O problema foi o Natal. Dos debates parlamentares ao comentário político televisivo, a suspensão das medidas mais restritivas do estado de emergência, decretadas, pelo Governo, para quatro dias, durante o período natalicio, é o fator responsável pelo disparo do número de casos, internamentos e mortes por Covid-19. Mas será que houve vozes dissonantes, quando esse alívio de confinamento foi decretado? Ou o prognóstico só se fez, agora, no final do “jogo”?
Um dos mais criticos, na sua análise, na SIC, no passado domingo, foi Luís Marques Mendes. Ora, no seu programa de 6 de dezembro de 2020, Marques Mendes declarava-se genericamente de acordo com as medidas de levantamento de restrições, durante o Natal. É verdade que só a 14 de dezembro foram reportados os primeiros casos da variante inglesa e que mesmo antes disso, a 12, o comentador corrigia, parcialmente, o tiro, criticando “medidas contraditórias” – mas sem nunca pôr em causa algum alívio do estado de emergência.
Noutros programa de comentário político, na SIC, como o Eixo do Mal, só Luís Pedro Nunes avisou para os riscos da abertura: “A noite de Natal pode provocar 800 mortes. Se carregassemos dois ou três airbus sabendo que se iam despenhar ali à frente, ninguém tomaria essa decisão…” Mas Daniel Oliveira lembrava que não valia a pena “proibir as pessoas de se encontrarem: “Elas fá-lo-ão à mesma”. Tanto neste programa como no do “Governo Sombra”, as palavras do sub-diretor-geral da saúde, Rui Portugal, que recomendava “uma comppota” oferecida no “patamar da escada, com o devido distanciamento”, eram inapelavelmente ridicularizadas. Mesmo tendo em conta a figura e o inusitado da “mensagem”, ninguém reconheceu um fundo de alarme nos atabalhoados avisos daquele responsável.
Mas depois de os tais airbus terem mesmo acabado por se despenhar, o erro do Governo é agora brandido no argumentário político da oposição, no Parlamento e cá fora. E as palavras de António Costa, proferidas quando da decisão de abrandar as restriçõe, colam-se-lhe à pele: “Há uma clara indicação de que se terá dobrado o pico da segunda vaga e que se entrou na fase descendente, quer em número de novos contágios quer no que respeita a internamentos”. Mas se estas previsões se revelaram tragicamente erradas, a corroboração do líder da oposição dá-he pouca moral para vir, agora, reclamar: “Compreendo que o Governo possa vir a decretar para o Natal uma situação de menor rigor em relação a estas medidas que têm estado em vigor”, disse. “As pessoas têm sido muito martirizadas”, e, “se o Natal fosse muito apertado”, não se conseguiria facilmente “conquistar as pessoas para depois cumprirem devidamente” as restrições necessárias.
Compreendo que o Governo possa vir a decretar para o Natal uma situação de menor rigor. As pessoas estão muito martirizadas
Rui Rio, dezembro de 2020
Na televisão, “profetas da desgraça” como Paulo Portas estiveram, desde o inicio, contra o abrandamento das restrições e no seu comentário “Global” de domingo na TVI, o antigo ministro e ex-líder do CDS dava constantemente o exemplo da Alemanha, pedindo ao Governo, ao menos, para “dar um indicativo de quantas pessoas se poderiam sentar à mesa” na Consoada. Ao contrário, Marques Mendes recusava essa ideia: “Não há um polícia para cada família”.
A 77 dias das festas, a 9 de outubro, já Marcelo Rebelo de Sousa tinha avisado que talvez fosse necessário “repensar o Natal” em família. Mau grado essa sua disposiçao, muito mal recebida nas redes sociais e em diversos meios políticos da oposição, ainda a 20 de novembro insistia: “Poderá ser necessário o país continuar em estado de emergência durante todo o mês de dezembro, incluindo no Natal, para travar uma terceira vaga em janeiro de 2021”.
[As Festas] são, para a restauração, hotelaria e turismo, uma das poucas oportunidades
André ventura, 16 de dezembro
Ora, se um Governo deve saber ser impopular e ir contra a corrente, em nome de um bem maior – e, por isso, a unanimidade em torno do alívio do Natal não o desculpa – também relativamente ao Presidente se desconhece o que motivou o seu beneplácito ao alívio natalicio, mesmo depois de ter sido o primeiro a alertar para a terceira vaga de janeiro. O País nunca saberá se Marcelo se deixou mesmo convencer de que os números permitiam um abrandamento no Natal ou se, no contexto de pré-campanha, teve uma ponderação de natureza eleitoral. O Presidente vivia num quadro em que todos os outros candidatos aprovavam a abertura. Um dos seus adversários mais aguerridos, André Ventura (também agora um dos mais cáusticos a atacar a atuação do Governo…) dizia, à saída de uma audiência, em Belém, a 16 de dezembro, onde se discutiu a forma como o estado de emergência iria ser “macio” no período natalício: “Para muitos operadores, na restauração, no turismo e na hotelaria, esta é uma das poucas oportunidades de negócio”. Ainda a 18 de dezembro, Ana Gomes clamava que não se deveria “banalizar o estado de emergência”.
Deixem as pessoas desfrutar deste momento
Jerónimo de Sousa, 16 de dezembro
À saída das audiências que decorreram no âmbito da declaração já citada de André Ventura, só Sílvio Cervan, do CDS, foi suficientemente ambíguo para não ser acusado de querer a abertura, mas a sua declaração dá para tudo. Perante o alívio das restrições advertiu: “Se a realidade exigir medidas diferentes, temos de saber tomá-las, no sentido positivo ou negativo”(?!). Já todos os outros mostravam “compreensão” pela exceção natalícia. Cotrim Figueiredo, da IL, dizia, também a 16 de dezembro – já com a variante inglesa no terreno… – não haver “alterações” no estado da pandemia, pelo que a sua opinião [pelo alívio das medidas] não tinha mudado. José Luís Ferreira, dos Verdes, afirmava que “algumas medidas [restritivas] que têm vindo a ser tomadas só têm contribuído para prejudicar”. Rui Rio considerou que o alívio das restrições durante a época de natal era “adequado”. No entanto, pediu ao Governo que tivesse ”a coragem para que, depois da passagem de ano, sejam implementadas novamente medidas mais rigorosas, caso se verifique que a abertura no Natal correu mal”. Ou seja, para o presidente do PSD a passagem de ano ainda decorreria sem grandes restrições… Já Catarina Martins sublinhava ser “importante” que as pessoas pudessem “tomar as suas decisões, para se encontrarem em família, no Natal”.
E o resumo perfeito desse dia de “harmonia” entre os partidos e o Governo, a propósito da suspensão das restrições, durante o Natal, foi exemplarmente verbalizado pelo secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa: “Deixem as pessoas desfrutar deste momento!”.