Evocar Manuel António Pina parece-me sempre um bom princípio. Acho que não se zangaria comigo por fazê-lo neste contexto.
Uma casa é as ruínas de uma casa. À medida que os números da pandemia começam a dar tréguas, é tempo de repensar as estruturas sociais, devolver-lhes a dignidade, reconstruir casas. A minha casa é o SNS.
Comecemos por estabelecer alicerces sólidos, que suportem todas as divisões. E, aqui, estamos a falar de cuidados de saúde primários. Este assunto não é novo. Vamos retroceder ao pré-COVID. É verdade que nas grandes cidades ainda há falta de médicos de família. Há assimetrias chocantes entre os recursos providenciados a quem tem um médico designado e aos que têm a infeliz condição de “sem médico atribuído”. Ainda se fazem filas às seis da manhã para conseguir a senha da consulta urgente. Ainda se esperam meses por um agendamento. Mas, ainda assim, nas grandes cidades, quando o centro de saúde falha, o acesso a hospitais é relativamente simples. Creio que a maioria dispõe de transportes públicos até à porta.
Os meus colegas médicos de família têm cerca de mil e novecentos doentes a cargo. Cada um. Mil e novecentos. Imaginem que têm um restaurante capaz de atender decentemente, vá, vinte clientes por dia. Tem de ser um de cada vez. E cabe-vos a vocês gerir que clientes precisam mais de comer em cada dia e o quê – cada um tem as suas intolerâncias alimentares, alergias, religiões, ideologias. Depois há os que todas as semanas reclamam, os que precisam de consultoria externa ou ajustes regulares da dieta. Todos os anos estes doentes deviam ser vistos, alguns de três em três meses. Para além de tratar doenças, também é preciso garantir rastreios, vacinação, receituários, relatórios, visitas domiciliárias. Mil e novecentos.
Falámos das cidades. Agora falemos do interior. As outras vigas da casa. Muitos centros de saúde têm extensões, uma espécie de sucursais, dispersas numa determinada distância, por forma a abranger o maior número de habitantes possível. Só que, aqui, acresce outro problema: o acesso ao centro de saúde. Nem sempre se tem carro ou boleia. E muitas aldeias estão isoladas, havendo um autocarro que passa numa paragem a vinte minutos a pé, ou mais. Quando não se consegue chegar até lá, tem de se mandar vir um táxi da praça e paga-se o percurso nos dois sentidos, na ida e na volta. Chegando ao centro de saúde, o médico às vezes resolve pedir exames – coisas simples, análises básicas, uma radiografia. Ora, isso só existe na cidade, já longe. Os transportes da junta de freguesia nem sempre existem e lá vem mais um favor que tem de se pedir a alguém, uma caminhada para o autocarro ou um dinheirão para o táxi. Afinal, o peito não me dói assim tanto. Afinal, até consigo aguentar a falta de ar. Quando o quadro piora, tem de se pensar bem antes de chamar a ambulância. O hospital distrital mais próximo está a hora e meia de carro; se calha a terem de levar para um hospital central, são mais algumas três horas. Para cada lado. Se isto não for nada, é uma trabalheira para voltar para casa. Se tiver de lá voltar para as consultas, ainda vão pedir mais exames. Se tiver de ficar internado, uma chatice para as visitas. Ah, não há-de ser nada, eu cá me arranjo.
Não estamos só a falar de uma camada envelhecida. De uma minoria, sim. Muitas destas pessoas estão em idade activa, pagam impostos.
Temos aqui um problema, portanto. Vários, na verdade. E, agora, como resolver? Sou apenas uma internista privilegiada, que trabalha num centro hospitalar universitário. Percebo pouco de políticas de saúde, de subsídios, despesas públicas. Mas creio que se pretendemos reerguer o Sistema Nacional de Saúde, temos de pensar em cada região como um todo. Um jovem médico ou uma família que se queira mudar para o interior, encontra com frequência graves limitações. Do ponto de vista profissional, há escassez de recursos e pedir uma consulta hospitalar ou uma Tac pode implicar viagens de horas. Os diagnósticos de ponta e as ambições de investigação clínica rapidamente esmorecem e há locais recônditos dignos de um João Semana. Que Medicina é esta? Que século é este? Depois, há os serviços e os estímulos locais. Não há incentivos suficientes. Estamos a falar de pessoas que, de repente, ficam desenraizadas, sem apoio familiar, longe de colegas e amigos, sem rede social de suporte. Ficam privadas de serviços bancários, finanças, cinemas, teatros, livrarias, ginásios, superfícies comerciais. A educação dos filhos já não poderá ser a idealizada, com as actividades extracurriculares de sonho. E é legítimo a balança pesar para o lado das ambições pessoais.
Desenha-a como quem embala um remorso, com algum grau de abstração e sem um plano rigoroso. Estou aqui a falar do direito e da acessibilidade à saúde. Mas, extrapolando para outros domínios, não é difícil perceber que, havendo consciencialização das desigualdades entre diferentes zonas do país, a revolta se instale e se alimentem movimentos extremistas. O direito à saúde devia ser igual para todos. Torná-lo possível devia ser o esqueleto de aço que suporta a nossa casa.