Agora que recomeçou o campeonato português e voltámos a falar apaixonadamente de futebol, faço uma pergunta: alguma vez imaginámos ver vários clubes de futebol vestirem a mesma camisola? Nunca na vida! Por definição os clubes não se podem diluir uns nos outros. Quando se juntam é como adversários. Cada um defendendo as suas cores, numa competição que se quer saudável mas renhida. É este o espírito da bola. A esfera que move milhões de adeptos e, por via deles, receitas fabulosas, que alimentam por sua vez muitos negócios à escala planetária.
Apesar de todo este poder, também o mundo do futebol colapsou devido ao novo coronavírus. Com os campeonatos suspensos e os estádios fechados, a pandemia ficou para sempre inscrita na história do desporto-rei como o inimigo traiçoeiro e invisível que fez uma invasão de campo contra todas as regras e não foi possível neutralizar.
Mas se há coisa que faz parte intrínseca do mundo do futebol é o espírito guerreiro. Por isso, mesmo com os estádios fechados, muitos dos nossos heróis desportivos uniram-se numa frente comum e pela primeira vez vestiram a mesma camisola! Cristiano Ronaldo e Messi, quem diria, foram um só! Cristiano ofereceu equipamentos clínicos para unidades de cuidados intensivos de hospitais de Lisboa e Porto. Messi doou 1 milhão de euros para o reforço de duas unidades hospitalares, uma em Barcelona, outra na sua Argentina natal.
Impossível não sublinhar a importância de Cristiano Ronaldo, que parece sempre saber onde estar no momento certo. Competitivo, profissional, obstinado. Tem a clareza dos gestos solidários. Com aquela altivez de nascença, aquele espírito de nunca desistir, com a sua força congénita, usa a torrente do sangue que lhe atravessa as veias para dar o exemplo. E quando se trata da solidariedade, quando percebe que a sua acção se torna indispensável, solta as rédeas a um caráter de ferro maciço e lá está ele, a fazer história.
Mas, além de Ronaldo e de Messi, foram muitas as estrelas da bola que se colocaram em campo contra a Covid-19, e nem sequer foi preciso apelar às grandes reservas do seu caráter. Guardiola, Sérgio Ramos, Suárez, Lewandowski, entre muitos outros, também responderam a esta chamada, fazendo doações em dinheiro e em equipamentos médicos.
Atletas que, no mundo do desporto, se habituaram a lidar com as incompreensões quotidianas, os ódios instantâneos, as maldadezinhas recíprocas e os fabulosos relâmpagos de glória que só o desporto proporciona, mostraram que são capazes de se aventurar sem reticências no mundo da solidariedade. Provam, mais uma vez, que o desporto não é apenas uma forma de entretenimento, mas sobretudo um instrumento para construir uma cultura do encontro, da fraternidade e da solidariedade, caminho seguro para a construção de um mundo mais pacífico e justo.
Os próprios clubes não quiseram ficar atrás e foram muitos os gestos que expressaram um sentimento de solidariedade que colocaram bem acima de qualquer rivalidade, disponibilizando os seus quadros clínicos para ajudar na luta contra a Covid 19 e os estádios para a instalação de hospitais de campanha.
Nem os adeptos quiseram ficar a assistir na bancada a este movimento solidário. Houve quem optasse por doar o dinheiro do reembolso dos seus ingressos anuais pré-comprados a fundos de ajuda aos serviços de saúde. Foi o que aconteceu, por exemplo, com muitos adeptos do Bayern de Munique. Em Bérgamo, os cerca de 40 mil euros do reembolso dos bilhetes já comprados para o Valência-Atalanta, que acabará por se realizar à porta fechada, foram doados a um hospital da cidade.
Isto deixa qualquer um aturdido, porque revela uma espécie de fé. Como se todos, em conjunto, brilhassem com uma estranha luz, todos pisassem uma só linha de emoções sem quebras. Acreditassem. Acreditassem, verdadeiramente.
Juntos, dirigentes, funcionários, jogadores e adeptos alinharam no mesmo jogo e venceram de goleada. Nunca se tinha visto um espectáculo assim, arrebatando a taça da solidariedade.
Isto foi e é uma vitória inverosímil contra a adversidade. E contra a realidade da violência do futebol, das ameaças e do radicalismo. O mundo do desporto ainda exigirá outras provas gigantescas, mas eis uma certeza: desta vez, grande parte dos profissionais que gravita à volta do futebol alcançou uma outra margem de dignidade. O futebol, afinal, tem um poder e um potencial “macio” ao serviço do diálogo para a resolução dos conflitos, dos preconceitos e das crises.
Foram golos de paz. Uma goleada contra a pandemia.