Dia 89.
Há uma máxima que devíamos aprender de pequeninos. Mais vale ficar calado e passar por parvo do que abrir a boca e confirmá-lo. Sobretudo quando se lidera uma equipa ou uma organização, falar profusamente e intervir demais é um risco ainda maior do que optar pelo silêncio. Sobretudo em tempos de enorme incerteza. Mais vale dizer apenas o que se tem a certeza e assumir o que não se sabe, do que passar informações contraditórias que descredibilizam todo um discurso.
Tem claramente sido esse o caso da Organização Mundial da Saúde (OMS). Feito o balanço aos últimos seis meses, estava a evitar chegar aqui, mas já não há como dizê-lo de outra maneira: a comunicação da OMS tem sido incoerente, confusa e por vezes errada.
Desde o início da pandemia que tenho desculpabilizado algumas tiradas infelizes da organização com a evidência de que este é um vírus novo, com características, comportamento e evolução que desconhecemos, e que a partilha da informação é feita quase em tempo real, à medida que se vai avançando nos estudos.
O papel da OMS deve ser o de farol em tempos de escuridão: aquela que ilumina e aponta caminho, opta pela segurança e não se deixa levar por entusiasmos, separa o trigo do joio. Por isso, deve falar pouco, mas de forma segura, firme e à prova de bala.
Os casos de incoerência e contradição têm sido mais que muitos. Já nem vou ao início, quando a OMS se tardou em classificar como pandemia apenas a 11 de março o que já se percebia que era muito mais do que uma simples epidemia localizada. Vou às informações dadas depois disso. Uma situação agravada pela profusão de pessoas que falam em nome da instituição.
Foi o caso dos possíveis efeitos secundários do Ibuprofeno no tratamento da Covid-19, que a Visão noticiou citando vários estudos a propósito de outras infeções viriais. A OMS começou por desmentir as declarações do médico francês que primeiro alertou para o tema, para depois voltar atrás e desaconselhar o seu uso. E depois vir, afinal, dizer que não desaconselhava os anti-inflamatórios e deixar ao critério dos médicos. Uma grande confusão: por todo o mundo, ninguém percebe muito bem o que deve ou não tomar.
Depois foi a história das máscaras: usar ou não usar, eis a questão. Parece simples, mas tem sido muito complicada. Primeiro não era para serem usadas pela população em geral e apenas pelos doentes. Dizia-se que era ainda era mais arriscado para contrair o vírus (porque as pessoas não sabiam colocá-las). Depois, afinal, passaram a ser recomendadas para todos e para se usarem o mais possível em espaços públicos.
Outro episódio infeliz foi o caso da possibilidade de uma segunda vaga da doença. Num dia a diretora do departamento de Saúde Pública da Organização Mundial de Saúde diz que é “cada vez mais” improvável uma segunda grande vaga do novo coronavírus”, escassos dias depois o diretor-executivo do programa de Emergências Sanitárias da organização, Michael Ryan, contradiz as declarações da colega e sublinha que é preciso “estar ciente de que a doença pode disparar a qualquer altura”.
A cereja no topo do bolo são as declarações de ontem sobre os assintomáticos. Desde o início que sabemos que são um perigo invisível. A VISÃO fez aliás capa com eles, alertando para o perigo silencioso de contágio que acarretam. A razão pela qual todos usamos máscaras em espaços públicos é precisamente essa: como não exibem sintomas, não sabemos quem pode estar contaminado e a propagar o vírus. E por isso todos se devem acautelar.
Veio agora a OMS dizer que afinal não é bem assim. “Parece raro que uma pessoa assintomática transmita a infeção a outro indivíduo. É muito raro”, disse ontem a responsável do departamento de doenças emergentes e zoonoses da Organização Mundial de Saúde, Maria Van Kerkhove. A porta-voz preferencial desde o início da pandemia de Covid-19 está na linha oposta à que tem sido seguida até agora e que deixa todos desconfortáveis: afinal, estamos a acautelar-nos em demasia quando afinal os assintomáticos não são assim tão contagiosos?
Note-se: esta mensagem da OMS é imprecisa e irresponsável. Como bem sublinhou Filipe Froes à VISÃO, “quando mais se esperava uma voz lúcida e serena, surgem discursos contraditórios e uma estratégia de comunicação incoerente”. A responsável fez confusão. Há vários tipos de assintomáticos, e os riscos que acarretam são muito diferentes, e por isso não se pode dizer que seja rara a transmissão, sublinha o especialista.
Numa altura decisiva para a evolução da pandemia, este tipo de discurso contraditório só desajuda. Desincentiva os cuidados de contenção e estimula os que desvalorizam o papel da organização, como Donald Trump e Bolsonaro. É evidente que a OMS faz muita falta e é absolutamente fundamental nesta luta que o mundo trava. Mas a OMS está a falar mal e, sobretudo, está a falar demais. Calem-se e organizem-se, por favor!