Há mais de uma década, num tribunal do interior do País, decorria um julgamento que tratava de uma questão sensível para a comunidade de uma pequena aldeia. A sala encheu-se de gente. Uma fação estava desejosa de que os arguidos fossem condenados, ao passo que a outra se indignava com a tremenda injustiça que representava o simples facto de aqueles terem sido acusados. Não haviam lugares de sobra. O público seguia apaixonadamente cada depoimento, cada requerimento e avaliava cada expressão que saía da cara do juiz. Ao cabo de várias sessões, o julgamento chegou ao seu momento final. Ministério Público e advogados iam proferir as suas alegações e tentar mostrar ao juiz o motivo pelo qual, no seu entender, os arguidos haviam de ser condenados ou absolvidos. Num momento de maior assertividade, um dos causídicos foi perentório em afirmar que algumas das testemunhas tinham mentido ao tribunal e apresentado versões falsas. O calor da argumentação transbordou para a audiência que, ciosa das razões da respetiva fação, se exaltou a níveis descontrolados. Num ápice, arguidos, testemunhas e público envolveram-se em tumulto e gritaria, aprestando-se a iniciar o confronto físico. Sem grandes meios para uma intervenção mais acutilante, o juiz deu ordem para que os contendores abandonassem a sala de audiências, mas a sua voz pouco ou nada era ouvida no meio da confusão que se gerou. Sem sucesso na sua intervenção, o juiz acionou as forças policiais que acorreram ao local e conseguiram dispersar as pessoas, garantindo a segurança de todos. A audiência foi interrompida e prosseguiu mais tarde à porta fechada. Identificados os responsáveis, o juiz ordenou a passagem de uma certidão com o relato do que havia sucedido, bem como das gravações do julgamento, remetendo ao Ministério Público para abertura do competente inquérito. Algum tempo depois, os responsáveis foram acusados do crime de perturbação de funcionamento de órgão constitucional e julgados perante um tribunal coletivo. Nesse julgamento confessaram os factos, pediram desculpa pelo sucedido e foram condenados em processo penal.
Não é por acaso que a lei confere ao juiz o poder de direção e disciplina das audiências de julgamento, tal como não é por acaso que prevê a possibilidade de aplicação de sanções aos intervenientes processuais ou às demais pessoas que assistam ao julgamento e que violem os respetivos deveres de conduta. Nuns casos a intervenção do juiz é meramente reguladora do bom andamento dos trabalhos, mas noutros, como no exemplo citado, pode até ser mesmo providencial para a segurança das pessoas presentes.
Quando falamos em poderes de direção acometidos ao juiz, há, em primeiro lugar, que perceber que, num Estado de Direito democrático, os tribunais consistem nos lugares onde a justiça se concretiza em nome do povo. De uma forma pública e perante a comunidade, discutem-se os factos, produzem-se as provas, em ordem a que o juiz possa, de forma equidistante, imparcial e independente, decidir como deve ser dirimido um determinado litígio ou como deve a paz social ser restaurada.
Neste âmbito, cabe aos juízes presidir ao julgamento, dirigindo os trabalhos, efetuando inquirições ou interrogatórios, garantindo o contraditório e ordenando diligências em ordem à boa decisão da causa. Mas ao juiz cabe também o poder de tomar as medidas necessárias para fazer cessar os atos de perturbação da audiência, para garantir a segurança dos participantes processuais e para moderar a discussão, proibindo os expedientes impertinentes ou dilatórios.
Por sua vez, sobre arguidos e os cidadãos que assistem à audiência impende o dever de apresentarem um comportamento de modo a não prejudicar a ordem e a regularidade dos trabalhos, bem como a respeitar a dignidade do lugar. Além disso, diz a lei, devem acatar as determinações relativas à disciplina da audiência, adotando um comportamento respeitoso para com o tribunal.
Estes poderes e estes deveres não são uma concessão pessoal ao juiz, nem foram pensados para lhe conferir qualquer privilégio. Pelo contrário, estes poderes de direção consistem numa emanação direta da soberania popular. Se numa democracia, por definição, o poder reside no povo e se o poder judicial é um poder soberano exercido em nome daquele, forçoso é concluir que os poderes conferidos ao juiz, quer na direção da audiência, quer na decisão do caso, consistem em poderes populares, exercidos por delegação constitucional.
Por outro lado, sendo o escopo de qualquer julgamento potenciar a clarificação de factos, permitir a discussão dos argumentos em confronto e potenciar uma decisão que dirima o litígio, é fundamental que o juiz garanta não apenas a dignidade e a elevação dos trabalhos, como impeça que o tempo da justiça seja desperdiçado com manobras dilatórias, intervenções ofensivas ou de desrespeito pelas regras do processo.
Neste sentido, o juiz pode e deve advertir, repreender ou até sancionar aqueles que perturbem a audiência. Pode limitar intervenções, exigir concisão, impor a disciplina e a ordem sem as quais o objetivo do julgamento não se pode cumprir, com o inerente prejuízo para as partes ou para o interesse público. Por conseguinte, importa vincar bem que desrespeitar os poderes de direção do juiz e torpedear as regras do bom funcionamento dos julgamentos é, na prática, desrespeitar o próprio funcionamento da justiça. Quando um interveniente interrompe de forma abusiva, utiliza linguagem imprópria, desafia a autoridade do tribunal sem fundamento ou promove comportamentos que atrapalham a descoberta da verdade, não está apenas a colocar em causa o concreto indivíduo incumbido da missão de julgar, mas antes a ferir o interesse coletivo da sociedade em ter processos justos, céleres e eficazes. Está a afrontar o povo, cuja vontade se expressa através do funcionamento correto das instituições.
É por esse motivo que a lei prevê sanções para quem infringe a ordem da audiência, que vão desde a advertência à expulsão da sala ou, em casos mais graves, ao procedimento criminal. Estas possibilidades não são meramente simbólicas, mas antes instrumentos indispensáveis para garantir que ninguém se coloca acima da lei.
Contudo, impõe-se também sublinhar que a essencialidade da autoridade do juiz para o bom funcionamento da justiça importa sempre, da parte deste, o cumprimento rigoroso da lei e da imparcialidade no exercício da função, em respeito pelos direitos de todos os intervenientes. Os poderes de direção acometidos ao juiz não constituem uma forma de censura ou silenciamento, mas antes uma garantia de que o processo e a própria decisão final não são contaminados por pressões de qualquer ordem, sendo que o apuramento da verdade apenas pode processar-se num ambiente sereno e respeitador.
Nesta engrenagem, o juiz apresenta-se publicamente na veste de titular de um poder soberano exercido em nome do povo e por delegação deste. Os poderes que exerce são fundamentais numa sociedade que se quer desenhada em torno dos pilares da democracia. Por esse motivo, é altamente nocivo para um Estado de Direito todo o tipo de condutas que visem perturbar o funcionamento da justiça ou a instrumentalização do processo para outros fins. Na verdade, num tempo em que as democracias sofrem défices assinaláveis em vários pontos do globo e em que o Estado de Direito se vê posto em causa, designadamente por via do ataque à independência e à ação dos tribunais, importa reforçar a necessidade de se compreender que a audiência de julgamento visa resolver a situação de cidadãos concretos. Não é um espetáculo mediático, nem tão pouco um campo de batalha. É, antes, um local onde se procura a descoberta da verdade, a reparação e a decisão justa.
Por conseguinte, o respeito pelos poderes legais e soberanos conferidos ao juiz afigura-se, desde logo, como um imperativo cívico de respeito pelo próprio povo e pela construção coletiva que é a justiça, a qual não se alcança sem direção, regras, respeito e confiança.
Quando o juiz dá ordem de silêncio, organiza os tempos, interrompe uma intervenção despropositada ou repreende algum comportamento perturbador ou insultuoso, não está a exercer um capricho mas antes a cumprir um dever que lhe foi confiado pelo povo e pela Constituição. Desrespeitar esta autoridade legalmente conferida ao juiz não constitui apenas um desrespeito ao concreto magistrado, mas antes um desrespeito a toda a comunidade que o juiz representa. Num regime democrático, o tribunal é um dos rostos visíveis do Estado e o juiz é a sua voz no momento decisivo do processo. Os poderes de direção da audiência não são adereços protocolares, mas ferramentas indispensáveis para garantir que a justiça se faz com ordem, dignidade e equidade. Respeitá-los é respeitar o povo. E desrespeitá-los é, no fundo, recusar a democracia.
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