Em 1989, eu era um humilde estagiário de jornalismo, desejoso de me especializar em política. Não conhecia absolutamente ninguém, do meio, e achava que os grandes dirigentes, que todos os dias apareciam na televisão, eram figuras inacessíveis e reverenciais. Naquela tarde de julho de 1989, “estacionado” na sede nacional do PS, na Rua da Emenda, em Lisboa, onde tinha ido parar por engano – afinal, a conferência de imprensa era na sede, sim, mas a do Largo do Rato… – percebi que o secretário-geral socialista se encontrava ali, no seu gabinete, no primeiro andar (ou seria no segundo?) do velho edifício. O assessor de imprensa, António Manuel, condoeu-se de mim e disse-me: “Já que estás aqui, vou apresentar-te ao Sampaio”.
Era um homem aparentemente tímido, reservado e formal, protegido atrás de grandes óculos de massa, aquele tipo ruivo que me recebia. Falámos muito pouco de política – ou da iminente Coligação por Lisboa, cuja última ronda de negociações ali tinha decorrido, minutos antes, e que havia de levar o homem que estava à minha frente a liderar a primeira lista conjunta, entre PS e PCP, às eleições autárquicas, na capital, nesse mesmo ano. Foi Sampaio quem fez as perguntas – afinal, eu era mais tímido do que ele: quem eu era, o que queria fazer no jornalismo, quais eram os meus sonhos e que curso tinha tirado. “Bem, senhor doutor, na verdade, não cheguei a completar a licenciatura…”. E ele, genuinamente preocupado: “Mas complete-a meu caro amigo, complete-a! Vai fazer-lhe muito jeito, na sua profissão, é uma boa ferramenta! Faça-me isso, por favor!”
A humanidade de Jorge Sampaio, ali expressa perante um reles estagiário dos jornais, foi um clique inesquecível. Por que diabo havia ele de se interessar por mim, ou pela minha carreira?
Em janeiro de 1996, já jornalista sénior, irrompi pela casa do novo Presidente da República, na Rua Padre António Vieira, em Lisboa. Jorge Sampaio tinha sido eleito na véspera e dispunha-se a prestar as primeiras declarações, um pouco mais refletidas, à VISÃO, num ambiente mais intimista. Mostrou-me a grande casa, apresentou-me a gata Kitty e, sobretudo, o pequeno quintal nas traseiras – ele que tinha passado a infância entre os quintais verdejantes de Sintra… -, para onde se descia por uns degraus. Para lá chegar, era preciso atravessar a cozinha, ao fundo do corredor. E lá estava a mulher, Maria José Ritta, a mudar a água ao bacalhau que, de véspera, tinha posto de molho. “É para logo, para o jantar”, explicou-me a nova primeira-dama. Aquilo era tudo tão simples e tão doméstico, que era mesmo surpreendente.
Jorge Sampaio passa por ter tido uma Presidência discreta, mas ele foi o mais interventivo dos Presidentes, depois de Ramalho Eanes e, de longe, o mais interventivo depois da revisão Constitucional de 1982. Lidou com cinco governos e quatro primeiros-ministros, que indigitou, dois do PS e dois do PSD. Dissolveu, por duas vezes, a Assembleia da República e foi o único a fazê-lo perante um governo de maioria, por considerar estar posto em causa o regular funcionamento das instituições. O seu estilo minucioso e preocupado contrastava enormemente com o do seu antecessor, Mário Soares. O velho fundador do PS não lia memorandos que ultrapassassem o tamanho de uma folha A4. Sampaio queimava as pestanas em volumosos dossiês, e até para os debates ia carregado de documentos devidamente sublinhados pelo seu próprio punho. Soares encontrava prazer e aspetos lúdicos nas maiores dificuldades. Sampaio encontrava sofrimento nos maiores sucessos. De lágrima fácil e sempre com as emoções à flor da pele, Sampaio era um homem sanguíneo que também era bem capaz de ultrapassar uma indecisão crónica através de pontuais fúrias épicas. Na Presidência, teve um papel insubstituível no desfecho da independência de Timor-Leste. E merecia uma estátua em Díli.
Antes disso, na Câmara de Lisboa, iniciara o processo que mudaria, por completo, a cidade e o seu conceito. O gabinete de planeamento estratégico, coordenado pelo seu amigo e engenheiro Fonseca Ferreira (também já desaparecido) foi fundamental para desenhar boa parte da Lisboa que conhecemos hoje. Herdou as “obras de Santa Engrácia” da reconstrução do Chiado, destruído pelo incêndio de 1988 e cujos sucessivos atrasos, motivados pela burocracia jurídica, quase acabava com a sua carreira política. Mas rodeou-se de alguns dos melhores tecnocratas e técnicos (como Machado Rodrigues), num verdadeiro super-governo para a Capital, e ganhou projeção suficiente para se firmar como um sólido candidato a Belém, contornando, assim, o insucesso na sua tentativa para chegar a primeiro-ministro.
Sim, é verdad. Como líder do PS, falhou clamorosamente e até permitiu, em 1991, que Cavaco Silva ampliasse a maioria absoluta, conquistada em 1987. Substituído por António Guterres, numa luta fraticida, acabaria por ser apoiado (de início, de forma contrafeita) pela nova liderança socialista, no desiderato da candidatura presidencial, onde se desforrou de Cavaco.
Era o culminar de uma carreira política de homem de esquerda não comunista, iniciada como carismático líder estudantil, na crise académica de 1962, e prosseguida nas duras batalhas dos tribunais plenários da ditadura, a defender, pro bono, os presos políticos. A sua verve de advogado habituado à barra e à litigância não serviu de muito como orador político de massas – tinha um discurso muito pouco simplificado e muitas vezes gongórico e ininteligível – mas esse treino foi-lhe precioso em debates, onde perdia a timidez e se tornava um adversário temível, cheio de instinto matador. Que o diga Marcelo Rebelo de Sousa, candidato da AD a Lisboa, em 1989, e que foi cilindrado por Sampaio, na televisão.
Com boas pontes para o PCP, nunca esteve próximo, sequer de abraçar a ideologia comunista – mas cultivou uma espécie de “socialismo de autor” entre o PS (a que aderiu tarde e onde foi sempre visto, pela ala soarista, como um “estrangeirado”) e outras influências da esquerda intelectualizada. Liderou sempre o seu grupo de amigos, na fundação do MES (de que não chegou a fazer parte) ou do GIS com Ferro Rodrigues, Joaquim Mestre, Nuno Bredorode Santos, Galvão Teles ou João Cravinho, entre outros. E, na advocacia, foi patrono de um tal… António Costa.
A sua história pessoal confunde-se com uma parte da nossa História recente. Era um homem essencialmente bom e visceralmente honesto. Teimoso, por vezes ríspido, também foi sempre um bocadinho anti-político. Era um homem de família e de afetos, mas sem ponta de exuberância.
Que descanse em paz.