crítica política e social. O site tinha sido bloqueado, em grande parte da Índia, pelo Ministério da Informação e Radiodifusão do governo central, de Nova Deli, sem qualquer notificação prévia.

Quando chegou, a notificação oficial remetia para a ilustração de capa da edição de 10 de fevereiro da extensão de marca digital Vikatan Plus, em que o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, aparece algemado de mãos e pés, sentado ao lado do Presidente Donald Trump. Aquele cartoon, desenhado por Hasif Khan, chefe da secção de cartoonistas da Vikatan, apenas refletia a indignação da sociedade, quando se soube que centenas de indianos, homens, mulheres e crianças, deportados dos EUA, tinham feito a viagem, a 5 de fevereiro, acorrentados num avião militar norte-americano, o que não suscitou qualquer comentário do governo de Modi.

Estreia Pela sua linha editorial de afiada crítica política e social, a newsmagazine Vikatan é alvo frequente de processos judiciais, mas a censura do seu site, pelo governo de Modi, apanhou todos de surpresa

Para fundamentar a censura ao site da revista, na sequência da publicação do cartoon de Hasif Khan, o governo de Nova Deli deitou mão a uma lei dirigida a sites noticiosos e redes sociais que, alegou, lhe permite “bloquear o acesso à informação para proteger a segurança nacional e as relações exteriores amistosas”. A Vikatan contestou, junto do Tribunal Superior estadual de Tamil Nadu, a ordem do Ministério da Informação e Radiodifusão de bloqueio do seu site, argumentando o advogado da revista que a ilustração de Hasif Khan constituía “uma forma de expressão artística protegida pela liberdade de expressão e jornalística”, e que a medida governamental, na sua desproporção, também feria os direitos económico-financeiros da newsmagazine.

A 6 de março passado, aquele Tribunal Superior emitiu uma ordem provisória e salomónica, determinando que o Ministério da Informação e Radiodifusão desbloqueasse o site da revista, sob a condição de a Vikatan remover a ilustração de Hasif Khan, o que a newsmagazine fez.

Mas os juízes daquela instância ainda têm de decidir quem tem ganho de causa: se a liberdade de expressão e jornalística, consignada na Constituição do país, argumentada pela Vikatan e pelo seu cartoonista, o que implica a republicação da ilustração de Hasif Khan, se o Ministério da Informação e Radiodifusão, com a lei que invoca. De qualquer forma, a Repórteres Sem Fronteiras aponta que, sob a governação de Modi (que a 17 de março anunciou ter aberto uma conta na Truth Social, a rede social fundada pelo seu “amigo” Trump, como lhe chama), foram concretizadas uma série de leis que dão ao executivo “um poder excessivo para regular os média, censurar informações e silenciar vozes oposicionistas”.

MALÁSIA

Cartoonista impenitente

Fahmi Reza é um velho conhecido da polícia e dos tribunais do estado de Sabá. O último processo que o visa, por ter satirizado um alto dirigente político, e pelo qual arrisca uma pena de prisão, agita o país

Por pouco, o cartoonista malaio Fahmi Reza não entrou em 2025 enclausurado numa cela de uma esquadra de polícia. O artista foi detido a 30 de dezembro, por ordem de um tribunal do estado de Sabá, e libertado sob caução no dia seguinte.

Fahmi Reza é um velho conhecido da polícia e dos tribunais de Sabá. Só desde março de 2021, à conta das suas caricaturas mordazes, a Cartooning for Peace contabiliza que o cartoonista malaio foi notificado por nove vezes para prestar declarações em esquadras da polícia, detido por três vezes, preso por quatro vezes e acusado por duas vezes. Em 2022, por exemplo, não teve pejo em desenhar um macaco ornamentado com vestes reais, numa sátira ao então rei, Abdullah de Pahang (a Malásia é uma monarquia constitucional). Todas as queixas que visam o cartoonista têm como base uma chamada Lei de Sedição, de… 1948.

Mas o cartoon pelo qual Fahmi Reza está agora a ser processado é, talvez, ainda mais afiado do que o do macaco com indumentária de rei. O cartoonista desenhou o novo governador do estado de Sabá, Musa Aman, com uma nota de 100 ringgits (a moeda malaia) presa entre os dentes. Fahmi Reza lembrava, assim, que Musa Aman, durante o seu mandato como ministro-chefe do governo estadual, de 2003 a 2018, fora acusado de corrupção, embora nunca tenha sido condenado.

Como? Todas as queixas que visam o cartoonista Fahmi Reza têm como base uma chamada Lei de Sedição, de 1948 – com 77 anos, portanto

O cartoon suscitou mais de 50 queixas por difamação de furiosos dirigentes do partido no poder no estado, a Coligação do Povo de Sabá. Alguns deles pugnam mesmo pela expulsão vitalícia de Fahmi Reza de Sabá.

Indiferente a tamanha indignação (e embora arrisque, em caso de condenação, uma pena até três anos de prisão), Fahmi Reza colocou o cartoon na sua conta no Instagram e, depois, foram feitos posters da ilustração satírica do governador Musa Aman, exibidos em várias cidades do estado, incluindo Kota Kinabalu, a capital. Por sinal, o cartoonista seria detido pela polícia, a 30 de dezembro, quando participava, em Kota Kinabalu, numa manifestação de centenas de estudantes e ativistas contra a nomeação para governador de Musa Aman e a corrupção em Sabá.

O caso ganhou dimensão nacional. Uma respeitada organização malaia de defesa dos direitos humanos, a Aliran, exigiu que sejam retiradas todas as acusações contra o cartoonista, porque os cidadãos, argumentou, têm “o direito constitucional de expressar pacificamente as suas preocupações sobre assuntos de interesse público, como Fahmi fez através da sua arte”. Também o primeiro-ministro, Anwar Ibrahim, do Partido da Justiça Popular, veio a público defender o cartoonista, dizendo que não deveria ser processado por causa do seu trabalho artístico, e que críticas ao governo e aos líderes políticos integram a liberdade de expressão. Mas organizações malaias de defesa dos direitos humanos aproveitaram a oportunidade para criticar o próprio chefe do governo, que ainda não cumpriu a promessa eleitoral que fez de revogar a legislação (como a Lei de Sedição, de 1948) que restringe a liberdade de expressão e sufoca o protesto.

A Cartooning for Peace acompanha as reivindicações e críticas daquelas organizações da sociedade civil malaia, sendo certo que Fahmi Reza, mesmo perante uma eventual condenação, não deixará nunca de desenhar as suas sátiras cortantes.

QUÉNIA

Dos cartoons ao rapto

O cartoonista Kibet Bull, também ativista nas redes sociais, e muito crítico do Presidente William Ruto, esteve 13 dias desaparecido – e os seus raptores continuam por identificar…

Suspirou-se de alívio, a 6 de janeiro último, na sede da Cartooning for Peace, em Paris. Naquele dia, chegou a notícia de que o cartoonista Kibet Bull, também ativista nas redes sociais, e muito crítico do Presidente queniano William Ruto, tinha sido solto pelos seus raptores, ainda hoje por identificar, embora haja fortes suspeitas de que fossem polícias dissimulados.

Kibet Bull estava desaparecido desde o dia 24 anterior, após encontrar-se na capital do país, Nairobi, com um senador da oposição, Okiya Omtatah. Ainda estudante, a 27 deveria viajar para Israel, para prosseguir a sua formação na universidade de Telavive, mas deixou de ser visto.

Nessa altura, num comunicado à imprensa, a East African Cartoonists Society (KATUNI) atribuiu o desaparecimento de Kibet Bull a um rapto, um de uma série que estava a visar oposicionistas do regime, sobretudo jovens que se destacavam nas redes sociais como ativistas. A KATUNI denunciava naquele comunicado um clima de intimidação sobre a liberdade de expressão e exigia que a polícia queniana fosse responsabilizada pelo desaparecimento do cartoonista e ativista político, enquanto as autoridades negavam qualquer envolvimento no caso. O certo, porém, é que, ainda antes de Kibet Bull desaparecer, a polícia fez uma investida à sua casa, em Nakuru, uma cidade a cerca de 150 km de Nairobi, numa tentativa frustrada de o prender.

Assustador “Mesmo durante os piores tempos da ditadura de Daniel Arap Moi, que devastou o Quénia de 1978 a 2002, os cartoonistas não eram alvos do Estado”, escreveu o jornalista Patrick Gathara sobre o caso de Kibet Bull

Na sequência dessa operação policial, Patrick Gathara, editor-chefe da The New Humanitarian, uma agência de notícias centrada em assuntos de direitos humanos, dedicou um editorial à perseguição de que Kibet Bull estava a ser vítima, escrevendo que “mesmo durante os piores tempos da ditadura de Daniel Arap Moi, que durou 24 anos e devastou o Quénia de 1978 a 2002, os cartoonistas não eram diretamente alvos do Estado”.

O número de raptos no país começou a crescer a partir do verão de 2024, quando milhares de jovens se manifestaram contra o aumento de impostos decretado pelo governo do Presidente William Ruto. A 26 de dezembro, dois dias depois do desaparecimento de Kibet Bull, a Comissão Nacional de Direitos Humanos do Quénia (KNCHR) mostrou-se alarmada com o fenómeno dos raptos em várias regiões do país, levados a cabo por indivíduos armados e não identificados. Até àquele dia, e desde junho, a KNCHR registou 82 casos de pessoas desaparecidas. Já Irungu Houghton, diretor-executivo da Amnistia Internacional no Quénia, denunciava casos claros de abuso de poder e de prisões ilegais, incluindo relatos de tortura. Sob toda esta pressão sobre o regime, surgiria a libertação de Kibet Bull pelos seus raptores.

Também o Presidente William Ruto viu-se obrigado, pela primeira vez, a vir a público reconhecer a existência de “ações excessivas e extrajudiciais” levadas a cabo por forças de segurança, embora sem as especificar. Já a Cartooning for Peace exige que o rapto de Kibet Bull seja por completo esclarecido, e manifesta receio pela vida do traumatizado cartoonista.

ARÁBIA SAUDITA

Mas ele matou alguém?

Por supostas “ofensas” ao rei, ao príncipe herdeiro e ao regime, Al Hazza viu ser-lhe imposta uma pena de 29 anos de prisão. E ninguém questiona Riade sobre o caso

Em outubro passado, quando esperava ser libertado após cumprir uma pena de prisão de seis anos, condenação justificada por cartoons seus considerados “ofensivos” para o rei saudita, Salman, e o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, o cartoonista Mohammed al-Ghamdi, que assina os seus trabalhos como Al Hazza, recebeu uma notícia devastadora. Enquanto estava preso, o seu processo tinha sido reaberto e revisto por um “tribunal especial”, que o condenou, numa sentença irrecorrível e com data desconhecida para a sua defesa e família, a mais 23 anos de cadeia.

Aquele “tribunal especial”, que decidiu agora condenar o cartoonista saudita a 29 anos de prisão, foi criado para lidar com casos de terrorismo. E, para lhe aumentar exponencialmente a pena, a coberto de uma suposta lei “antiterrorismo”, não mudou os crimes que já tinham sido atribuídos a Al-Ghamdi. Às referidas “ofensas” das suas ilustrações humorísticas ao rei Salman e, sobretudo, ao príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o líder de facto da monarquia autocrática saudita, somaram-se as “mensagens hostis” ao regime, em caricaturas “favoráveis” para o vizinho emirado absolutista do Catar.

Esta foi a armadilha que aprisionou Al-Ghamdi, aliás Al Hazza. Ele fazia os seus cartoons para o jornal diário catari Lusail, caricaturas que também colocava nas suas redes sociais, e seria preso pela polícia saudita em fevereiro de 2018, pouco tempo depois de o príncipe Mohammed bin Salman ordenar o corte completo de relações da Arábia Saudita com o Catar. Em causa estava o “inimigo” Irão, com o qual o emirado vizinho mantinha pontes políticas e económicas, além de tolerar a presença no seu território de dirigentes da Irmandade Muçulmana, movimento islâmico radical, considerado como “organização terrorista” pela monarquia de Riade.

O cenário político não podia ser mais desfavorável a Al-Ghamdi, que sempre denunciou estar a ser vítima de uma “fabricação de falsas acusações”. Mas só o facto de ter sido julgado por um “tribunal especial” criado para “casos de terrorismo” dizia tudo sobre a inevitabilidade da sua condenação.

Impunidade Al Hazza trabalhava para um diário do Catar e, por isso, cometeu um crime de “terrorismo”, sentenciou um “tribunal especial” saudita…

Durante meses, a família não soube do seu paradeiro e, quando por fim o localizou, na prisão de Dahban, em Jeddah, Al-Ghamdi disse-lhes que sofria maus-tratos frequentes e que não tinha acesso a cuidados médicos, apesar da degradação do seu estado de saúde, como depois divulgou a Sanad, organização saudita de defesa dos direitos humanos sediada em Londres. No entanto, não era infundada a esperança que o cartoonista alimentou de ser libertado em outubro último, após cumprir os seis anos de cadeia da única sentença que até ali ouvira. É que, em janeiro de 2021, o príncipe herdeiro saudita e o emir do Catar, Tamim Al-Thani, depois de três anos de zanga, selaram com um abraço, em Riade, a normalização de todas as relações, na sequência de uma bem-sucedida intermediação de Washington e do Kuwait, interessados no isolamento do Irão.

Mas o príncipe Mohammed bin Salman não é conhecido por ser dado a perdões – não se livra, por exemplo, da suspeita de ter sido o mandante do assassínio, em outubro de 2018, do jornalista saudita Jamal Khashoggi, opositor do regime. Quanto à devastadora pena extra de mais 23 anos de prisão imposta a Al-Ghamdi, a Sanad denunciou que o caso do cartoonista “ilustra um clima perturbador em que ninguém está seguro”, até alguém que se torna um “alvo” apenas pelo seu trabalho artístico.

A Sanad insiste em pedir uma “ação internacional urgente para proteger a liberdade artística e os direitos humanos na Arábia Saudita”, na qual se inclua a “libertação imediata e incondicional” de Al-Ghamdi. Secundando este apelo, a Cartooning for Peace lembra que a Arábia Saudita está classificada na 166.ª posição, em 180, no mais recente índice mundial de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, e que, em 2024, o país tinha 24 jornalistas presos.

O certo, porém, é que a 16 de outubro último, o dia em que a Sanad e a Cartooning for Peace denunciaram a aplicação a Al-Ghamdi de mais 23 anos de prisão, o príncipe Mohammed bin Salman seria calorosamente recebido em Bruxelas por Ursula von der Leyen e pelos chefes de Estado e de governo dos países da União Europeia, para a primeira cimeira UE-Golfo. Não houve notícia de que o caso do cartoonista Al Hazza tenha sido ali sequer sussurrado.

IRÃO

Que “sorte”: só oito meses de prisão

Os tribunais do regime teocrático dos ayatollahs aproveitaram um cartoon de Atena Farghadani para punir todo o seu trabalho crítico com seis anos de cadeia. Mas um recurso, para surpresa geral, reduziu-lhe a pena

Veja-se a coragem da cartoonista Atena Farghadani: a 13 de abril de 2024 aproximou-se do palácio presidencial, em Teerão, e tentou exibir uma ilustração que tinha feito a criticar as desigualdades sociais na sociedade iraniana. Foi logo violentamente abordada por agentes à civil da chamada Guarda Revolucionária e presa.

Dali seguiu de imediato para a cadeia de Evin, na capital iraniana, famosa pelas suas degradantes condições prisionais. Os tribunais do regime teocrático dos ayatollahs foram rápidos a julgar Atena Farghadani – em junho seguinte seria condenada a seis anos de prisão, cinco dos quais por “insultar o sagrado” e um por “propaganda contra o Estado”. De forma clara, diz a Cartooning for Peace, a sentença puniu, por junto, os cartoons críticos feitos ao longo dos anos por Atena Farghadani.

“Pacote” Os seis anos de prisão a que, em 1.ª instância, um tribunal do regime teocrático iraniano condenou Farghadani punem todo o trabalho da cartoonista ao longo do tempo, considerou a Cartooning for Peace

Mas uma boa notícia, salvaguardando que se está no contexto da ditadura teocrática iraniana, chegou a 9 de dezembro último. Um recurso do advogado da cartoonista tinha sido parcialmente deferido. Conseguiu a absolvição de Atena Farghadani quanto à acusação de “insultar o sagrado”, com o tribunal de recurso a sentenciar a artista a oito meses de prisão, que então já tinha cumprido, por “propaganda contra o Estado”, devido ao cartoon sobre as desigualdades sociais que tentara exibir junto do palácio presidencial.

A Cartooning for Peace saudou, claro, a libertação de Atena Farghadani, mas alertou para a “necessidade de continuar a denunciar as injustiças desenfreadas” no Irão dos ayatollahs.

João Almeida fechou com autoridade a Volta ao País Basco e tornou-se o primeiro ciclista português a conquistar a camisola amarela nesta prestigiada corrida do calendário mundial, terminando de braços no ar, com a segunda vitória numa etapa.

No último dia da competição, a UAE-Emirates controlou sempre as operações, com o seu líder das Caldas da Rainha a assumir as despesas na cabeça do pelotão, na penúltima subida categorizada, perante as dificuldades sentidas pelos seus adversários mais próximos na classificação geral, Maximilian Schachmann (Soudal Quick-Step) e Florian Lipowitz (Red Bull-BORA-hansgrohe) – respetivamente, a 30 e 38 segundos de distância na partida.

Com a queda de Mattias Skjelmose (Lidl-Trek), a pouco mais de dez quilómetros da meta, numa estrada escorregadia, em virtude da chuva, abriu-se completamente a vitória na corrida, concluída com o triunfo da etapa, após bater ao sprint Eric Mas (Movistar).

O corredor espanhol, o único que conseguiu acompanhar o português nos últimos quilómetros, ainda perguntou ao camisola amarela se o deixaria cortar a linha de meta na frente, ao que ouviu como resposta um rotundo “não”. Era a Mas quem competia puxar mais na fuga, uma vez que o tempo ganho lhe permitiria ascender ao segundo lugar da prova (o que acabaria por acontecer) e a Almeida já não escaparia o triunfo final. E assim foi. Na reta da meta, o homem da UAE-Emirates não perdoou, fechando em beleza uma semana em que dominou em toda a linha nas montanhas do País Basco, sem dar hipóteses à concorrência, numa espécie de réplica do grande líder da equipa, Tadej Pogacar.

As diferenças na classificação espelham essa superiodade do ciclista de 26 anos. Eric Mas terminou com quase dois minutos de atraso (1m52s), seguindo-se o alemão Maximilian Schachmann, a 1m59s. É a primeira vez que um português vence a Volta ao País Basco e, antes dele, só outro ilustre da modalidade, o campeão do mundo Rui Costa, havia levado a bandeira nacional ao lugar mais alto do pódio, nestas corridas de uma semana do World Tour, quando venceu a Volta à Suíça, em três edições consecutivas (2012, 2013 e 2014). Ainda ao serviço da Deceuninck-Quick-Step, em 2021, Almeida também já havia conquistado uma prova do World Tour com este formato, no caso a Volta à Polónia.

“Estou muito contente. A equipa fez um trabalho perfeito, estou muito agradecido por tudo o que fizeram por mim, e venha a próxima”, declarou o “Bota Lume”, como também é conhecido entre a legião de fãs portugueses, que agora vai estar uns dias afastado das corridas até iniciar a preparação para a Volta a França, onde estará, pelo segundo ano consecutivo, com a missão de ajudar Pogacar.

Muito vento, coisas a voar, pessoas a deitarem-se no chão. Do alto dos autocarros da JJ Express é como se os turistas e os birmaneses endinheirados estivessem num primeiro andar, com as vistas a contribuírem para a viagem feliz prometida pelos dois jotas de joyous journey. Júlia Silva tinha escolhido um lugar à janela e estava entretida a observar as lojinhas da beira da estrada quando viu o terramoto. É assim mesmo que ela conta: “Eu não senti o terramoto, eu vi o terramoto.”

A viajante portuguesa saíra de Mandalay um dia mais cedo do que planeara inicialmente, rumo a Nyaungshwe, a pequena cidade de entrada no Inle Lake, onde esperava encontrar menos calor do que na antiga capital imperial. A região do grande lago, famosa pelas suas aldeias flutuantes e pelos pescadores equilibristas que usam uma perna para remar, ia ser a última etapa de quase três semanas em Myanmar (antiga Birmânia).

Rituais Shinbyu é uma cerimónia que celebra a entradana vida monástica. As mulheresda família levam oferendas e os jovens vão vestidos de príncipes

“Tive uma daquelas bênçãos do céu, porque o epicentro foi apenas a dez quilómetros de Mandalay”, observa Júlia, ao telefone, desde a Tailândia, onde por estes dias está a fazer mergulho.

Às 9h da manhã de sexta-feira, 28 de março, preparara-se para passar mais de oito horas enfiada num autocarro até Inle Lake. Desde o golpe de Estado de fevereiro de 2021, os estrangeiros só podem visitar quatro sítios no país – Yangon, Bagan, Mandalay e Inle Lake – por causa do conflito armado com vários grupos de rebeldes. Os comboios estão-lhes proibidos e só lhes é permitido andar nos autopullman da JJ Express, cujos motoristas se encarregam de ir mostrando os passaportes nos controlos na estrada.

A viagem climatizada corria como previsto: devagar, com várias paragens. Faltavam uns minutos para a 1h da tarde, estava quase na hora da pausa do almoço, quando um sismo de magnitude 7,7 atingiu a região central de Myanmar, devastando Mandalay, Naypyidaw (a capital) e outras cidades e povoações nas suas imediações, além de se fazer sentir nas vizinhas Tailândia e China. Hoje, a portuguesa sabe que provocou mais de 3 500 mortos, mais de cinco mil feridos e centenas de desaparecidos. No momento, pareceu-lhe coisa pouca.

“Primeiro, pensei: é a guerra”, recorda, “mas achei estranho porque não havia barulho, então concluí que era um tremor de terra. Ninguém disse nada, ficou tudo a ver as coisas pelo ar. O motorista manteve o autocarro parado uns cinco minutos, depois arrancou, fomos almoçar tranquilamente. Era a única turista e não se falou sobre o que tinha acontecido. Não liguei os dados do telemóvel, não me lembrei de ir à internet, não dei importância àquele tremorzinho de terra”.

Shwedagon Paya, em Yangon Este templo é um importante local de peregrinação para os birmaneses, pois guarda oito cabelos de Buda. A sua cúpula tem milhares de diamantes

Passadas umas três ou quatro horas, Júlia ligou-se finalmente à internet e o seu telefone começou a apitar com mensagens da família e dos amigos, a quererem saber se ela estava bem. Recebeu um WhatsApp do chefe de missão da embaixada portuguesa em Banguecoque, na Tailândia, que fora contactado pelo seu irmão, mas só teve noção da tragédia em Nyaungshwe, já de noite. As informações que chegavam de aldeias vizinhas e do centro do país eram assustadoras.

É a partir de Nyaungshwe que se visita a região do Inle Lake, um lago com cem quilómetros de comprimento e cinco de largura, passeando de barquinho entre as aldeias flutuantes, os ateliers de artesãos, as pequenas fábricas de charutos e o delicioso Mosteiro Nga Phe Kyaung, mais conhecido como “templo dos gatos saltadores”. Na manhã seguinte, a viajante portuguesa viu como os únicos quatro prédios altos da vila, todos de hotéis, dois deles fechados, tinham ganhado umas rachas preocupantes. Num café, contaram-lhe que o sismo derrubara centenas de casas de madeira e bambu construídas sobre palafitas no lago.

“Havia pelo menos cinco aldeias completamente destruídas, não quis fazer turismo, só queria ajudar alguém. Foi então que uma guia local me levou até à Bamboo Delight, onde estive a empacotar comida e água para distribuir de barco.”

A Bamboo Delight é a escola de culinária e restaurante de Ma Pu Sue, uma birmanesa que fundou a ONG Hand to Hand Charity, em 2013, para apoiar a comunidade e dar aulas a crianças no verão. Nesse primeiro dia, Júlia foi com os voluntários auxiliar os habitantes da aldeia Myaung Wa Gyi, onde tinham ficado danificadas 85 casas, logo no início do lago.

Sorrisos Toda a ajuda é pouca, mas será sempre bem recebida, sabe a birmanesa Ma Pu Sue, fundadora da ONG Hand to Hand Charity, aqui a distribuir água e comida com a voluntária francesa Corinne, numa das aldeias flutuantes de Inle Lake

“E foi muito bonito”, conta, “porque no meio da tristeza das aldeias naquele estado, as pessoas devolviam-nos um sorriso muito grande. Viajar é isto, é conhecer estas pessoas, gente que não tem nada, mas tem sempre um sorriso. Acabou por ser uma experiência bonita, apesar de tudo.”

No dia seguinte, voltaram ao lago, a mais aldeias, onde não havia comida nem água potável. A junta militar no poder em Myanmar já tinha pedido ajuda internacional, mas ainda nenhuma autoridade tinha ido à região ver o que se passava. Os habitantes começavam a adoecer, porque sempre usaram a água do lago para cozinhar e ela estava contaminada por tudo o que lá caiu.

“Só no dia 30 é que apareceu uma comitiva, eu estava ao pé dos barcos e vi um senhor que devia ser o governador da região, mais o seu fotógrafo, o seu cameraman, uns 20 amigos bem vestidos e uns 40 militares de cara tapada e metralhadora. O povo estava furioso, claro. Porque só lá foram ao terceiro dia e não levaram nada. Iam apenas fazer o levantamento das necessidades e tirar fotografias a si próprios.”

Enquanto esteve em Nyaungshwe, Júlia ocupou-se sobretudo com aquilo que mais faz: conhecer pessoas, conversar com elas, interessar-se por elas, tirar-lhes fotografias. “Costumo dizer que não viajo sozinha, viajo com a minha câmara – é o que me ajuda a ver melhor, porque me obriga a olhar com mais concentração, mais foco. E gosto muito de fotografar pessoas e de falar com elas. Uma das razões por que viajo sozinha é poder fazer isso. Pergunto se posso fotografá-las, sento-me e fico ali à conversa.”

Devastação Júlia Silva acredita que vai tudo ser reconstruído em um ou dois anos. “As pessoas são maravilhosas e merecem que os turistas voltem”, sublinha a viajante

Na quinta-feira, 3, despediu-se de Myanmar com vontade de regressar. “Normalmente, saio dos sítios contente e feliz e não a pensar que volto”, conta. Desta vez foi diferente: “Quero conhecer a sério Inle Lake, que deve ser de uma beleza estrondosa. Hei de regressar, não sei quando porque a reconstrução vai demorar e quero voltar quando houver democracia. É um país maravilhoso que precisa muito do turismo.”

A antiga Birmânia foi o nonagésimo nono país que a portuguesa visitou, assinalado nesta sua viagem que teve início no Qatar, em janeiro, e já a levou ao Sri Lanka, às Maldivas e ao Bangladesh. No ano passado, por esta altura, estava no arquipélago de Bijagós, na Guiné-Bissau, seguindo a sua máxima de alternar os continentes. Quando fizer 60 anos, em julho, vai ter 100 países no currículo – o centésimo será a Coreia do Sul – visitados devagar, ao ritmo dos transportes locais, sem luxos (sempre que possível, dorme em hostels) e com tempo para sentir a familiaridade dos sítios.

Depois, Júlia Silva, que foi, durante mais de duas décadas, gestora numa multinacional farmacêutica e viveu na Alemanha e em Porto Rico, terá como sempre o verão ocupado pelo seu projeto de Airbnb, em Cascais – Room for Women Solo Travellers – que nasceu da vontade de empoderar as mulheres para viajarem sozinhas “e não ficarem à espera da companhia de um namorado ou de uma amiga”.

Como mora sozinha e só tem uma casa de banho, pode albergar apenas mulheres. “Podemos tomar o pequeno-almoço juntas, beber um copo de vinho, ir à praia ou… nada. Tenho conhecido mulheres dos 25 aos 75 anos, quase todas pessoas fantásticas.” E vê também o mundo pelos olhos delas.

Júlia Silva


“Em 2014, estava a fazer uma meditaçãozinha e passou-me pela cabeça: porque não te despedes e vais viajar pelo mundo? Ia fazer 50 anos, não tenho filhos, tinha umas economiazinhas e o apartamento pago… podia.” Desde então, a ex-gestora viaja pelo menos três meses no inverno, como podemos ir vendo no seu Instagram (@juliasilvatraveler)

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Continuamos sem saber qual será o futuro da lei morte medicamente assistida em Portugal. Desde que foi aprovada em maio de 2023, conheceu a falta de regulamentação que impede a sua aplicação, a queda do Governo de António Costa, um novo pedido de fiscalização no Tribunal Constitucional, e agora a dissolução do Governo de Luís Montenegro. Muitas dúvidas e incertezas continuam a marcar este processo em Portugal. Nos últimos meses, o Reino Unido debateu e votou na Câmara do Comuns uma proposta para legalizar a eutanásia em Inglaterra e no País de Gales pela primeira vez em quase uma década, estando em curso trabalhos para a elaboração de uma lei que reúna um amplo consenso. Contudo, o que nos aproxima e distancia desta nação com quem temos uma grande proximidade, não fosse esta a mais antiga aliança em vigor?

A recente investigação que o projeto Aversion2agony conduziu sobre as atitudes face à eutanásia em Portugal e no Reino Unido, com base em dados do projeto internacional European Values Study, oferece uma visão reveladora sobre os pontos de convergência e divergência entre as duas nações. Os resultados probabilísticos e representativos das populações adultas demonstram que os britânicos têm uma justificação média da eutanásia (6,55 pontos) superior à dos portugueses (4,86 pontos), situando-se 1,69 pontos acima nunca escala de 1 (nunca) a 10 (sempre). Por outras palavras, 42,1% dos portugueses são contra a justificação da eutanásia. Esse valor de rejeição baixa para 19,7% no caso dos britânicos. Por outro lado, são os britânicos que mais aceitam a prática da eutanásia (56,2%), sendo esse valor de 32,8% nos portugueses entrevistados. Os restantes consideram-na admissível para determinadas situações. O que está por trás desta diferença? E até que ponto somos tão diferentes?

A primeira grande distinção está relacionada com os valores culturais e religiosos. O Reino Unido, historicamente mais secularizado e com forte tradição protestante, revela uma maior permissividade em relação à autodeterminação na morte. Por outro lado, Portugal, com uma influência católica muito presente, tende a apresentar uma maior resistência à ideia de eutanásia. Esta distinção reflete-se nos dados: enquanto no Reino Unido a maioria dos protestantes justifica a prática com uma média de 6,18 pontos, em Portugal os católicos registam apenas 4,60 pontos.

Outro fator relevante é o papel do sistema de saúde e dos cuidados paliativos. O Reino Unido foi pioneiro na implementação dos hospices, centros especializados que proporcionam cuidados paliativos de alta qualidade. Esse sistema bem estruturado permite um debate mais informado sobre o fim da vida e pode contribuir para uma maior abertura à eutanásia. Em contrapartida, Portugal ainda enfrenta desafios significativos na disponibilização de cuidados paliativos acessíveis, o que pode gerar receios de que a eutanásia seja vista como uma solução para a falta de apoio médico adequado.

A educação surge como um fator-chave na aceitação da eutanásia. Em ambas as nações, os indivíduos com maior nível de escolaridade tendem a justificar mais esta prática. Isto pode estar associado a uma visão mais informada e reflexiva sobre os direitos individuais e a autonomia na tomada de decisão sobre o próprio fim de vida

Como ainda nenhum estudo tinha avaliado a associação da orientação política nos níveis de justificação da eutanásia, e considerando que os padrões e valores morais tradicionais (tradicionalismo/conservadorismo) estão geralmente situados no espetro político da direita, procurámos perceber se os indivíduos de direita são efetivamente a fração do espetro político com menor justificação da eutanásia. Os resultados foram surpreendentes. Se em Portugal são os indivíduos de esquerda e centro que mais aceitam a prática da eutanásia, no Reino Unido são os indivíduos de esquerda e direita. Portanto, apenas em Portugal os indivíduos de direita são a fração do espetro político com menor justificação da eutanásia. Uma explicação pode ser o domínio do Partido Conservador e no Partido Trabalhista em sucessos governos britânicos.

No entanto, também existem aproximações entre as duas nações. Apesar de as mulheres apresentarem uma justificação média (5,97 pontos) ligeiramente superior à dos homens (5,81 pontos), ela não varia significativamente com o sexo dos indivíduos e é uma tendência em ambas as nações. A análise geracional indica que as faixas etárias mais jovens, tanto em Portugal como no Reino Unido, apresentam um maior nível de justificação da eutanásia. Este dado sugere uma tendência global de mudança de mentalidade, impulsionada por uma maior exposição ao debate sobre direitos individuais e qualidade de vida.

Além disso, a educação surge como um fator-chave na aceitação da eutanásia. Em ambas as nações, os indivíduos com maior nível de escolaridade tendem a justificar mais esta prática. Isto pode estar associado a uma visão mais informada e reflexiva sobre os direitos individuais e a autonomia na tomada de decisão sobre o próprio fim de vida.

De todo o modo, é interessante notar que o apoio à legalização da eutanásia é relativamente próximo nas duas nações: 72,5% em Portugal e 65% no Reino Unido, de acordo com outras sondagens recentes. Contudo, esses dados escondem nuances importantes. Em Portugal, o debate é mais polarizado, com valores extremos tanto a favor como contra a prática, como mostram os nossos dados. Já no Reino Unido, a discussão parece ocorrer de forma mais equilibrada. As perguntas feitas aos entrevistados nessas sondagens nem sempre são as mesmas, entre outros elementos, que impedem comparações diretas.

Desta forma, a nossa investigação demonstra que a eutanásia continua a ser um tema complexo e multifacetado, influenciado por fatores culturais, religiosos, políticos e estruturais. Se, por um lado, os britânicos revelam uma maior permissividade, fruto de um contexto mais secularizado e de um sistema de saúde mais preparado para lidar com o fim da vida, por outro, os portugueses demonstram um crescimento no apoio à legalização, embora ainda marcado por fortes divisões.

O futuro da eutanásia nas duas nações dependerá da capacidade de promover uma discussão informada, que respeite tanto os valores individuais como as necessidades da sociedade. Mais do que uma questão de legislação, trata-se de uma reflexão sobre a dignidade humana e a forma como encaramos o fim da vida.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Os países da NATO que apoiam a Ucrânia comprometeram-se hoje com um novo pacote de ajuda de mais de 21 mil milhões de euros. “Estamos a viver um momento crítico nesta guerra, e o que queremos dizer à Ucrânia é que pode contar connosco, seja na luta, seja na paz”, disse John Healey, ministro da Defesa do Reino Unido, depois de uma reunião do Grupo de Contato de Defesa da Ucrânia (GCDU), em Bruxelas, que contou com mais de 50 países, incluindo Portugal.

Este apoio – num valor recorde de financiamento militar ao país, segundo o governante britânico – integra um pacote de ajuda do Reino Unido de 5,2 mil milhões de euros, que inclui “minas antitanque” e “milhares de ‘drones'”.

Já Portugal deverá enviar viaturas blindadas M113, “lanchas rápidas” e helicópteros, de tipo “ainda não definido”, segundo Álvaro Castelo Branco, secretário de Estado da Defesa Nacional, num valor total de 221 milhões de euros, como já havia sido anunciado.

Rustem Umero, ministro da Defesa da Ucrânia, já agradeceu o apoio. “Estamos gratos pelas capacidades de coligação que foram apresentadas às nações líderes, às nações contribuidoras, e é uma das maiores ajudas que estamos a receber”, referiu.

O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu esta sexta-feira manter as penas de dez e seis anos e três meses de prisão para Manuel Pinho e Ricardo Salgado, no âmbito do caso EDP.

De acordo com o acórdão, citado pela agência Lusa, ficou provado um pacto corruptivo entre o antigo ministro da Economia e o ex-banqueiro. O ex-ministro recebia mesadas de cerca de 15 mil euros, enquanto exercia funções no Governo de José Sócrates, para beneficiar o Grupo Espírito Santo.

Os juízes desembargadores mantiveram ainda a suspensão da pena de quatro anos e oito meses aplicada a Alexandra Pinho, mulher de Manuel Pinho.

Ricardo Salgado continua, assim, condenado a uma pena de seis anos e três meses de prisão e Manuel Pinho a 10 anos de prisão. 

O VOLT Live é um programa/podcast semanal sobre mobilidade elétrica feito em parceria com a Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos (UVE).

Neste VOLT Live, episódio número 100, gravado a dia 11 de abril de 2025, apresentamos o Observatório da Mobilidade Elétrica, um site que reúne informação detalhada sobre vendas de veículos elétricos, comparativos de custos de energia e rede de carregamento. Neste site podemos saber, por exemplo, a evolução dos preços de carregamento, a disponibilidade dos postos por município, as taxas de ocupação das tomadas ou a avaliação dos operadores dos postos de carregamento. É mesmo muita informação disponível em https://observatorio.uve.pt/.

Em Polo Positivo e Polo Negativo comentamos os novos apoios para a aquisição de autocarros 100% elétricos e a manipulação de informação que foi feita relativamente aos apoios para a aquisição de veículos elétricos.

Em Produto em Destaque analisamos uma nova trotinete, que convence pela relação qualidade/preço.

Em Carrega Aqui, revelamos novos projetos municipais para a expansão da rede de carregamento e novos hubs de carregamento ultrarrápido. Com destaque para uma nova estação que até vai incluir zonas de convívio e de restauração para os utilizadores dos veículos elétricos.

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No México começou uma azáfama nunca vista. No próximo dia 1 de junho, e pela primeira vez na sua história, cem milhões de mexicanos elegerão os seus juízes. Cerca de 3422 candidatos a várias instâncias iniciaram no passado dia 30 de março uma campanha eleitoral inédita que culminará com a sua apresentação a eleições e consequente sujeição a voto popular. Sendo este o primeiro país do mundo em que tal sucede a uma escala que percorre todo o judiciário, importa primeiramente fazer a radiografia dos acontecimentos que conduziram o México a este ponto.

O processo inicia-se com uma confrontação entre o ex-presidente López Obrador e o Supremo Tribunal Mexicano na sequência de decisões em que este tribunal colocou entraves a algumas das suas propostas políticas. Nessa sequência, e como já vem sendo hábito nas estratégias populistas, independentemente do quadrante político em que se inserem, iniciou-se de imediato um discurso de forte deslegitimação do poder judicial, designadamente com acusações de corrupção dirigidas aos juízes, criando-se uma retórica crescente propiciadora de uma desconfiança pública generalizada. Nas palavras de Obrador, era necessária uma “reforma da Justiça” para livrar o judiciário da corrupção e garantir que ele responda à vontade popular”. Depois, aproveitando uma maioria parlamentar favorável, em setembro passado, o chefe de governo conseguiu fazer passar uma alteração legislativa de acordo com a qual os juízes mexicanos passariam, já em 2025, a ser eleitos diretamente pelos cidadãos. Numa votação parlamentar acelerada e deslocalizada para um pavilhão desportivo, a aprovação das medidas ocorreu já de madrugada debaixo de fortes protestos populares no exterior.

Os tempos que se seguiram foram marcados por mais protestos e greves que paralisaram o sistema de justiça e com deputados da oposição a virem denunciar casos de suborno, pressão e chantagens aquando da determinação do seu sentido de voto.

Ao contrário das eleições políticas, os candidatos a juízes não receberão formalmente qualquer financiamento para as suas campanhas, nem poderão contratar espaços publicitários na imprensa, rádio ou televisão, ou em painéis publicitários. Não será permitido fazer comícios em massa, apenas “reuniões sem megafones”

A presidente, entretanto eleita, Cláudia Sheinbaum, aliada de Obrador no Movimento Regeneração Nacional (MORENA), tendo tomado posse em outubro, de imediato se pronunciou publicamente afirmando: O presidente é eleito pelo povo, o poder legislativo é eleito pelo povo. Se os juízes são eleitos pelo povo, onde está o autoritarismo?” O argumento tem tanto de sedutor, pelo simplismo com que se apresenta, como de básico e perigoso, face ao que estas ideias realmente implicam. Com efeito, com esta dita “reforma” judicial deu-se por imediatamente encerrada a carreira judicial de cerca de 1700 juízes e magistrados do país, assim como de cerca de 55000 funcionários judiciais. Da noite para o dia, sem processo disciplinar, sem justa causa, sem apelo nem agravo. Por outro lado, foram afrouxados os requisitos para as candidaturas, incluindo a desnecessidade de ausência de antecedentes criminais. Ao contrário das eleições políticas, os candidatos a juízes não receberão formalmente qualquer financiamento para as suas campanhas, nem poderão contratar espaços publicitários na imprensa, rádio ou televisão, ou em painéis publicitários. Não será permitido fazer comícios em massa, apenas “reuniões sem megafones”.

Ora, como está bom de ver, o problema que se coloca, desde logo, é um problema de transparência do sistema, visto que existe um risco real dos candidatos se socorrerem de financiamento ilegal, provindo de certos grupos económicos ou até de organizações criminosas. Os demais, que tentam manter-se no sistema do qual foram afastados pela “reforma”, têm-se sujeitado à venda de bens pessoais para financiarem campanhas fotográficas ou vídeos promocionais ou recorrido à criação de contas de Facebook, TikTok e Instagram, como forma de disseminarem a sua candidatura de modo gratuito.

O grotesco da situação chega ao ponto de ser claro que os candidatos com mais património ou com maior disponibilidade de tempo estarão também em condições de manifesta vantagem, visto que os que se encontrem em funções no poder judiciário não podem fazer campanha durante o horário de trabalho. Mas o mais insólito é perceber o modo como é feita apresentação do conteúdo dos “programas eleitorais”, em que candidatos vestidos de trajes tradicionais ou nos seus melhores trajes pessoais tentam “vender” a sua candidatura com promessas de profissionalismo, objetividade, independência, imparcialidade e autonomia. Outros criam slogans como “prometo que serei o mais independente e o mais imparcial para resolver os seus casos”. Os mais resignados acrescentam: “… é a única coisa que posso oferecer”.

Perante este cenário, a Relatora Especial da ONU para a Independência dos Juízes e Advogados, Margaret Satterhwaite, advertiu com propriedade que quanto mais político se torna o processo, mais riscos há de corrupção, visto que estas candidaturas já não envolvem apenas o mérito, mas antes implicam uma tentativa de chegar ao poder a qualquer custo. Aliás, a Relatora Especial enviou mesmo uma carta ao governo mexicano a expressar a sua preocupação com a reforma, pois que, no seu entender, esta não garante que os selecionados sejam os mais preparados, os mais impolutos ou os mais transparentes. Acrescentou ainda que se o objetivo era de facto fortalecer a independência e a capacidade de combate à corrupção, então as medidas a tomar deviam antes passar pelo fortalecimento dos órgãos existentes que garantem a independência do sistema judicial, em vez de se eliminar um sistema e substituí-lo por outro. Também a Federação Latino Americana de Magistrados (FLAM) manifestou a sua incredulidade emitindo uma declaração pública em que alerta que “a reforma mexicana, ao submeter a seleção de juízes ao voto popular, introduz um risco significativo de politização do Poder Judiciário. Os juízes, em vez de serem selecionados pelo seu mérito e competência, serão eleitos pela sua capacidade de atrair votos, o que compromete sua imparcialidade e autonomia.”

Assim, o que sucederá a partir do dia 1 de junho é que os juízes em funções que não forem eleitos perderão os seus cargos através de um mecanismo de intervenção política na composição do poder judicial, tanto mais que os próprios candidatos foram escolhidos por comités de avaliadores controlados pelos poderes executivo e legislativo. Esta decisão anula o poder judiciário enquanto poder independente que exerce um contrapeso relativamente aos demais poderes do Estado, remetendo-nos para um cenário típico do ressurgimento dos regimes autoritários. Um poder judiciário dependente do voto popular, com tudo o que as campanhas públicas implicam, vincularia os candidatos aos interesses da franja que os elegeu ou apoiou, comprometeria a sua imparcialidade na aplicação universal da lei e torná-lo-ia vulnerável a grupos de pressão com suficiente poder para alterar a sua situação profissional.

Porque estas ideias, volta e meia, também são atiradas por cá, importa ter presente que o sistema português de nomeação de juízes está bem sedimentado na lei e na constituição e acompanha os modelos modernos e progressistas das demais democracias europeias. Porém, aqui como no resto da Europa, a imunidade ao iliberalismo só se alcançará mediante uma real consciencialização para os perigos do seu advento, importando que o reforço da independência judicial não ceda perante as tentações populistas. Relembrando a opinião nº1 do Conselho Consultivo dos Juízes Europeus sobre os padrões relativos à independência do poder judicial e à inamovibilidade dos juízes, “a independência judicial não é um privilégio para os juízes, mas em benefício dos cidadãos, aqueles que procuram a justiça.”

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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A produção de componentes para alimentar a crescente indústria da Inteligência Artificial tem impacto notório no ambiente. Uma análise da Greenpeace constata que as emissões de gases poluentes associados à produção de chips para IA quadruplicaram em 2024. Com muitos dos fabricantes a recorrerem a empresas como a TSMC ou a SK Hynix, a produção destes componentes acontece em fábricas em Taiwan, Coreia do Sul e Japão onde as infraestruturas elétricas ainda dependem muito de combustíveis fósseis, o que ajuda a explicar este aumento.

A Greenpeace estima que as necessidades globais de eletricidade para a IA podem chegar a ter um aumento de 170 vezes até 2030. Segundo a Bloomberg, este estudo reforça as preocupações já levantadas por alguns de que a corrida pela IA pode fazer descarrilar completamente os objetivos de descarbonização, com as conhecidas consequências para a Terra.

A organização sem fins lucrativos recomenda que os governos do leste asiático promovam a transição das fábricas para energias renováveis, mas parece estar a acontecer o oposto: a Coreia do Sul anunciou planos para construir instalações para produção de energia a partir de gás e Taiwan usou o argumento de um aumento de procura de energia para expandir os projetos de gás líquido.

Outro estudo da Agência Internacional para a Energia estima que a procura de eletricidade para alimentar centros de dados em todo o mundo deve duplicar em 2030, para os 945 TWh (terawatts hora), mais do que toda a eletricidade consumida no Japão ou 30 vezes mais do que a que é consumida na Irlanda.

Antes de as novas tarifas impostas por Donald Trump entrarem em vigor, a Apple apressou-se a transportar 600 toneladas de iPhone da fábrica da Índia para os EUA. O objetivo parece ser evitar o impacto financeiro e eventuais aumentos de preços, desencadeados pelas novas tarifas comerciais. Segundo o Nikkei Asia, as empresas Apple, Dell, Microsoft e Lenovo pressionaram as linhas de montagem para movimentar o maior número possível de equipamentos premium, os que serão mais afetados pelos potenciais aumentos de preços.

A empresa de Cupertino fez mesmo lóbi junto das autoridades para conseguir obter aprovações alfandegárias, contratou mais trabalhadores e manteve a fábrica da Índia a trabalhar mesmo no domingo para conseguir mais 20% de produção. A Reuters fez as contas e, considerando a capacidade de carga do avião e a dimensão e peso das embalagens, estima que a Apple tenha conseguido trazer 1,5 milhões de dispositivos desde março, conseguindo uma margem para não aumentar os preços no curto prazo.

Um fornecedor que trabalha com as tecnológicas Apple, Google e Microsoft confirma que as empresas deram instruções para expedir o máximo de aparelhos de eletrónica de consumo por via aérea que fosse possível, antes de as novas tarifas entrarem em vigor. A HP, por sua vez, deu instruções para se manterem os planos originais de expedições, tendo mudado de ideias em 24 horas e pedido também para se expedir o máximo que se conseguisse e aumentado o ritmo de produção no México.

A Samsung está a reduzir as encomendas de componentes para smartphones até meados de 2025 e alguns fabricantes de computadores como a Lenovo e a Acer já indicaram que irão aumentar o foco para outros mercados que não os EUA.