Uma tia-avó disse-me, uma vez, que estava encantada com o sermão do padre. Eu tinha uns 11 anos, mas fiquei curioso: “E o que é que ele disse?”. A minha tia tinha os olhos brilhantes: “Não sei, mas fala tão bem!”
Ouvi o discurso de Sampaio da Nóvoa, no último congresso do PS. Bem estruturado, empolgante, sempre em crescendo, o agora proto-candidato a Belém aqueceu a sala. Num estilo às vezes evangelista, noutras ocasiões mais intimista, ele tem o pathos que os gregos consideravam essencial na oratória. E tem um dom. A minha tia-avó teria adorado.
Depois fui ouvir a gravação: “Não quero perder Portugal, nem por silêncio, nem por renúncia.” Como?… “Neste tempo tão duro, ninguém tem o direito de se demitir, omitir.” (Uma coisa reforça a outra e a frase ganha ressonâncias poéticas). “É tempo de mudar de política, é tempo de mudar Portugal!” Eis algo que todos os líderes de todos os partidos em todas as campanhas eleitorais têm repetido ao longo de 40 anos. “Mudar de política” não é só um lugar comum: é uma senha para entrar no debate. A contrassenha vem a seguir: “É tempo de abrir um tempo novo para Portugal e para os portugueses”. “Tempo de abrir um tempo” parece feio, assim escrito, mas dito resulta bem. O resto… foi tudo assim! Mas o que é isto?!
No Congresso da Cidadania, Rutura e Utopia, Sampaio da Nóvoa entusiasma-se: “Eu sou livre, a ousadia já é metade da vitória”, para concluir, de novo no congresso do PS: “Não quero ver a minha Pátria à beira de um rio triste”. Um rio triste! Será o Tejo?
Sampaio da Nóvoa é um orador exímio – o que é ótimo, em campanha – e um académico prestigiado. De certeza que tem ideias. Ideias para os compromissos que recuperem a economia. Ideias para definir um projeto nacional. Ideias para mobilizar os portugueses. Ideias para influenciar mudanças na Europa. Ideias para reformar o Estado. Nos debates que aí vêm, nas entrevistas, no tirocínio da notoriedade o registo das frases-vazias-com-que-toda-a-gente-concorda não chega. Vão perguntar-lhe que iniciativas terá, no quadro da Europa e da Lusofonia. Como pretende estabelecer consensos na sociedade. Que ruturas julga necessárias. O que faria diferente do seu antecessor, e com que consequências. Finalmente, “com o que é que se compra os melões”. É por isso que ele deve lançar a candidatura cedo – para ser conhecido. Para o confronto com a realidade. Para ir ao concreto. Para ver se conquista os portugueses. E… para habituar o PS à ideia.
2 Já passaram três semanas desde o acórdão do Tribunal da Relação que confirmou a prisão de Sócrates. Desde então, a defesa do ex-primeiro-ministro tem andado mais discreta. E, no entanto, da decisão dos juízes sobeja uma constatação inquietante. Ao dizer que “quem cabritos vende e cabras não tem de algum lado lhe vem”, o tribunal concluiu que os indícios apontam contra ele. A isto chama-se “inversão do ónus da prova”, precisamente a questão fulcral quando se discute o enriquecimento ilícito. Pela primeira vez, um tribunal “descai-se”, tomando partido pela inversão. Ora, esta interpretação pode ter influenciado, sem base de sustentação legal, a manutenção de Sócrates na prisão. Ou seja, para a Relação, parece ter de ser Sócrates quem tem de justificar a origem dos “cabritos”, e não a Justiça quem tem de provar que eles vêm de “cabras” ilícitas