A novela dos contratos de associação com os colégios privados subsiste há perto de um mês. As posições extremaram-se e a argumentação é enviezada, de parte a parte. Bem esteve o primeiro-ministro, António Costa, no último debate quinzenal, onde, com serenidade, explicou como o Governo se limita a cumprir a lei. Colocou, dessa forma, a questão onde ela deve ser colocada, sem margem para grande contestação. O que não ajuda, nem Costa, nem o Governo, neste caso, é o cunho ideológico com que os seus parceiros à esquerda – e, de um modo geral a esquerda mais «inquisitorial» das redes sociais – carregam, desnecessariamente, esta questão. Há dois argumentos, sobretudo, que podem ser rebatidos. O primeiro é o de invocar a Constituição para justificar o fim das parcerias do Estado com os operadores privados. Senão, vejamos:
Quando, no artigo 73.º e seguintes, a Constituição aborda a Educação, em nenhum sítio diz que o Estado está impedido de contratar com o ensino privado. Diz, é verdade, no artigo 75.º que, passo a citar, «o Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população»; mas sem dizer que está impedido de reforçar essa rede com acordos com os privados! Até porque o verdadeiro espírito da Constituição está pouco antes, no n.º 1 do artigo 74.º: «Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar», sem especificar de que forma o Estado deve prosseguir esse fim. Ou antes: nas alíneas do n.º 2 do mesmo artigo estabelecem-se obrigações para que o Estado garanta o disposto no n.º 1, mas em nenhuma transparece qualquer norma que pareça impedir o recurso a contratos de associação com os privados. O que significa, nesse caso, que essa é matéria para a lei ordinária e que depende, assim, das políticas e do programa de cada Governo em concreto.
O segundo argumento tem a ver com o facto de os contribuintes estarem a pagar o mesmo serviço duas vezes e, ainda por cima, estarem a subsidiar os colégios privados de uns tantos «privilegiados». Não é assim: a lei determina que apenas onde não há oferta pública suficiente se evite discriminar alunos que, sem a parceria com os privados, não teriam verdadeiro acesso à educação. Estamos a falar de 3% da rede privada! É por isso que a revisão dos contratos, pelo Governo, tem como único critério, não um de ordem fiscal, mas o da oferta pública. Até porque, senão, o argumento seria reversível: quem está a pagar para ter os seus filhos no privado poderia argumentar que também contribui, com os seus impostos, para a escola pública dos outros – e, assim, também está a pagar duas vezes. Sobretudo, desde que o desconto por despesas de educação, no IRS, foi reduzido à expressão mínima…
Neste, como em todos os casos que envolvam a boa administração dos dinheiros públicos, bem como a prossecução das garantias constitucionais a todos os cidadãos, o único critério deveria ser o do custo-benefício. No limite, e em teoria, tendo em conta esta relação, até poderia ser preferível, nalguns casos, fechar escolas públicas ineficientes e manter, nesses casos concretos, os contratos… Se, eventualmente, o acesso à educação garantisse, nestes casos, maior qualidade e ficasse mais barato! Acredito que o Ministério da Educação terá em conta estes fatores objetivos – e, ao mesmo tempo, descontará as motivações ideológicas que inquinam a discussão.
2. Marcelo Rebelo de Sousa não resistiu e teve uma recaída na pele de analista, desatando a falar de «ciclos políticos». Disse o Presidente que ninguém espere que seja ele a mexer uma palha para causar instabilidade política, que deverá durar durante o ciclo que vai até às eleições autárquicas. «Depois, logo se vê», acrescentou. É claro que logo se levantou uma legião de talibãs para concluir, abusivamente, que o Presidente está disposto a demitir o Governo no dia seguinte às autárquicas. Ora, não foi nada disso que ele disse. Mas pôs-se a jeito: o problema é que Marcelo ainda não distingue bem entre a pele de comentador e a de Presidente. Dizer que há um ciclo político até às autárquicas, e que não é previsível que haja mudanças de cenários políticos ou de lideranças até esse teste eleitoral é uma análise. Posta na boca do Presidente, passa a ser um processo de intenção. O episódio, embora tenha, por agora, pouca importância, não deixa de colocar o PR sob vigilância, condicionando as suas declarações e iniciativas futuras. E o analista Marcelo devia ter, a montante, avisado disso o Presidente Rebelo de Sousa.