A nossa memória coletiva conhece o sismo de 1 de novembro de 1755. E a nossa memória coletiva guarda todas as grandes inovações dessa época que serviriam para prevenir novos desastres – nomeadamente as gaiolas pombalinas. O problema é que as “inovações” foram criadas para um tempo sem betão armado e menos de cem anos depois já o sistema tinha praticamente desaparecido. Ficou só a memória de uma cidade “preparada” para o grande sismo que voltaria.
Os dados estatísticos apontam que dos 3.5 milhões de edifícios existentes no País, cerca de 1.8 milhões foram construídos até 1980 (dados Pordata). Ou seja, metade do parque edificado do País não está dimensionado para ações sísmicas. Significa isso que colapsem ao primeiro “abano”? Naturalmente que não, mas não podemos atestar o seu contrário.
Alguns destes mesmos edifícios (especialmente os de maior importância urbanística – leia-se zona da baixa lisboeta e bairros históricos) sofreram obras de alteração e tiveram as suas unidades estruturais modificadas, tornando a sua resposta sísmica numa caixa de surpresas. Depois, temos os edifícios que passaram décadas (ou mesmo séculos) sem qualquer tipo de manutenção ou reabilitação, muito em consequência da estagnação urbanística ocorrida nas cidades. O parque habitacional está degradado e ultrapassou, em muitos casos, a sua vida útil, algo potencialmente mais grave nas estruturas em betão armado.
Porquê? Apesar de existirem regras de cálculo sísmico desde 1958, é apenas em 1983 que os regulamentos passam a considerar o cálculo sísmico de uma forma mais complexa e, durante uma fase de transição, muitos técnicos viam as novas obrigatoriedades com muita reserva. Existe uma “falha sísmica” de quase de 150 anos que ninguém quer ver.
A cidade de Lisboa por tipologia de construção:
Entretanto, Portugal passou a estar na moda e a pressão urbanística aumentou. E, com isso, levantou-se a questão da necessidade urgente da reabilitação do edificado existente. Para reabilitar era necessário licenciar e os municípios não tinham capacidade de resposta. Os pedidos de licenciamento acumulavam-se e a burocracia tornava os processos em verdadeiros pesadelos. Então, como se resolveu a questão? À portuguesa, naturalmente: facilitando. Os processos de reabilitação interior deixaram de ser licenciados, bastando uma comunicação, contando que não afetem a estrutura. O que poderia ser uma boa ideia choca de frente com dois pormenores importantes: o primeiro, que as necessidades funcionais das habitações mudaram e os novos proprietários não se contentam com as compartimentações existentes, sentindo necessidade de aumentar áreas; o segundo, que quem está a realizar os trabalhos de reabilitação não faz, muitas vezes, a mais pequena ideia de qual a filosofia estrutural inerente ao edifício e não entende o que são elementos estruturais do mesmo, especialmente nos mais antigos. Em Portugal, é possível ter um alvará de construção de obras privadas sem se ter nos quadros um engenheiro ou um arquiteto, o que não deixa de ser chocante. As alterações são feitas e inúmeras vezes só se recorre ao auxílio de um profissional qualificado depois de se ter modificado a estrutura de forma irreversível. Quando se recorre, claro, que bons acabamentos tudo escondem e os clientes têm outras preocupações.
Então e os edifícios novos? Bem, esses estão preparados. Tenham eles sido bem projetados e bem executados, claro está. Haverá de tudo, incluindo más surpresas. É que um apartamento vende melhor quando se diz que tem lavatórios da marca X do que quando se diz que a obra foi fiscalizada por uma entidade independente, que garantiu a qualidade da sua execução. Os clientes têm outras preocupações.
A verdade é esta: a segurança estrutural do local onde habitam não faz parte das preocupações das pessoas. Assumem que funciona. E no dia-a-dia, de facto, funciona. Até ao dia. Nesse dia veremos que fotos aéreas aparecerão nas notícias.
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