Quando vamos a um médico ou um psicólogo, quando precisamos de um arquiteto ou de um engenheiro, quando um advogado ou um contabilista age em nosso nome, queremos ter garantias de que estes profissionais cumprem as suas funções com rigor técnico e padrões deontológicos. São estas exigências da natureza da profissão e do interesse público na sua atividade que importa proteger. Por isso não as deixamos desamparadas na mão invisível do mercado e criámos ordens profissionais.
Esta quarta-feira debate-se na Assembleia da República a lei-quadro das ordens, por iniciativa do Partido Socialista. O Grupo Parlamentar do PS apresenta uma iniciativa corajosa, mais que tudo, pelo significado que terá para os jovens que querem aceder a estas profissões reguladas. Indo ao encontro dos alertas e das propostas que a Juventude Socialista (como outras organizações de juventude) têm vindo a afirmar há muitos anos, o Grupo Parlamentar do PS estabelece um quadro de regras para os estágios profissionais que visa proteger a liberdade e acesso à profissão, protegida pelo artigo 47.º da Constituição da República Portuguesa.
Cada profissão tem a sua especificidade, mas não é aceitável que, na sua diversidade, os estágios excluam aqueles que menos têm ou, pior, que o façam de forma mais generalizada, com intuitos corporativos de proteger o rendimento de quem já entrou na profissão. Por as barreiras económicas ao acesso à profissão serem uma afronta à justiça social e à igualdade de oportunidades, o PS exige que os estágios sejam remunerados, tenham uma duração máxima de 12 meses e que as suas taxas sejam apenas as adequadas, necessárias e proporcionais. Porque o estágio não pode ser uma prova descaradamente olímpica, para que muitos fiquem para trás, o PS exige que as avaliações não dupliquem matérias que constam da formação académica que já é exigida e, ainda, assegura um júri independente, que deve integrar personalidades externas.
A justiça deste novo quadro para os estágios profissionais é de tal forma evidente que está longe de ser o foco das críticas. Não ignoramos, porém, os receios de que a exigência de remuneração reduza a oferta de estágios. É um receio comum, tanto a quem os pode oferecer como também aos estudantes, cujos dirigentes associativos ouvimos na Cantina Velha da Universidade de Lisboa na passada sexta-feira 24 de junho. Todavia, não é um desafio insuperável. Na Ordem dos Psicólogos, o ano profissional júnior, equivalente ao estágio, é remunerado há vários anos e tem havido praticamente tantos estagiários como diplomados em psicologia, evidenciando que, depois de um período de adaptação, a dignidade dos estágios não é incompatível com a sua ampla disponibilidade. Isto não quer dizer que, no rescaldo desta reforma, não seja necessário apoiar essa adaptação, nomeadamente os custos de receber um estagiário para os patronos que não o conseguirem suportar.
Os mais conservadores têm, pois, apostado o seu ataque noutras facetas desta lei. Um desses pontos de aparente divergência é o reforço do quadro de supervisão das ordens que, ao contrário do que alguns veiculam, não tem membros indicados pelo Governo mas tem, necessariamente, pessoas externas à profissão, como, de resto, também é prática na magistratura e noutros quadros de supervisão. Deve-se, no entanto, destacar também o reforço dos poderes de fiscalização e disciplinares das ordens, a garantia de igualdade de género nas candidaturas aos seus órgãos sociais, a maior abertura às sociedades multidisciplinares, o impedimento das ordens definirem que determinado ato só pode ser feito pelos seus associados e a criação de uma provedoria do cliente, que proteja os interesses dos destinatários dos serviços.
Esta é, por isso, uma reforma abrangente, ambiciosa e apoiada por muitos anos de recomendações de prestigiadas instituições nacionais e internacionais que, há muito, apontavam os custos económicos desta regulação anacrónica das profissões. É, por isso, também, uma das reformas negociadas com a Comissão Europeia para execução do PRR. Se estas instituições apontam para a folha de Excel e vêm os custos do atual regime, enquanto jovens, conhecemos, à nossa volta, a dimensão humana deste imbróglio, que nega a muitos o acesso a um sonho e, consequentemente, à sociedade a atividade de profissionais apaixonados e competentes.
Afinal de contas, esta não é uma causa apenas sobre a liberdade dos jovens profissionais ou aspirantes a profissionais nas áreas reguladas. É sobre todos nós, enquanto sociedade, e a nossa liberdade para podermos confiar nestas profissões reguladas. O caminho não pode ser, por isso, nem extinguir as ordens (como alguns pretendem) nem deixá-las ser capturadas por interesses particulares. Em conjunto, ouvindo a sociedade, como o PS tem vindo a fazer, podemos construir melhores regras que deem garantias à sociedade quanto à atividade destas profissões e liberdade e dignidade aos jovens que as querem exercer.
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