Caro leitor, cara leitora,
Se ainda acha que o machismo é um problema das mulheres, que o feminismo é a luta destas para tomarem o poder, ou que as desigualdades de género são uma invenção de «gente de esquerda», então, lamento dizer-lhe, está profundamente equivocado. A visão estereotipada da sociedade sobre o que significa ser homem ou ser mulher pode parecer muitas vezes subtil, mas não o é: já pensou, por exemplo, quantos pais são rápidos a oferecer bolas de futebol aos seus filhos, mas não às suas filhas? Ou quantas embalagens de cozinhas de brincar têm imagens de raparigas, mas não de rapazes? Estas expectativas são tudo menos inofensivas: elas condicionam as escolhas e os comportamentos de homens e de mulheres ao longo da vida e têm consequências muito negativas, por exemplo na saúde e no bem-estar de ambos. Basta olhar para os números arrepiantes da violência doméstica. Ou para a taxa de suicídios entre os homens, três vezes superior à das mulheres.
Os estereótipos de género deviam ter um aviso como o do tabaco: «Cuidado: discriminar mata.»
O velho ideal de masculinidade a que muitos homens aspiram — forte, conquistador, sempre pronto para a luta, etc. — eterniza as desigualdades de género e o ciclo de violência e opressão sobre as mulheres. O que não se ouve nem se lê tantas vezes é que ele também aprisiona os próprios homens, como se eles fossem ensinados a construir versões mais limitadas de si mesmos. Estas duas realidades são faces da mesma moeda:
um sistema patriarcal que está obsoleto e ultrapassado, mas ainda não enterrado.
Muitos homens resistem à mudança porque receiam que ela lhes possa ser prejudicial. Essa sensação de desassossego é natural, porque não é fácil abandonar o velho guião com que foram educados desde miúdos. É um processo incómodo e é normal que se sintam confusos e perdidos entre o velho paradigma, que já não serve, e um novo, que ainda está em construção. Mas é preciso dizer-lhes que o caminho, não sendo fácil, compensa. A igualdade de género não é um jogo de empate, como lembra o sociólogo Michael Kimmel na sua famosa TED Talk de 2015, «Porque é que a igualdade dos sexos é boa para todos — incluindo os homens»; é um jogo em que todos saem a ganhar. A libertação das mulheres será também a dos homens.
Depois da revolução do feminismo, esta é a hora da revolução da masculinidade, uma mudança que precisa da ajuda de todos, a começar pelos próprios homens, como explica Octavio Salazar, autor do livro El hombre que (no) deberíamos ser, numa entrevista ao diário espanhol El Mundo: «Perante o que está a acontecer, a primeira coisa que nós, homens, temos de fazer é olhar-nos ao espelho, analisar-nos e perceber o privilégio que gozamos pelo simples facto de sermos homens. E, depois, assumir a nossa parte de responsabilidade para transformar o statu quo. […] Há séculos que elas [as mulheres] questionam o seu lugar na sociedade, nós nunca o fizemos. A grande revolução pendente do século xxi é masculina. E só podemos fazer esse processo tirando todas as “camadas de cebola”, as máscaras da masculinidade que nos foram sendo impostas, tudo o que sempre significou ser “um homem de verdade”.»
No livro, Salazar propõe dez ideias-chave para alcançar a tão necessária revolução masculina. Segundo ele, os homens:
- Devem descobrir e assumir a sua responsabilidade na manutenção das relações de poder e de género, em que continuam a ser a parte privilegiada, agindo para transformar as estruturas de poder que mantêm as mulheres numa posição subordinada;
- Não devem estar ausentes da esfera privada, sendo agentes responsáveis nos domínios doméstico e familiar;
- Não devem acreditar que são seres omnipotentes. Devem ser cuidadores e assumir as necessidades dos outros;
- Não devem fugir do feminino. Devem assumir e valorizar a ternura e a vulnerabilidade;
- Não devem monopolizar o poder, o prestígio e a autoridade. Devem exercê-los de forma paritária com as mulheres;
- Não devem reproduzir os métodos e as palavras patriarcais. Devem transformar as maneiras de entender e gerir o público;
- Não devem ser o centro e a única referência da cultura, da ciência e do pensamento. Devem partilhar paritariamente os saberes e a construção dos imaginários coletivos com as mulheres;
- Não devem ser cúmplices das violências machistas nem das instituições patriarcais, como a prostituição.Devem ser radicalmente militantes contra a desigualdade, a violência e a exploração das mulheres. Devem ser especialmente ativos nos espaços ocupados por homens, mais do que assumir um protagonismo que não lhes compete nos espaços femininos;
- Não devem ser heróis românticos nem predadores sexuais. Devem ser educados para uma afetividade e uma sexualidade baseadas no reconhecimento da sua parceira (ou do seu parceiro) como um ser equivalente;
- Não devem continuar a legitimar a ordem patriarcal e o machismo como ideologia que a sustenta. Devem converter-se em homens feministas.
Se a palavra lhe gera desconforto, respire fundo. Nada tem a temer. Vários homens já começaram esse processo de autoquestionamento e participam ativamente na mudança, mas são precisos muitos mais para derrubar a cultura sexista em que ainda vivemos. Só reconhecendo que alguns comportamentos masculinos conduzem à violência, à opressão das mulheres e à hegemonia dos homens na sociedade, ao mesmo tempo que os prendem em caixas que limitam o seu papel na vida pessoal, familiar e profissional, será possível a afirmação de uma versão mais empática da masculinidade. Uma versão onde os homens se sintam confortáveis para mostrarem que são sensíveis ou vulneráveis, para falarem abertamente sobre as suas emoções e serem agentes ativos na luta por uma sociedade mais justa e igualitária.
Uma vez que os «estereótipos são transmitidos, e assimilados, através do processo de socialização», como bem lembra a antiga presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), Teresa Fragoso, para libertar os homens (e as mulheres) destas amarras é preciso repensar a forma como as crianças são educadas, não apenas em casa, mas também na escola. Os rapazes não nascem com desdém por atividades ou traços de personalidade que são vistos como femininos, não é algo que esteja inscrito no seu ADN. É a sociedade que os programa e os condiciona para que sejam dominantes, viris ou controladores, criando uma ideia muito pobre — e perigosa — do que é ser homem. Por isso, é fundamental diversificar o processo formativo para combater representações preconceituosas da masculinidade e da feminilidade, educando para a igualdade de género tanto em casa como na escola ou nos media.
O caminho para a libertação dos homens passa também por um maior envolvimento destes nos cuidados das crianças e nas tarefas domésticas — os relatórios sobre a paternidade no mundo mostram que em nenhum país as tarefas domésticas e de cuidado são divididas de forma igualitária. «Isto acarreta consequências para a vida familiar, para a igualdade de género, para o pleno desenvolvimento das crianças, e para a transformação de masculinidades, de forma a serem mais igualitárias, menos violentas e mais cuidadoras», afirma a socióloga Tatiana Moura, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
A investigadora revela que, em Portugal, apesar de a progressiva transformação dos papéis de género na família ter trazido um maior envolvimento dos homens no trabalho doméstico e de cuidado, estas tarefas, que não gozam de grande estatuto ou reconhecimento social, nem são alvo de qualquer remuneração, continuam a recair sobretudo sobre as mulheres: segundo os indicadores-chave de 2019 da CIG, elas dedicam mais 1h45 por dia a trabalho não pago, um fardo que se tornou ainda mais pesado durante o período da pandemia. «Este é o verdadeiro desafio. Que, tal como as mulheres, que ocupam hoje em dia cerca de 40% do trabalho remunerado, formal, no mundo, os homens façam o mesmo percurso: o de assumir a sua parte de trabalho de cuidado informal, remunerado ou não. Só assim assistiremos realmente a uma revolução nas relações de poder.»
Na sua TED Talk, Michael Kimmel explica como é que a partilha de tarefas domésticas e do cuidado com os filhos pode fazer uma grande diferença para os homens e para as mulheres:
Os dados mostram que, quando os homens partilham as tarefas domésticas e os cuidados com as crianças, as crianças têm melhores resultados na escola, têm menores taxas de absentismo e maiores índices de sucesso. Têm menos transtornos de atenção e hiperatividade. É menos provável que consultem um psiquiatra. É menos provável que fiquem sujeitas a medicação. Por isso, quando os homens partilham essas tarefas, os filhos são mais felizes e mais saudáveis, e os homens querem isso. Quando os homens partilham essas tarefas, as mulheres são mais felizes. E não só, as mulheres são mais saudáveis. Menos propensas a consultar um terapeuta, menos propensas a ter depressões, é menos provável que fiquem sob medicação, é mais provável que frequentem um ginásio, e apresentam níveis mais altos de satisfação matrimonial. Quando os homens partilham essas tarefas, as mulheres são mais felizes e mais saudáveis, e os homens, por certo, também querem isso.
Quando os homens partilham essas tarefas, os homens são mais saudáveis. Fumam menos, bebem menos e tomam menos drogas recreativas. É menos provável irem às urgências, e mais provável irem ao médico para consultas de rotina. São menos propensos a consultar um terapeuta, menos propensos a ter depressões, menos propensos a tomar medicamentos. Por isso, quando os homens partilham essas tarefas, são mais felizes e mais saudáveis. Quem é que não quer isso? Finalmente, quando os homens partilham essas tarefas, fazem mais sexo. [Risos]
[…] O que descobrimos é uma coisa muito importante: a igualdade dos sexos é do interesse dos países, das empresas e dos homens, dos seus filhos e das suas companheiras. A igualdade dos sexos não é um jogo de empate, não é um jogo de ganha ou perde. É um jogo em que todos ganham. Também sabemos que as mulheres e as raparigas não podem ter plenos poderes se não empenharmos os rapazes e os homens. Sabemos disso. A minha posição é que os homens precisam das mesmas coisas que as mulheres dizem que precisam para viver a vida que dizem querer viver, de forma a vivermos a vida que dizemos querer viver. Em 1915, na véspera de uma das grandes manifestações pelo sufrágio universal na Quinta Avenida de Nova Iorque, uma escritora nova-iorquina escre- veu um artigo numa revista. O título era «Feminismo para os Homens». A linha de abertura desse artigo era assim:
«O feminismo tornará possível, pela primeira vez, que os homens sejam livres.»
Só questionando criticamente o lugar de privilégio que ocupamos na sociedade, em domínios como a família, o mercado de trabalho, a educação ou a saúde, e assumindo a nossa responsabilidade de promover novos modelos de masculinidade, poderemos ser homens fora da caixa. Sem amarras. Sem máscaras. Livres, por fim.
Adaptado do livro “Os Homens Também Choram: retratos da nova masculinidade”, de Nelson Marques (ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos)