Estou de novo em Cabo Verde. É já a nossa décima quarta missão de trabalho em Neuropediatria, em onze anos. Sinto que regresso a um país que conheço como um amigo de longa data, a quem não é necessário dar grandes explicações após uma longa ausência sem palavras. Abraçamo-nos apenas e continuamos no ponto preciso em que nos tínhamos separado. Mas ambos estamos diferentes. Passaram-se dois anos e muita coisa aconteceu. Por aqui há novos edifícios, novos murais, novo presidente da república, novos restaurantes…
Chegamos tarde, aqui são duas horas mais cedo e eu ainda não me adaptei. Estamos alojadas nas instalações da embaixada de Portugal, destinadas aos cooperantes. São simples e suficientes. Do quarto vê- se o mar e, embora esteja um dia cinzento, a vista é bonita. Mar, mar e mais mar. Estava mesmo a precisar disto. A Ana, a Mónica, a Rita e a Luísa partem para tomar o pequeno almoço. Eu, como de costume, trouxe o material para o fazer, café, leite, pão, manteiga, compota. O cheiro do café e das torradas no quarto dão-me um conforto e prazer que só os que me conhecem muito bem podem imaginar. Lembro a minha filha Ana com seis ou sete anos quando chegava a casa e eu estava a lanchar. Quando o pai abria a porta ela exclamava:
– Cheirinho a mãe!
Monto uma secretária perto da varanda para trabalhar nos próximos dias: computador, cadernos, lápis de cor, canetas, o bordado que mal comecei, cola, tesoura para os meus recortes e colagens.
Perco-me no tempo. Envio e recebo mensagens dos que quero e me querem.
Por fim batem à porta e partimos juntas para o mercado “Sucupira”. Gostamos de lá ir cada vez que voltamos à cidade da Praia. O mercado é África. Toda a África condensada num grande quarteirão de quinze mil metros quadrados e quase 2000 comerciantes, entre cabo-verdianos de todas as ilhas e imigrantes africanos da Guiné, Senegal…
No Sucupira pode-se comprar um pouco de tudo, desde roupas novas ou usadas (enviadas em bidões de latão pelos familiares emigrados nos Estados Unidos) sapatos, produtos artesanais, artigos novos e usados, mobiliário, frutas, legumes, peixe, animais, produtos de beleza, comida, plantas. É também um ponto de encontro para muita gente. Do lado de fora da cerca que delimita a feira, há uma sequência de cubículos colados uns aos outros e protegidos do exterior por cortinas, onde se servem refeições baratas. Arroz com peixe ou carne, cachupa…
Lá dentro, naquele labirinto de ruazinhas apinhadas de comerciantes, há pequenos cabeleireiros femininos a cada esquina. Mulheres entrançam os cabelos a outras mulheres, fazem extensões com longas madeixas azuis, vermelhas, amarelas e põem missangas coloridas nos cabelos das crianças.
Homens jovens convidam-nos a entrar nas suas lojas, “senhoras, senhoras, vem espiar aqui. Teni bom preço pa nhos” (senhoras, senhoras venham ver. Faço bom preço para vocês)
Resisto a comprar todos aqueles tecidos coloridos de que tanto gosto, mas que já não sei onde guardar ou que fazer com eles. Cá fora vendem-se frutas, cereais em saquinhos plásticos, ervas e, leitõezinhos vivos metidos em alguidares. Cheira a frango assado, estamos esfomeadas, mas já são três horas da tarde e não encontramos lugar para almoçar.
No táxi de volta para casa, o condutor pergunta-nos se o não queremos contratar para irmos no dia seguinte ao Tarrafal. Explicamos que não somos turistas, a bem dizer já nos deveria ter sido concedida a nacionalidade cabo-verdiana, conhecemos os sítios, as gentes, os sentires. Gostamos do calor e da humidade, dos ventos alísios que vêm do Nordeste, nos secam a pele e nos enchem os cabelos de areia. Gostamos da cachupa guisada com um ovo estrelado e linguiça. Até começamos a gostar desta lentidão, desta resistência à mudança, do ” cá tem problema”. Não, não somos de todo turistas e olhamo-los até com ridícula superioridade quando connosco se cruzam em bandos.
A Luísa, a enfermeira do grupo, bonita, baixinha, mas com um coração gigante, quer ir dançar esta noite. Tenta arrastar-me em vão, a mim que nasci só para cantar e ver os outros a mover-se ao meu redor. Consegue convencer a Mónica, a nossa bela fisioterapeuta, o sol do nosso grupo. Somos tão diferentes! Como foi possível este milagre? Cinco mulheres entre os cinquenta e dois e os trinta e nove anos que decidiram há onze anos mudar uma pequeníssima parte do mundo. Tudo começou por causa da Ana Isabel. Passou outrora aqui férias e apaixonou-se por estas ilhas. Pensou que gostaria de vir aqui um dia e começou a trabalhar num projeto de cooperação na saúde que demorou três anos a sair das secretárias dos ministérios portugueses e cabo-verdianos. Dizendo melhor, não chegou a sair, foi arrancado de lá e posto em ação no fim de 2011, sem nenhum protocolo oficial assinado. Da primeira vez fomos apenas “apalpar terreno”, por nossa conta e risco. Tivemos entrevistas com a diretora clínica e a administradora do hospital Agostinho Neto e soubemos das necessidades delas na área da saúde infantil. Fiquei um pouco perplexa ao deparar com automóveis topo de gama num país de africano em vias de desenvolvimento. Mais tarde apercebi-me que apenas uma minoria é muito rica, alguns com fortunas feitas à custa de negócios ilegais. Outra das surpresas desagradáveis foi a quantidade de lojas “do chinês” que por aqui existem. A China, a troco de muito dinheiro, está a invadir África. No hospital existem médicos chineses só para tratar a população asiática que habita em Cabo Verde. Recusam deixar-se tratar pelos médicos locais.
A segunda vez que voltamos à cidade da Praia já fizemos consultas durante cinco dias. Vieram crianças de todas as ilhas para nós observarmos e decidirmos se deveriam ou não ir a Portugal para serem melhor investigadas ou tratadas. Apinham-se na sala de espera quentíssima e fazem muito pouco ruído. Algumas crianças grandes com paralisia cerebral vêm às costas das mães. Aqui uma cadeira de rodas é uma raridade. Temos visto muitas paralisias flácidas provocadas por espinha bífida. Temos tentado fazer um programa nacional de prevenção com o uso do ácido fólico a partir da idade fértil.
Por vezes temos uma consulta marcada e aparece-nos uma família inteira com a mesma doença. Uma vez veio o pai, a mulher oficial e todos os filhos desta, assim como os filhos da mulher não oficial (“mãe de filhos”). As mulheres partem do princípio que os filhos das outras são da sua família, pois são irmãos dos seus filhos. Exemplar!
Porquê trabalhar em África? O que aprendemos? O que levamos? O que trazemos?
Para mim, um dos pontos mais importantes é diversificar a minha atividade. Gosto de mudar de local de vez em quando e vir cá faz-me renascer um pouco. Vejo caras novas, outro tipo de doentes, menos regras, menos controlo, menos comissões. Claro que ao fim de uma semana já tenho vontade de voltar, mas isso é exatamente o que pretendo. Um dia, mais tarde, talvez passe aqui mais algum tempo, mas por agora chega. Este país é pequeno e dividido em dez ilhas. Habitualmente trabalhamos em duas: Santiago e São Vicente. Há ligeiras diferenças culturais entre as ilhas que estão provavelmente relacionadas com os povos que as colonizaram há centenas de anos. Talvez uma das coisas mais importantes para mim é o facto de esta sociedade ser uma caricatura da nossa e, dessa forma, cada vez que cá venho, me aperceber melhor do que se passa no nosso próprio País. Todos os erros ou trafulhices que aqui são feitos também o são em Portugal, apenas melhor disfarçados, com um pouco mais de vergonha. Portugal é quase África. Estamos separados por uma pequena língua mar e no nosso sangue corre muito do africano.
Durante os fins de semana que aqui temos passado tivemos a oportunidade de conhecer o Cabo Verde que não vem nos guias turísticos. A cor das pessoas vai escurecendo à medida que caminhamos para o interior. É aí que vivem os descendentes da Guiné e Senegal. As casas de tijolo inacabadas dão abrigo a pessoas e animais. Em Porto Mosquito vemos porcos e galinhas a sair de casas com naturalidade, a passear nas ruas, a banhar-se no mar.
As crianças são o que de mais lindo aqui existe. Vem-me à lembrança a canção do Carlos do Carmo: “parecem bandos de pardais à solta”. Vemo-los com dois, três anos, sozinhos nas ruas, misturados com outros pouco mais velhos que adivinhamos serem irmãos. O lado triste é que uma das maiores causas de mortalidade infantil é neste momento os acidentes domésticos, quedas abaixo de casas inacabadas, afogamentos na praia, envenenamento por tóxicos.
Há histórias arrepiantes da forma como algumas crianças deficientes vivem em Cabo Verde. Em 2006 uma jornalista descobriu em Lameirão, uma zona periférica da cidade de Mindelo, numa casa “tambor” (feita de bidões de lata), uma criança com paralisia cerebral, suspensa por uma barra de madeira abaixo das axilas e enfiada nua num buraco feito na terra. Era o Rony, de dois anos, com paralisia cerebral. A mãe era solteira e quando ia trabalhar enfiava-o naquele buraco, de pé e nu, de forma a ele fazer as suas necessidades. Este foi descoberto, mas muitos outros são igualmente muito mal tratados… Felizmente, nos últimos anos, temos assistido a uma melhoria impressionante na qualidade dos cuidados materno-infantis.
Hoje chove muito lá fora. Não é costume nesta altura, já não chovia há dois 2 anos. Trouxemos a chuva connosco, ainda vamos ser tratadas como feiticeiras. E somo-lo de certa maneira. Mas no bom sentido. Somos cinco feiticeiras que trazem as suas mãos, saberes e ternura para tratar estas crianças e ensinar estes médicos a um dia, prosseguirem o nosso trabalho sem nós.
A chuva é quente e tudo continua como se nada se passasse. Passeio na marginal e comigo cruzam-se novos e velhos, gordos e magros em fato de treino e sapatilhas, em passo acelerado ou a correr. Aqui o desporto e o corpo são um culto. Sinto que estão à nossa frente. O cuidado do corpo deve acompanhar aquele que devemos ter com a mente, uma disciplina vigilante que nos permita afastar maus pensamentos, obsessões, tristezas ruminantes que nos levam a sofrimentos inúteis. Mente sã em corpo são.
Acordo de noite com trovoada e com o barulho das portadas soltas a bater nas janelas. Chove torrencialmente e começamos a ouvir gotejar dentro do nosso roupeiro. Temos que retirar toda a roupa e sapatos, colocar baldes e toalhas. Uma aventura! Eu e a Mónica rimos como duas garotas e, já bem acordadas a meio da noite, vamos comer torradas com geleia de marmelo e ouvir música. Ela faz-me uma declaração de amizade e eu retribuo. É muito raro encontrar na vida uma amiga assim! Temo-nos acompanhado na alegria e na desgraça desde há onze anos, sem nunca falhar uma à outra. Temos consciência do valor que isto tem e celebramos periodicamente este sentimento. Por fim, cansadas, vamos dormir.
Acordo de novo às cinco da manhã, sete de Portugal. Tomo o pequeno almoço e ponho-me a escrever.
– “Modi qui bô manchi?” (como amanheceste?)?– pergunta-me a empregada que veio trazer toalhas.
– “Tud drett, obrigad “(Tudo bem, obrigada) – respondo também em crioulo.
Sim, amanheci muito bem. Sinto-me em estado de graça. Estado de escrita. Estou pronta para um novo dia, para dar e receber, para ver com olhos de ver todas as maravilhas que o mundo ainda tem para me oferecer. Para agarrar novas oportunidades se reconhecer o Bem. Para ser de novo feliz sem mágoas. Para Viver.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.