Dia 41.
No Grande Confinamento mundial, todas as aparições públicas passaram a ser feitas entre quatro paredes. Nestas novas paisagens mediáticas, seja na televisão ou nas redes sociais, um objeto caseiro ganhou uma importância extraordinária para todos os que querem ser ou parecer alguém: a bela da estante.
Aparentemente, nunca foi tão importante como agora ter uma, nem que seja para ser mostrada ao mundo. Há, por estes dias, um verdadeiro Campeonato da Estante em curso. É a maneira mais rápida para tentar mostrar ao mundo, sem margem para dúvida, ser um efetivo amante da cultura e do saber.
A variedade, essa, é imensa. Há as estantes singelas, com meia dúzia de prateleiras, há as ambiciosas, com vários blocos, e há as enormes que ocupam várias paredes de uma divisão. Há as modernas e minimais, as clássicas em madeira e as de design elaborado. Há as estantes improvisadas e criativas, as democráticas Billy do Ikea e as caras que são feitas à medida por um carpinteiro. Há as contidas e as que se espraiam pela casa toda, ocupando várias divisões. Há as caóticas, as alinhadinhas e as de coleção. Há as que misturam livros com objetos de decoração, as arrumadas por cores e as que o recheio parece comprado ao metro para ocupar lugares vazios.
Sempre nutri, é verdade, um certo fascínio por elas. Tenho mesmo um quê de voyerista nesta matéria, confesso. Toda a vida, sempre que via alguém fotografado à frente de uma estante, dedicava-me com afinco extremado a tentar adivinhar as lombadas, tentando decifrar as escolhas óbvias e as improváveis.
Afinal, a estante de cada um diz tanto sobre o seu dono. Diz-me o que lês, ou pretendes ler (porque a intenção já marca pontos), e dir-te-ei quem és. É uma estante singela, ou uma coisa volumosa, de um verdadeiro amante dos livros? Aparenta existir ali para ser usada ou só para ser mostrada? Os livros chegaram ao seu dono por herança, são objetos recentes ou foram comprados e acumulados ao longo de uma vida? Inclui a biblioteca só volumes dispersos, coleções inteiras ou obras encadernadas em pele e ornamentos dourados? A escolha recai sobre os clássicos de antigamente? Prefere a pessoa a ficção ou não ficção? Literatura light ou pesada, jovens escritores ou consagrados? Inclui biografias de personalidades históricas? Livros de ciência? Bestsellers internacionais? Obras em línguas estrangeiras? Tanto por onde espiolhar… Conforme o mix de escolhas, diferente é a imagem que o seu dono passa ao mundo.
Nesta quarentena, algumas prenderam a minha atenção. No topo da lista, está a do Francisco Rodrigues dos Santos, novo líder do CDS, que parece a biblioteca do meu falecido avô – carregada de coleções encadernadas a cheirar a mofo e ordenadas por cores. Nos comentadores políticos, a competição é renhida, entre as estantes de Pacheco Pereira, Marques Mendes e José Miguel Júdice (Jorge Coelho, por seu turno, aparece à frente de um cortinado branco), embora Nuno Rogeiro vença na profusão e ocupação milimétrica de todos os espaços livres. E há ainda quem se entretenha a fazer outras coisa: Phil Shaw, o livreiro que alinhou 26 obras de forma a conter uma história com os títulos. Mas a mais cómica mandaram-me hoje. Uma imagem (talvez um meme com uma montagem, mas hoje em dia tudo é possível), com um cenário para videochamadas em cartão de uma biblioteca bem recheada, por “apenas” 150 euros.
Ah, o Campeonato da Estante! Há quem o ache um exercício pretensioso. Uma tentativa irritante de tentar demonstrar saber através de metros de lombadas. Eu não, acho que tem alguma utilidade. Se é para escolher um campeonato, eu cá gosto do Campeonato das Estantes. Sempre pode ser inspirador para quem nunca folheou um milhar de páginas. Um bonito exemplo a seguir. Em tempos de confinamento e quarentena, nunca um livro nos fez tanta falta. Como dizia Saramago, a leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar noutro lugar. No dia Mundial do Livro, e já agora o dia em que Shakespeare faria 456 anos, palmas para todas as estantes recheadas de Portugal!