O TC acaba de publicar o elogio fúnebre às PPP da saúde. De facto, ao fazer o balanço de mais de 10 anos de gestão privada de hospitais públicos, o TC, no seu relatório – síntese das parcerias hospitalares no SNS, publicado em abril, conclui que esses hospitais foram melhores do que os que lhe são comparáveis no perímetro do SNS, em todas as dimensões em apreço. O problema é que esse relatório já nada adianta para a sobrevivência destas parcerias, porque elas estão praticamente extintas. Braga já terminou há quase dois anos, Vila Franca de Xira acabará este ano, Cascais e Loures parece que também não irão continuar.
Importará, por isso, perceber de forma desapaixonada o que se passou para se chegar a este resultado absurdo: o que foi um sucesso para o Estado e, sobretudo, para os cidadãos, tem como resposta o seu descrédito e o seu subsequente abandono.
1 – As PPP da saúde foram criadas no início deste século como resposta às dificuldades de gestão dos hospitais públicos, aos prejuízos acumulados e, ainda, às dificuldades do erário público em renovar a rede hospitalar, com investimentos diretos. As parcerias tiveram, por isso, dois veículos contratuais distintos: a) o financiamento da construção e da manutenção das instalações e dos equipamentos para um período de 30 anos, revertendo depois para o Estado; b) a gestão de toda a atividade clinica, por períodos de 10 anos, eventualmente renováveis. O primeiro veículo foi sempre mais fácil de definir e controlar, registando-se várias experiências internacionais, nomeadamente no Reino Unido, antes da sua aplicação em Portugal. A gestão da atividade clínica foi sempre mais discutível e objeto de inúmeras reservas, face à dificuldade em encontrar métricas suficientemente robustas e transparentes que permitissem retratar com rigor a efetividade e a qualidade dos cuidados prestados. Por essas razões a experiencia portuguesa foi reconhecidamente encarada como de alto risco, ao admitir a entrega ao setor privado do tratamento de doentes em nome do interesse público. Todo o processo contratual foi seguido de um conjunto vasto de mecanismos de verificação do cumprimento de variados indicadores, unidades de acompanhamento sediadas no Ministério das Finanças e nas Administrações Regionais da Saúde e uma supervisão política próxima e permanente. A conceção e implementação das PPP foi, assim, desenvolvida com elevado profissionalismo e rigor, de forma controlável e uma curva de aprendizagem progressiva à medida que novos hospitais foram entrando nesse regime (primeiro Cascais e depois, sucessivamente, Braga, Vila Franca e finalmente Loures) com entidades gestoras também diferentes.
2 – As vantagens inicialmente previstas das parcerias contemplavam os dois veículos contratuais: do lado do investimento, a viabilidade do Estado dispor de hospitais novos sem ter de suportar um gasto inicial para o qual não estava preparado. A este facto associava-se, ainda, a manutenção das instalações e dos principais equipamentos, que na gestão pública direta se vão rapidamente deteriorando e na esfera das PPP são objeto de critérios de manutenção preventiva fortemente controlados que contribuem para a boa conservação dos ativos e evitam tempos excessivos de inutilização. Do lado da prestação de cuidados, o objetivo seria, porventura, ainda mais ambicioso: menos custos, mais acesso a cuidados de saúde, mais doentes tratados, mais eficiência e um controlo rigoroso da qualidade e da segurança dos doentes. Para isso foi criado um “tableau de bord” inovador e com múltiplos indicadores, quer de natureza económico-financeira, quer de desempenho clinico, na estrutura, nos procedimentos e nos resultados. Os indicadores foram mais exigentes e incluíram mais dimensões do que as utilizadas na apreciação dos hospitais do SNS em gestão direta. ´
3 – O TC já tinha realizado 4 relatórios de auditoria às PPP entre 2014 e 2019, todos eles favoráveis ao seu desempenho e à sua continuidade. Do mesmo modo, diversas entidades independentes e tecnicamente reconhecidas procederam à análise das PPP em diferentes momentos, sempre com resultados muito favoráveis ao modelo de gestão clinica: a UTAP, a ERS e a IASIST (os hospitais de Braga e de Cascais têm saído vencedores dos prémios TOP 5 dos últimos anos, distribuídos por esta empresa aos melhores hospitais em cada ano), procederam a análises comparadas entre as PPP e os hospitais de gestão direta, e em todas elas os resultados parecem ser em grande parte coincidentes: custos de operação mais baixos, eficiência técnica superior, mais doentes tratados face aos ativos fixos instalados, maior produtividade dos recursos humanos e a mesma (e nalguns casos superior) qualidade nos resultados obtidos. De realçar que todos os hospitais em PPP têm que dispor de um sistema de acreditação aplicado por entidade internacional de reconhecido mérito e possuem um modelo de avaliação de satisfação dos doentes que conta para a avaliação global do desempenho em termos contratuais. O mesmo não se passa nos restantes hospitais da rede do SNS.
4 – Nada faria prever que este percurso de sucesso das PPP, traduzido numa poupança para o Estado de 203,3M€, segundo os cálculos da UTAP utilizando o designado “custo público comparável”, fosse objeto de reparos que inviabilizassem a sua continuidade, tanto mais que, quer a UTAP quer o TC, a aconselhavam. Introduzindo uma dimensão exclusivamente ideológica, partidos de esquerda e notáveis personalidades não-alinhadas que regularmente organizam abaixo – assinados, opuseram-se à continuidade das PPP com argumentos falsos, sem sentido e nalguns casos reveladores de um confrangedor desconhecimento dos mecanismos contratuais das PPP e da sua monitorização. Tudo isso em nome de um SNS preso a um modelo puro, imutável e em que os privados não podem entrar. Não se deram conta de que os argumentos favoráveis às PPP não têm um pingo de ideologia, mas apenas utilizam critérios técnicos e objetivos de apreciação em prol de um melhor serviço para os doentes e em defesa do interesse público, quer no domínio ético-deontológico, quer no domínio económico. Foi pena que o Governo se tivesse deixado aprisionar nesta voragem ideológica contra os cidadãos e o interesse público.
5 -Todos os relatórios e pareceres de que o Governo dispõe apontam para o sucesso das parcerias e recomendam a sua continuidade, ainda que com correções que a experiência destes 10 anos aconselhariam. Importa referir alguns dos principais problemas contratuais que as PPP apresentam: a) não recebem mais dinheiro quando, em determinada linha de produção, ultrapassam a atividade contratada. Isso pode limitar a oferta e fazer aumentar as listas de espera; b) o aparecimento de novas terapêuticas ou métodos diagnósticos avançados podem criar problemas de interpretação contratual, como aconteceu nalgumas parcerias e, com isso, pôr em causa direitos dos doentes; c) a liberdade de escolha na rede pública de hospitais, decisão deste governo em 2017, criou algumas incongruências contratuais, que importaria agora clarificar adequadamente; d) as questões que se colocaram sobre a responsabilidade na formação de médicos internos. Estas dúvidas resultaram muitas vezes em litígios entre as entidades gestoras e o Estado, mas mesmo aqui os valores em causa nesta década não ultrapassaram os 61 M€, sendo que o Estado viu ser-lhe reconhecido o direito a 22,7 M€, as entidades gestoras a 15,7 M€, estando por resolver as questões equivalentes aos restantes 22,3 M€. Com se vê, valores de importância reduzida num contexto anual de mais de 400 M€ de contratos com as PPP.
6 – Mas importa sobretudo destacar as ineludíveis vantagens das PPP quando comparadas com os hospitais de gestão pública direta. Considerando apenas dois hospitais (Braga e Cascais) encontramos “value for money” significativo nos seguintes indicadores: mais doentes tratados por cama; menos dias de internamento por doente; mais doentes tratados por médico e por enfermeiro; mais tempos de bloco operatório utilizados (a titulo de exemplo, em Braga foram utilizados 111% dos tempos operatórios previstos e nos hospitais de gestão direta comparáveis apenas 64%); mais primeiras consultas realizadas dentro do tempo recomendável; mais atendimentos de urgência respeitando os tempos máximos de resposta.
7- A situação que hoje se vive sobre as PPP é de fim de ciclo: os operadores sentem-se injustamente criticados e não mostram interesse em continuar; o governo deixa cair, uma após outra, as parcerias existentes, conformando-se, aparentemente, com a sua extinção, pese embora lhes reconheça o mérito. A situação desconfortável em que se coloca só tem uma explicação: não hostilizar a demagogia e a insensatez dos que sempre foram contra as PPP da saúde, recebendo em troca algum sossego no exercício do poder. É pena!