Quem nunca exigiu uma autoestrada, que atire a primeira pedra. A mensagem de Jesus Cristo tem 2 mil anos de existência, mas assenta como uma luva – e o termo “luva” é mais do que apropriado… – ao caso das PPP’s, que, esta semana, foi objeto de um relatório explosivo. Mais um documento a juntar a um já “antigo” parecer do Tribunal de Contas. Os responsáveis pela ruinosa política de Obras Públicas do Estado – que dura desde os governos de Cavaco Silva e conheceu o apogeu nos de Sócrates – têm nomes, moradas, números de telefone. Sabemos em que carros andam e ninguém lhes fura os pneus. São sobretudo políticos, de cuja assinatura dependiam os contratos, mas são também banqueiros, construtores, advogados. As obras estão cá. Nunca nos questionamos sobre se o País produz riqueza suficiente para poder pagá-las. O eleitorado votou sempre em quem prometia o melhoramento, o fontanário, a estrada alcatroada. Depois, a ponte, a autoestrada, o túnel, o viaduto… o TGV.
Ninguém está inocente. É fácil apontar culpados, mas cadê os outros? Os autarcas, com a sua chantagem caciqueira. Os líderes de estruturas partidárias locais, com a sua chantagem aparelhística. Mas também os comandantes de bombeiros, os pato-bravos locais, comerciantes, “forças vivas”. Finalmente, o povo. Nós. Fomos nós que exigimos uma estrada de seis faixas à nossa porta, e sem portagem. “Deviam ir todos presos”, ouve-se vociferar. E nós? Oiçamos Pedro Serra, antigo presidente das Estradas de Portugal: “A pressão para fazer autoestradas vinha de todas as partes. Por exemplo, atravessar a Serra da Estrela com um túnel era uma obsessão dos autarcas da região, à qual sempre resistimos. Mas essa obsessão estava sempre presente. Não passavam três meses que não recebêssemos uma diligência, um ofício dos autarcas a solicitarem a realização dessa obra. O que nos valia, às vezes, é que essa obra não estava prevista no Plano Rodoviário Nacional, e com isso nos íamos defendendo.”
O esquema é muito básico: um primeiro-ministro quer conservar o poder, baseado na popularidade. Promete uma obra que não pode pagar. Contrata financiamento com bancos e a execução com construtoras, e o Estado pagará três, quatro ou dezenas de vezes o valor em causa, no futuro distante, empurrando a fatura para gerações que hão de vir. Entretanto, ganhou votos. Pormenor importante: tem de haver obras suficientes para contentar todos os interessados, em sucessivos concursos públicos. Um esquema piramidal que, de caminho, dá para tudo, sempre que o decisor é menos honesto: comissões, financiamento partidário, clientelas políticas, lugares, tachos, prebendas. Esta é a pior parte, aquela de que não somos culpados, aquela pela qual os responsáveis devem pagar. Não pelas decisões políticas, que foram repetidamente caucionadas pelo eleitorado, mas pela gestão danosa, e em proveito próprio ou partidário, da coisa pública.
A expiral de mandatos de quatro anos, eleições consecutivas (legislativas, europeias, autárquicas), campanhas eleitorais e overdoses de sondagens tornaram a democracia autofágica. Consumiu-se a si própria, apodrecendo por dentro de uma casca reluzente de betão. E quem nunca votou neste estado de coisas que lhe atire a primeira pedra.