A 16 de outubro último, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman foi calorosamente recebido em Bruxelas por Ursula von der Leyen e pelos chefes de Estado e de governo dos países da União Europeia, para a primeira cimeira UE-Golfo. Mas, naquele mesmo dia, um “tribunal especial” controlado pela monarquia absolutista de Riade condenou o cartoonista saudita Mohammed al-Ghamdi a 29 anos de prisão, numa sentença irrecorrível. Nada que perturbasse o bom andamento dos trabalhos de tal cimeira.
E que crimes, afinal, cometeu Al-Ghamdi, que se assina Al Hazza nas suas ilustrações, para tão brutal punição? “Ofensas” ao rei Salman e ao príncipe herdeiro Bin Salman, acrescidas de “mensagens hostis” ao regime ditatorial saudita, sentenciou o referido “tribunal especial”.
Este talvez seja o caso mais grave que a Cartooning for Peace (CFP), uma ONG que monitoriza pelo mundo fora e denuncia os ataques à liberdade criativa e de expressão dos cartoonistas, tem agora em mãos. O trabalho de vigilância, porém, é crescente, como o ilustram os oito casos que a VISÃO aqui apresenta, incluindo o de Al-Ghamdi – desde um rapto intimidatório, no Quénia, prisões preventivas sem prazo, no Egito, e sentenças de cadeia por “propaganda contra o Estado”, no Irão, a julgamentos intermináveis, na Turquia, e ao impune bloqueio de um site de uma newsmagazine, na Índia.
Recentemente, a CFP celebrou um acordo com o Global Media Defense Fund, dependente da UNESCO, para a produção, até agosto de 2026, de um relatório que destacará e documentará, a nível global, casos de ameaças, ataques e de punições judiciais sobre cartoonistas e a sua liberdade de expressão. Nunca como hoje, dir-se-ia, os regimes ditatoriais, ou tendencialmente autocratas, tiveram as garras tão afiadas contra os cartoonistas e as suas incómodas sátiras.
EUA
A coragem de satirizar o próprio “patrão”

A cartoonista Ann Telnaes, que trabalhava há 17 anos para o The Washington Post, desenhou, para publicação, Jeff Bezos, dono do jornal, ajoelhado, com um saco de dólares, diante de uma estátua de Trump. Cartoon censurado e relação acabada
Ann Telnaes tem no currículo um Pulitzer, arrecadado na categoria da caricatura editorial. Mas nem a conquista desse prestigiado prémio impediu que a ligação da cartoonista norte-americana ao The Washington Post terminasse a 4 de janeiro último, ao fim de 17 anos.
É certo que Ann Telnaes testou ao máximo a liberdade de expressão agora ali em vigor. Naquele dia, submeteu para publicação no jornal um cartoon em que Jeff Bezos, o dono do The Washington Post, está ajoelhado, com um saco de dólares, diante de uma estátua de Donald Trump.
Sabia-se que Bezos tinha doado um milhão de dólares para financiar a tomada de posse, a 20 de janeiro, do Presidente eleito, Trump. No cartoon, em conjunto com Bezos, e também a oferecer, de joelhos, sacos de dinheiro ao novo líder da Casa Branca, aparecem outros financiadores da cerimónia de posse – Mark Zuckerberg (Meta) e Sam Altman (OpenAI), além de Patrick Soon-Shiong (proprietário do Los Angeles Times) e até do rato Mickey, que na caricatura representa a Walt Disney Company, dona da cadeia de TV ABC News.
A mensagem do cartoon era clara: um grupo de bajuladores bilionários procurava comprar benesses ao então Presidente eleito. E, pela primeira e última vez, Ann Telnaes viu o The Washington Post recusar-lhe a publicação de um trabalho.

Nos anos anteriores, conta a cartoonista, “esboços foram ocasionalmente rejeitados ou revisões solicitadas, mas isso nunca se relacionava com a mensagem que o cartoon pretendia passar”. Na última caricatura que desenhou para aquele jornal, Ann Telnaes diz ter sido alvo de uma “censura sem precedentes e sintomática de um declínio cada vez mais acentuado na liberdade e independência da imprensa nos EUA, o que deve alertar para o que isso pressagia em termos de respeito pelas regras do jogo democrático”.
A quem lhe pergunte se não foi deselegante, no mínimo, satirizar o próprio “patrão”, responde: “Estamos a falar de órgãos de comunicação social que têm deveres públicos e que são obrigados a nutrir uma imprensa livre numa democracia. E os donos dessas organizações são responsáveis por salvaguardar essa imprensa livre.”
Na altura, quando questionado sobre o caso, o The Washington Post negou qualquer censura e alegou que a abordagem do assunto – a aproximação de bilionários da tecnologia e dos média a Trump – se estava a tornar “repetitiva” nas páginas do jornal. Já a Cartooning for Peace saudou a “determinação” de Ann Telnaes (que por iniciativa própria logo se desvinculou do The Washington Post) e secundou-a na preocupação com um caso de censura que “muda a situação e representa um perigo para a liberdade de imprensa”. Mas a cartoonista garante que vai continuar o seu trabalho de “responsabilização dos poderosos”. Porque “a democracia morre na escuridão”.
TURQUIA
Ter graça e arriscar três anos de cadeia

No confinamento causado pela Covid-19, a cartoonista Zehra Ömerogˇlu fez uma ilustração, a que chamou de “sexo e pandemia”, para divertir e pôr a rir quem a visse. Resultado: um inferno judicial que dura até hoje
Estamos em 2020, em pleno confinamento provocado pela pandemia de Covid-19, e a cartoonista turca Zehra Ömeroğlu precisava de se descontrair. Nada melhor para isso do que fazer uma ilustração humorística. Além do mais, naqueles dias incertos e assustadores, iria propiciar um momento de divertimento e riso aos apreciadores dos seus cartoons. “Sexo e pandemia” foi o título que deu à caricatura publicada em novembro daquele ano na revista satírica semanal turca LeMan. No desenho, vê-se um homem com o rosto encostado às nádegas de uma mulher e a dizer: “Ufa! Pelo menos não perdi o paladar e o olfato!”
À conta deste cartoon, que apenas pretendia oferecer a quem o visse uma pausa de boa disposição nos depressivos tempos da pandemia, Zehra Ömeroğlu viu-se envolvida num interminável inferno judicial, que dura há mais de quatro anos. Tudo, para ela, ficou no fio da navalha: a carreira, a sua segurança e, no fim, o risco de ser condenada a três anos de prisão.
A cartoonista foi logo processada pelo Ministério Público de Istambul, que só em outubro de 2022, quase dois anos após a publicação da caricatura, deduziu uma acusação contra a artista, pelo crime de “obscenidade”. Nas contra-alegações ao libelo acusatório, o seu advogado, além de insistir no óbvio objetivo lúdico do desenho de Zehra Ömeroğlu, sublinhou que, “de acordo com decisões do Tribunal Constitucional, a presença de elementos eróticos” em obras artísticas “não é um crime”.

O trabalho da cartoonista turca é conhecido por se centrar na sexualidade feminina, nos tabus sexuais e na complexidade da psicologia humana, sempre com mensagens que também pretendem divertir. Os seus cartoons são publicados em numerosos jornais e revistas, dentro e fora da Turquia, e já deram lugar à edição de três livros.
De volta ao caso em concreto, a caricatura que levou Zehra Ömeroğlu a ser processada e acusada pelo Ministério Público de Istambul foi publicada numa revista satírica obviamente para adultos. E, no entanto, o procurador responsável por sustentar a tese da acusação em julgamento pediu ao juiz, e conseguiu, que fosse solicitado um parecer ao Conselho para a Proteção de Menores de Publicações Obscenas, dependente do Ministério turco da Família. Tal parecer foi divulgado numa audiência do julgamento em março de 2024 e, claro, não ajudou em nada a cartoonista: invocando um artigo de uma lei do país, aquele conselho considerou que a caricatura em causa “ofende a decência e a modéstia públicas, é contrário à moralidade geral”, e que “desperta e explora desejos sexuais”. Tudo “efeitos nocivos” de que as crianças devem ser protegidas, quando a ilustração de Zehra Ömeroğlu, como é evidente, não se lhes dirigia.
Depois, o juiz, numa audiência em setembro passado, determinou que um painel independente de especialistas em Belas-Artes e Literatura produzisse um segundo relatório, este de análise artística à caricatura, em contraponto ao primeiro, que a considerou “obscena”. Mas, em fevereiro último, quando a cartoonista e o seu advogado esperavam conhecer, em mais uma sessão do julgamento, o teor daquele parecer “artístico”, o juiz informou-os de que o documento não fora enviado ao tribunal, agendando nova audiência para junho próximo.
O julgamento arrasta-se e ainda está na 1.ª instância – com crescentes danos pessoais e profissionais para Zehra Ömeroğlu. Comenta a Cartooning for Peace: “Estes adiamentos constantes, que condenamos, são uma prática regular das autoridades turcas para restringir a liberdade de expressão.”
EGITO
Prisão preventiva infinita

Fez cartoons sobre a elevada dívida externa do país e os frequentes apagões elétricos. Demasiado para a ditadura militar do general Al-Sisi, que aplicou a Ashraf Omar o corretivo da prisão contínua sem julgamento
Em janeiro último, agentes da Procuradoria egípcia de Segurança do Estado entraram na casa de Nada Mougheeth e detiveram-na. Um mês antes, Nada, que é mulher do cartoonista Ashraf Omar, que está em prisão preventiva desde julho de 2024, tinha dado uma entrevista ao jornalista Ahmed Siraj, do site de notícias ZatMasr, na qual denunciou que, na altura da detenção do marido, também na residência do casal, haviam sido apreendidos objetos pessoais e quantias em dinheiro, sem que isso fosse registado no relatório da ação policial.
Na ditadura militar, liderada pelo general Al-Sisi, que hoje governa o Egito, não se admitem tais acusações, apesar de a corrupção generalizada ser apontada por diversas entidades internacionais. Nada Mougheeth seria libertada sob caução e acusações pesadas da Procuradoria de Segurança do Estado: “ligação a um grupo terrorista” e “disseminação de notícias falsas”. Já Ahmed Siraj, o jornalista que a entrevistou, ficou em prisão preventiva, acusado dos mesmos delitos.
Agora, Nada Mougheeth está altamente condicionada nas suas movimentações para lutar pela libertação do marido. Ashraf Omar fazia os seus cartoons para o site de notícias Al-Manassa. Antes de ser preso, as suas ilustrações humorísticas visaram a elevada dívida externa do Egito e os frequentes apagões elétricos no país.
Para a ditadura do general Al-Sisi, foi longe demais. Após ser preso, a mulher, a família e o seu advogado não souberam do paradeiro de Ashraf Omar durante dois dias. Há alegações de que, nesse período, o cartoonista foi espancado e ameaçado de tortura com eletrocussão por agentes da Procuradoria de Segurança do Estado. Num interrogatório de seis horas, ser-lhe-ia perguntado se, com os seus cartoons, tencionava incitar uma revolta popular.

Para o advogado Khaled Ali, não foram surpresa nenhuma as acusações atribuídas ao seu constituinte Ashraf Omar, sem apresentação de provas: lá estavam a “ligação a grupo terrorista”, e a “disseminação de rumores, notícias e informações falsos”, acrescidas de “abuso de utilização dos média e das redes sociais”. Mas o que agora preocupa o defensor do cartoonista são as sucessivas extensões por mais 45 dias da prisão preventiva de Ashraf Omar, depois de ultrapassado o limite legal para tal tipo de reclusão. E Nada Mougheeth apenas pode fazer breves visitas de meia hora, uma vez por mês, ao marido, na cadeia de Ramadan.
A Human Rights Watch denuncia as “exacerbadas práticas abusivas de prisão preventiva” pelas autoridades egípcias, que constituem “violações flagrantes do devido processo legal”. Já Sarah Leah Whitson, diretora executiva da DAWN, a ONG fundada por Jamal Khashoggi, jornalista saudita assassinado em outubro de 2018, afirma que “a prisão contínua de Ashraf Omar diz tudo o que é preciso saber sobre a liberdade de expressão no Egito”.
A Cartooning for Peace diz-se “alarmada com a extensão da prisão preventiva” do cartoonista egípcio e a “ausência de qualquer garantia de um julgamento justo”, e assinou com outras organizações uma petição que rejeita as “acusações criminais infundadas” que o visam e que pede a sua “libertação imediata”. Mas aposta-se que o general Al-Sisi fez questão de ignorar tais críticas e apelos.
ÍNDIA
Bloquear um site? É fácil

Uma caricatura mordaz que Hasif Khan fez do primeiro-ministro, Narendra Modi, levou à censura do site da revista Vikatan, um título quase centenário da imprensa do país
Na noite de 15 de fevereiro passado, os editores e jornalistas que estavam na redação da revista Vikatan, um título quase centenário da imprensa indiana (foi fundado em 1928) e sediado em Chennai, a capital do estado de Tamil Nadu, foram tomados pela ansiedade. O tráfego do seu site caíra a pique, de forma abrupta.
Os técnicos informáticos da revista tentaram encontrar respostas para a situação, mas não as obtiveram. A explicação apenas surgiria no dia seguinte, e era uma estreia para a Vikatan, alvo de numerosos processos judiciais, em resultado da sua conduta editorial de afiada crítica política e social. O site tinha sido bloqueado, em grande parte da Índia, pelo Ministério da Informação e Radiodifusão do governo central, de Nova Deli, sem qualquer notificação prévia.
Quando chegou, a notificação oficial remetia para a ilustração de capa da edição de 10 de fevereiro da extensão de marca digital Vikatan Plus, em que o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, aparece algemado de mãos e pés, sentado ao lado do Presidente Donald Trump. Aquele cartoon, desenhado por Hasif Khan, chefe da secção de cartoonistas da Vikatan, apenas refletia a indignação da sociedade, quando se soube que centenas de indianos, homens, mulheres e crianças, deportados dos EUA, tinham feito a viagem, a 5 de fevereiro, acorrentados num avião militar norte-americano, o que não suscitou qualquer comentário do governo de Modi.

Para fundamentar a censura ao site da revista, na sequência da publicação do cartoon de Hasif Khan, o governo de Nova Deli deitou mão a uma lei dirigida a sites noticiosos e redes sociais que, alegou, lhe permite “bloquear o acesso à informação para proteger a segurança nacional e as relações exteriores amistosas”. A Vikatan contestou, junto do Tribunal Superior estadual de Tamil Nadu, a ordem do Ministério da Informação e Radiodifusão de bloqueio do seu site, argumentando o advogado da revista que a ilustração de Hasif Khan constituía “uma forma de expressão artística protegida pela liberdade de expressão e jornalística”, e que a medida governamental, na sua desproporção, também feria os direitos económico-financeiros da newsmagazine.
A 6 de março passado, aquele Tribunal Superior emitiu uma ordem provisória e salomónica, determinando que o Ministério da Informação e Radiodifusão desbloqueasse o site da revista, sob a condição de a Vikatan remover a ilustração de Hasif Khan, o que a newsmagazine fez.
Mas os juízes daquela instância ainda têm de decidir quem tem ganho de causa: se a liberdade de expressão e jornalística, consignada na Constituição do país, argumentada pela Vikatan e pelo seu cartoonista, o que implica a republicação da ilustração de Hasif Khan, se o Ministério da Informação e Radiodifusão, com a lei que invoca. De qualquer forma, a Repórteres Sem Fronteiras aponta que, sob a governação de Modi (que a 17 de março anunciou ter aberto uma conta na Truth Social, a rede social fundada pelo seu “amigo” Trump, como lhe chama), foram concretizadas uma série de leis que dão ao executivo “um poder excessivo para regular os média, censurar informações e silenciar vozes oposicionistas”.
MALÁSIA
Cartoonista impenitente

Fahmi Reza é um velho conhecido da polícia e dos tribunais do estado de Sabá. O último processo que o visa, por ter satirizado um alto dirigente político, e pelo qual arrisca uma pena de prisão, agita o país
Por pouco, o cartoonista malaio Fahmi Reza não entrou em 2025 enclausurado numa cela de uma esquadra de polícia. O artista foi detido a 30 de dezembro, por ordem de um tribunal do estado de Sabá, e libertado sob caução no dia seguinte.
Fahmi Reza é um velho conhecido da polícia e dos tribunais de Sabá. Só desde março de 2021, à conta das suas caricaturas mordazes, a Cartooning for Peace contabiliza que o cartoonista malaio foi notificado por nove vezes para prestar declarações em esquadras da polícia, detido por três vezes, preso por quatro vezes e acusado por duas vezes. Em 2022, por exemplo, não teve pejo em desenhar um macaco ornamentado com vestes reais, numa sátira ao então rei, Abdullah de Pahang (a Malásia é uma monarquia constitucional). Todas as queixas que visam o cartoonista têm como base uma chamada Lei de Sedição, de… 1948.
Mas o cartoon pelo qual Fahmi Reza está agora a ser processado é, talvez, ainda mais afiado do que o do macaco com indumentária de rei. O cartoonista desenhou o novo governador do estado de Sabá, Musa Aman, com uma nota de 100 ringgits (a moeda malaia) presa entre os dentes. Fahmi Reza lembrava, assim, que Musa Aman, durante o seu mandato como ministro-chefe do governo estadual, de 2003 a 2018, fora acusado de corrupção, embora nunca tenha sido condenado.

O cartoon suscitou mais de 50 queixas por difamação de furiosos dirigentes do partido no poder no estado, a Coligação do Povo de Sabá. Alguns deles pugnam mesmo pela expulsão vitalícia de Fahmi Reza de Sabá.
Indiferente a tamanha indignação (e embora arrisque, em caso de condenação, uma pena até três anos de prisão), Fahmi Reza colocou o cartoon na sua conta no Instagram e, depois, foram feitos posters da ilustração satírica do governador Musa Aman, exibidos em várias cidades do estado, incluindo Kota Kinabalu, a capital. Por sinal, o cartoonista seria detido pela polícia, a 30 de dezembro, quando participava, em Kota Kinabalu, numa manifestação de centenas de estudantes e ativistas contra a nomeação para governador de Musa Aman e a corrupção em Sabá.
O caso ganhou dimensão nacional. Uma respeitada organização malaia de defesa dos direitos humanos, a Aliran, exigiu que sejam retiradas todas as acusações contra o cartoonista, porque os cidadãos, argumentou, têm “o direito constitucional de expressar pacificamente as suas preocupações sobre assuntos de interesse público, como Fahmi fez através da sua arte”. Também o primeiro-ministro, Anwar Ibrahim, do Partido da Justiça Popular, veio a público defender o cartoonista, dizendo que não deveria ser processado por causa do seu trabalho artístico, e que críticas ao governo e aos líderes políticos integram a liberdade de expressão. Mas organizações malaias de defesa dos direitos humanos aproveitaram a oportunidade para criticar o próprio chefe do governo, que ainda não cumpriu a promessa eleitoral que fez de revogar a legislação (como a Lei de Sedição, de 1948) que restringe a liberdade de expressão e sufoca o protesto.
A Cartooning for Peace acompanha as reivindicações e críticas daquelas organizações da sociedade civil malaia, sendo certo que Fahmi Reza, mesmo perante uma eventual condenação, não deixará nunca de desenhar as suas sátiras cortantes.
QUÉNIA
Dos cartoons ao rapto

O cartoonista Kibet Bull, também ativista nas redes sociais, e muito crítico do Presidente William Ruto, esteve 13 dias desaparecido – e os seus raptores continuam por identificar…
Suspirou-se de alívio, a 6 de janeiro último, na sede da Cartooning for Peace, em Paris. Naquele dia, chegou a notícia de que o cartoonista Kibet Bull, também ativista nas redes sociais, e muito crítico do Presidente queniano William Ruto, tinha sido solto pelos seus raptores, ainda hoje por identificar, embora haja fortes suspeitas de que fossem polícias dissimulados.
Kibet Bull estava desaparecido desde o dia 24 anterior, após encontrar-se na capital do país, Nairobi, com um senador da oposição, Okiya Omtatah. Ainda estudante, a 27 deveria viajar para Israel, para prosseguir a sua formação na universidade de Telavive, mas deixou de ser visto.
Nessa altura, num comunicado à imprensa, a East African Cartoonists Society (KATUNI) atribuiu o desaparecimento de Kibet Bull a um rapto, um de uma série que estava a visar oposicionistas do regime, sobretudo jovens que se destacavam nas redes sociais como ativistas. A KATUNI denunciava naquele comunicado um clima de intimidação sobre a liberdade de expressão e exigia que a polícia queniana fosse responsabilizada pelo desaparecimento do cartoonista e ativista político, enquanto as autoridades negavam qualquer envolvimento no caso. O certo, porém, é que, ainda antes de Kibet Bull desaparecer, a polícia fez uma investida à sua casa, em Nakuru, uma cidade a cerca de 150 km de Nairobi, numa tentativa frustrada de o prender.

Na sequência dessa operação policial, Patrick Gathara, editor-chefe da The New Humanitarian, uma agência de notícias centrada em assuntos de direitos humanos, dedicou um editorial à perseguição de que Kibet Bull estava a ser vítima, escrevendo que “mesmo durante os piores tempos da ditadura de Daniel Arap Moi, que durou 24 anos e devastou o Quénia de 1978 a 2002, os cartoonistas não eram diretamente alvos do Estado”.
O número de raptos no país começou a crescer a partir do verão de 2024, quando milhares de jovens se manifestaram contra o aumento de impostos decretado pelo governo do Presidente William Ruto. A 26 de dezembro, dois dias depois do desaparecimento de Kibet Bull, a Comissão Nacional de Direitos Humanos do Quénia (KNCHR) mostrou-se alarmada com o fenómeno dos raptos em várias regiões do país, levados a cabo por indivíduos armados e não identificados. Até àquele dia, e desde junho, a KNCHR registou 82 casos de pessoas desaparecidas. Já Irungu Houghton, diretor-executivo da Amnistia Internacional no Quénia, denunciava casos claros de abuso de poder e de prisões ilegais, incluindo relatos de tortura. Sob toda esta pressão sobre o regime, surgiria a libertação de Kibet Bull pelos seus raptores.
Também o Presidente William Ruto viu-se obrigado, pela primeira vez, a vir a público reconhecer a existência de “ações excessivas e extrajudiciais” levadas a cabo por forças de segurança, embora sem as especificar. Já a Cartooning for Peace exige que o rapto de Kibet Bull seja por completo esclarecido, e manifesta receio pela vida do traumatizado cartoonista.
ARÁBIA SAUDITA
Mas ele matou alguém?

Por supostas “ofensas” ao rei, ao príncipe herdeiro e ao regime, Al Hazza viu ser-lhe imposta uma pena de 29 anos de prisão. E ninguém questiona Riade sobre o caso
Em outubro passado, quando esperava ser libertado após cumprir uma pena de prisão de seis anos, condenação justificada por cartoons seus considerados “ofensivos” para o rei saudita, Salman, e o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, o cartoonista Mohammed al-Ghamdi, que assina os seus trabalhos como Al Hazza, recebeu uma notícia devastadora. Enquanto estava preso, o seu processo tinha sido reaberto e revisto por um “tribunal especial”, que o condenou, numa sentença irrecorrível e com data desconhecida para a sua defesa e família, a mais 23 anos de cadeia.
Aquele “tribunal especial”, que decidiu agora condenar o cartoonista saudita a 29 anos de prisão, foi criado para lidar com casos de terrorismo. E, para lhe aumentar exponencialmente a pena, a coberto de uma suposta lei “antiterrorismo”, não mudou os crimes que já tinham sido atribuídos a Al-Ghamdi. Às referidas “ofensas” das suas ilustrações humorísticas ao rei Salman e, sobretudo, ao príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o líder de facto da monarquia autocrática saudita, somaram-se as “mensagens hostis” ao regime, em caricaturas “favoráveis” para o vizinho emirado absolutista do Catar.
Esta foi a armadilha que aprisionou Al-Ghamdi, aliás Al Hazza. Ele fazia os seus cartoons para o jornal diário catari Lusail, caricaturas que também colocava nas suas redes sociais, e seria preso pela polícia saudita em fevereiro de 2018, pouco tempo depois de o príncipe Mohammed bin Salman ordenar o corte completo de relações da Arábia Saudita com o Catar. Em causa estava o “inimigo” Irão, com o qual o emirado vizinho mantinha pontes políticas e económicas, além de tolerar a presença no seu território de dirigentes da Irmandade Muçulmana, movimento islâmico radical, considerado como “organização terrorista” pela monarquia de Riade.
O cenário político não podia ser mais desfavorável a Al-Ghamdi, que sempre denunciou estar a ser vítima de uma “fabricação de falsas acusações”. Mas só o facto de ter sido julgado por um “tribunal especial” criado para “casos de terrorismo” dizia tudo sobre a inevitabilidade da sua condenação.

Durante meses, a família não soube do seu paradeiro e, quando por fim o localizou, na prisão de Dahban, em Jeddah, Al-Ghamdi disse-lhes que sofria maus-tratos frequentes e que não tinha acesso a cuidados médicos, apesar da degradação do seu estado de saúde, como depois divulgou a Sanad, organização saudita de defesa dos direitos humanos sediada em Londres. No entanto, não era infundada a esperança que o cartoonista alimentou de ser libertado em outubro último, após cumprir os seis anos de cadeia da única sentença que até ali ouvira. É que, em janeiro de 2021, o príncipe herdeiro saudita e o emir do Catar, Tamim Al-Thani, depois de três anos de zanga, selaram com um abraço, em Riade, a normalização de todas as relações, na sequência de uma bem-sucedida intermediação de Washington e do Kuwait, interessados no isolamento do Irão.
Mas o príncipe Mohammed bin Salman não é conhecido por ser dado a perdões – não se livra, por exemplo, da suspeita de ter sido o mandante do assassínio, em outubro de 2018, do jornalista saudita Jamal Khashoggi, opositor do regime. Quanto à devastadora pena extra de mais 23 anos de prisão imposta a Al-Ghamdi, a Sanad denunciou que o caso do cartoonista “ilustra um clima perturbador em que ninguém está seguro”, até alguém que se torna um “alvo” apenas pelo seu trabalho artístico.
A Sanad insiste em pedir uma “ação internacional urgente para proteger a liberdade artística e os direitos humanos na Arábia Saudita”, na qual se inclua a “libertação imediata e incondicional” de Al-Ghamdi. Secundando este apelo, a Cartooning for Peace lembra que a Arábia Saudita está classificada na 166.ª posição, em 180, no mais recente índice mundial de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, e que, em 2024, o país tinha 24 jornalistas presos.
O certo, porém, é que a 16 de outubro último, o dia em que a Sanad e a Cartooning for Peace denunciaram a aplicação a Al-Ghamdi de mais 23 anos de prisão, o príncipe Mohammed bin Salman seria calorosamente recebido em Bruxelas por Ursula von der Leyen e pelos chefes de Estado e de governo dos países da União Europeia, para a primeira cimeira UE-Golfo. Não houve notícia de que o caso do cartoonista Al Hazza tenha sido ali sequer sussurrado.
IRÃO
Que “sorte”: só oito meses de prisão

Os tribunais do regime teocrático dos ayatollahs aproveitaram um cartoon de Atena Farghadani para punir todo o seu trabalho crítico com seis anos de cadeia. Mas um recurso, para surpresa geral, reduziu-lhe a pena
Veja-se a coragem da cartoonista Atena Farghadani: a 13 de abril de 2024 aproximou-se do palácio presidencial, em Teerão, e tentou exibir uma ilustração que tinha feito a criticar as desigualdades sociais na sociedade iraniana. Foi logo violentamente abordada por agentes à civil da chamada Guarda Revolucionária e presa.
Dali seguiu de imediato para a cadeia de Evin, na capital iraniana, famosa pelas suas degradantes condições prisionais. Os tribunais do regime teocrático dos ayatollahs foram rápidos a julgar Atena Farghadani – em junho seguinte seria condenada a seis anos de prisão, cinco dos quais por “insultar o sagrado” e um por “propaganda contra o Estado”. De forma clara, diz a Cartooning for Peace, a sentença puniu, por junto, os cartoons críticos feitos ao longo dos anos por Atena Farghadani.

Mas uma boa notícia, salvaguardando que se está no contexto da ditadura teocrática iraniana, chegou a 9 de dezembro último. Um recurso do advogado da cartoonista tinha sido parcialmente deferido. Conseguiu a absolvição de Atena Farghadani quanto à acusação de “insultar o sagrado”, com o tribunal de recurso a sentenciar a artista a oito meses de prisão, que então já tinha cumprido, por “propaganda contra o Estado”, devido ao cartoon sobre as desigualdades sociais que tentara exibir junto do palácio presidencial.
A Cartooning for Peace saudou, claro, a libertação de Atena Farghadani, mas alertou para a “necessidade de continuar a denunciar as injustiças desenfreadas” no Irão dos ayatollahs.