Em primeiro lugar, uma nota explicativa: este artigo foi escrito em parceria com o norte-americano Bruce Bird, com base em reflexões resultantes de várias viagens e etnografias que realizámos juntos, particularmente nos estados do Sul, com enfoque nos ‘rednecks’, caracterizados como: supremacistas brancos; sulistas; de baixa-renda; baixa-escolaridade; religiosos-evangélicos; fortemente conservadores; republicanos; machistas; racistas; na luta do bem (eles) contra o mal (os negros), são grandes defensores do direito de posse e uso de armas.
Nomeadamente nas zonas rurais e suburbanas, na denominada ‘middle America’ e nos estados do Sul, há uma forte cultura de posse e uso de armas, como um direito inalienável de todos os cidadãos. ‘The Right To Bear Arms’ está consagrado na Constituição, ratificada em 1788.
Inicialmente, o propósito era: utilizar ‘militias’ oganizadas contra a anarquia e a criminalidade e para proteger o governo e os bens públicos; as armas eram usadas pelos primeiros colonizadores europeus para caça (alimento) e proteção contra os nativos hostis, cujo território estava a ser invadido pelo homem branco; além disso, a lei e a ordem nessas áreas recém-abertas eram inadequadas ou inexistentes, exigindo armas para a sua proteção.
No entanto, nos últimos 230 anos, tecnologicamente, as armas sofreram alterações dramáticas. Além disso, nos últimos 30 anos, mudou também a finalidade: antes predominava o uso de armas para caça, desporto (tiro ao alvo) e proteção pessoal e defesa das propriedades rurais. Hoje, as que são compradas em lojas são de alta tecnologia, algumas capazes de disparar 45 tiros por minuto. O fuzil AR-15, efetivamente uma arma de guerra, é um dos mais vendidos. Em suma, associadas à utilização do ‘body armor’ (colete à prova de balas), essas armas, numa lógica de guerra, não são para proteção (defesa), como argumentam, mas para o ataque.
Pesquisas recentes indicam que, numa população de 330 milhões de habitantes (incluindo as crianças), 394 milhões de armas estão na posse de civis. O mais alarmante ainda é que cerca de 30% da população defende, se for necessário, a utilização da violência contra o governo, para garantir os seus direitos.
As consequências do uso generalizado de armas são enormes. Vejamos (os piores) exemplos de pessoas mortas num único ataque, cujo assassino utilizava armas pesadas: 2017, Nevada, 58; 2016, Florida, 49; 2007, Virgínia, 32; 2012, Connecticut, 27; 1991, Texas, 23; 2015, Califórnia, 14; 2009, novamente no Texas, 13; 1999, Colorado, 13; 2021, Indianápolis, 08. De acordo com um estudo da Universidade da Califórnia, somente em 2019, ocorreram cerca de 40.000 mortes e 115.000 ferimentos não fatais por arma de fogo. O custo económico estimado é de 229 mil milhões de dólares.
Não tendo espaço para abordar os inúmeros casos (em escolas, centros comerciais, etc.), vejamos dois exemplos que ligam o uso de armas, vigilantismo, conflitos inter-raciais e racismo, amplamente divulgados na comunicação social:
1. Brunswick, Geórgia – fevereiro de 2020, três homens brancos perseguiram e mataram um homem negro, Ahmaud Arbery, que estava a praticar ‘jogging’ (uma atividade física), por mera suspeita de roubo e fuga. Daí a expressão de cariz racista: ‘quando um branco corre está a praticar desporto, quando um negro corre está a fugir da polícia’.
2. Kenosha, Wisconsin (área metropolitana de Chicago) – agosto de 2020, a polícia atirou num homem negro, Jacob Blake, deixando-o paralisado. Durante o protesto anti-racismo, um jovem branco (17 anos), Kyle Rittenhouse, atirou e matou dois homens brancos e feriu um terceiro.
Consequências jurídicas? Os assassinos de Arbery foram considerados culpados de homicídio. No entanto, Rittenhouse foi absolvido, com base justamente na lei do estado de Wisconsin, que define que alguém que possua ou ande armada, mesmo que com uma arma perigosa, como foi o caso, é apenas uma contravenção e não um crime. No entanto, a razão (e a intenção) da presença de um jovem branco, à noite, com um rifle de guerra AR-15, no meio de uma manifestação antirracista, não foi levada em consideração. O mais grave ainda é que isso está a ter uma enorme repercussão social e política: republicanos proeminentes, incluindo Tucker Carlson, o apresentador de televisão mais assistido da Fox News, estão fazendo dele um herói e o promovendo como um possível candidato à ‘Congressional Medal of Honor.’
Isso só prova que a América está (socialmente) doente: existe um expressivo grupo de brancos racistas que defende a posse/uso de armas, não como defesa, mas para garantir (militarmente) a ideologia da supremacia branca. O facto de que, a médio prazo, serão uma minoria étnica-racial – a denominada “white replacement ideology” – justifica, segundo eles, a exclusão e a morte de negros e de outras minorias e, para isso, precisam do acesso livre às armas de guerra altamente sofisticadas.
Infelizmente, esta verdadeira tragédia não tem um fim à vista, pois o poderoso lobby da National Rifle Association, reforçado na altura pelo governo de Trump, continua ainda hoje a financiar campanhas políticas e a comprar políticos que defendem este ‘direito’ constitucional. Ao fazê-lo, eles parecem não ter problemas em tentar anular as eleições se os resultados não forem a seu favor – como foi o caso da derrota de Donald Trump, nas eleições presidenciais de 2020, e a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021 -, pondo em causa a garantia da histórica democracia Americana.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.