O anúncio publicitário natalício Le Mal-Aimé (O Mal Amado) da cadeia francesa de hipermercados, também presente em Portugal, começa com a oferta de uma prenda de Natal, um peluche de lobo, que assusta uma criança. A representação de um lobo que, pela sua natureza e pela tradição literária, traduz o perigo e o mal.
A partir daqui, o anúncio opera uma deslocação decisiva, já que revisita o mito do lobo mau. Este não surge como verdadeiro predador, mas como um excluído, impedido de participar na comunidade dos habitantes da floresta. Aparece, depois, outro animal habituado a esconder-se numa bola de espinhos, o ouriço-cacheiro. É este que, corajosamente, diz ao lobo que não deveria comer todos os animais da floresta. A frase espoleta uma crise de consciência. Segue-se, por isso, uma espécie de travessia no deserto do lobo que passa fome por já não conseguir seguir os seus carnívoros hábitos alimentares. Percebe que não pode continuar a ser aquilo que a narrativa lhe reservou ao longo dos séculos. O lobo começa a cozinhar, não carne, mas vegetais. Aprende, falha, insiste e persiste. Desse processo nasce uma especialidade francesa icónica: uma quiche, que vai permitir integrar o lobo num convívio entre todos os animais da floresta.
É esta história arquetípica que comove, e que, desde o início de dezembro, tem circulado massivamente nas redes sociais, apelidado de fenómeno planetário, atravessando fronteiras culturais e acumulando vários milhões de visualizações em poucos dias. Os comentários repetem-se em várias línguas para elogiar a narrativa de animação, que tem sido destacada pela imprensa gálica como 100 % francesa e 100% humana (Le Figaro, J. Kedroff, 14/12/2025). Foi, no entanto, a posteriori, que foi emergindo um outro discurso de que Le Mal-Aimé é brilhante, porque “não usou inteligência artificial”. Esvaziou-se desse debate a importância da narrativa do lobo mau revisitada e reformulada, bem como as várias dezenas de artistas que, durante mais de seis meses, conseguiram produzir uma pequena obra de arte de cerca de dois minutos. Esse movimento conseguiu, apesar de tudo, ostentar os bastidores da criação artística, uma prática que não é inédita. Aliás, a literatura sempre conseguiu expor deliberadamente o processo de criação literária, bem visível numa das obras do Nobel da literatura, André Gide, em Les Faux-Monnayeurs, e n´A Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queiroz, onde se desconstroem ironicamente os mecanismos da ficção novelística. Mostrar a construção das obras permite exibir o processo criativo, revelando a sua complexidade e processo de construção, que uma IA não consegue atestar, a não ser pela transparência na revelação das ferramentas e dos prompts (comandos) utilizados.
Contudo, a afirmação de que Le Mal-Aimé foi feito “sem recurso a IA” é, hoje, uma falsa questão. Pode ser verdadeira num sentido exato – o de não ter recorrido a IA generativa para criar imagens ou narrativa – mas é enganadora enquanto descrição das condições reais de criação contemporânea. Nenhuma obra audiovisual atual consegue existir fora do ecossistema da inteligência artificial: softwares inteligentes, motores de pesquisa, sistemas de edição, fluxos de produção, plataformas de difusão e algoritmos de amplificação fazem parte do processo, mesmo quando invisíveis. A criação contemporânea já não se faz com ou sem IA; faz-se num mundo já impregnado dela. Transformar a ausência de IA generativa para validar um selo de pureza estética ou moral empobrece o debate e pode desviar a atenção do essencial. Isto pode, eventualmente, ser lido à luz daquilo que Harold Bloom chamou de “angústia da influência”, onde antes a inquietação recaía sobre a relação com os modelos do passado e com o cânone literário. Hoje, essa ansiedade transfere-se para o dispositivo tecnológico. Procuramos localizar, neste caso, a sua ação fora da “criação publicitária”. Não se valoriza suficientemente a herança de Le Mal-Aimé, que não é exclusivamente técnica e formal; é narrativa e simbólica. O anúncio inscreve-se claramente na tradição das fábulas de La Fontaine, onde os animais refletem a condição humana, e assenta numa memória afetiva partilhada através da popular canção Le Mal Aimé (1974) de Claude François. A emoção nasce de inúmeros fatores, entre outros, o cruzamento dessas influências, não da sua negação.
Dizer que o anúncio é extraordinário por não ter usado IA é, pois, cometer o mesmo erro lógico, que poderá ter levado à rejeição de outros anúncios recentes, nomeadamente da cadeia americana de fast food. Em ambos os casos pode confundir-se a ferramenta com o conteúdo. O que distingue Le Mal-Aimé é a sua “inteligência narrativa” e o seu valor artístico, a reescrita consciente de um mito antigo num contexto contemporâneo inesperado, o de uma cadeia de supermercados que, ao mesmo tempo, pretende promover hábitos alimentares mais saudáveis, numa lógica de sustentabilidade e numa pedagogia sem dogmatismos aparentes. O anúncio pode, por isso, ser lido como um incentivo a uma alimentação mais saudável, mesmo que não exclua críticas a uma imposição subtil de uma cultura vegan.
Não posso deixar de destacar o papel fundamental do ouriço-cacheiro que é decisivo nesta releitura da narrativa do lobo mau, que não confronta e, inicialmente, se protege e mede a distância. É curioso que esta escolha coincida, visualmente, com a personagem do conto Erinaceus, uma edição de autor minha (novembro de 2025), feita para um workshop para crianças, numa abordagem preparada para estimular a leitura e a escrita de contos, bem como de boas práticas do uso da IA. Segundo Els Picard, que assina o prefácio, o “livro é muito mais do que uma história infantil. É uma celebração da empatia, da imaginação e do poder das palavras para unir corações”. Excluem-se, pois, influências diretas, mas pode ver-se uma convergência e necessidade cultural, já que são duas narrativas independentes que chegam a representações e valores (humanos) parecidos, ou seja, a aceitação, a empatia, o crescimento emocional e uma ética do gesto.
Parece-me injusto dizer-se que Le Mal-Aimé é um fenómeno global, porque rejeita a IA, pois o anúncio reconta, com uma aguda consciência da sua herança, uma história antiga: o proscrito que procura aceitação. O estúdio de animação francês Illogic Studios, fundado em Montpellier em 2017, consegue sublimar e fundir várias artes, que não dependem exclusivamente da tecnologia. Julgo que o melhor debate que este anúncio convoca é, na verdade, estético e autoral. As ferramentas não são lobos, nem carregam culpas e intenções morais. Evoluem ao longo dos tempos, e acabam por tornar-se obsoletas e ultrapassadas. É na fruição e nas emoções imprevisíveis geradas pelas obras (independentemente da sua natureza) que talvez consigamos reconhecer a autenticidade humana. Boas Festas!
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