Por detrás da sua máscara de proteção sanitária, e dos óculos, o primeiro-ministro António Costa franzia os olhos de riso, ao mesmo tempo que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa desfazia, em direto, o seu ministro das Finanças. Marcelo foi Marcelo, um minuto depois de o primeiro-ministro o ter desafiado – e quase declarado apoio – a que se recandidatasse, em 2021. Isto tudo, em direto, perante as câmaras da RTP, num dos momentos mais politicamente excitantes da história da coabitação entre Presidente e primeiro-ministro.
Pode ser que, em tempos de pandemia, os ritmos políticos sejam diferentes. Mas, em condições normais, antes da hora do jantar, o primeiro-ministro teria, em cima da mesa, a carta de demissão de Centeno. Num ato que, desde o início, tresandou a “coligação negativa” entre PM e PR contra o ministro das Finanças, e interrogado sobre o caso dos 850 milhões de euros de empréstimo estatal ao Fundo de Resolução, e destinados a uma nova injeção de capital no Novo Banco, Marcelo disse duas coisas: primeira, “o Estado deve cumprir os seus compromissos”. Segunda, “o primeiro-ministro esteve muito bem, no Parlamento”, ao fazer depender desse cumprimento o conhecimento do resultado da auditoria [da Deloitte, que analisa a gestão entre 2000 e 2018]. Interrogado sobre se o ministro das Finanças esteve, nesse caso, mal, Marcelo insistiu: “Politicamente, é muito diferente que o Estado asuma responsabilidades, sabendo o resultado da auditoria, de assumi-las só conhecendo esses resultados depois.”
Marcelo não ouviu, fingiu não ouvir ou então não se deixou convencer pela importante entrevista desta terça-feira de Centeno à TSF, em que o ministro das Finanças esclarece que há várias auditorias permanentes a monitorizar as injeções de capital, e que essas existiram, que os 850 milhões de euros estavam inscritos no Orçamento de Estado (aprovado na AR) e que a auditoria da Lei 15 de 2019, a tal, não conta para esta injeção de capital.
Mário Centeno está atravessado na garganta de Marcelo desde o episódio da ocultação de informação – para sermos benignos… – relativamente às condições prometidas a António Domingues, quando este foi nomeado presidente da Caixa Geral de Depósitos,no verão de 2016. Em fevereiro de 2017, estoirando a bomba da inconstitucionalidade (por causa da falta de declaração de rendimentos e património de Domingues e dos restantes membros da então administração da CGD), Centeno foi chamado a Belém e Marcelo deixou mais ou menos claro que só não exigia a Costa a cabeça do ministro, porque o País e as contas nacionais não suportariam essa crise política. Mas, numa crise muito pior, como é esta do novo coronavírus, parece que o ministro Mário Centeno, apesar de, entretanto, credibilizado pelos bons resultados da legislatura anterior, se tornou, repentinamente, descartavel. Ora, isto só é possível, se Costa também achar que sim.
Relativamente ao desafio de Costa – voltar à Autoeuropa, em 2021, coincindindo “com o primeiro ano do segundo mandato do senhor Presidente da República”, trata-se de um aviso à navegação – para que os socialistas menos conformados com a reeleição, sem luta, de Marcelo… “fiquem em casa”. A começar por Ana Gomes, claro.