(1) O racismo, a pobreza e a brutalidade policial são problemas que se entrecruzam estruturalmente na sociedade americana. Não vale a pena negar. Nem relativizar. Quando se diz que, das mil pessoas mortas pela polícia em 2019, 370 eram brancos, 235 eram afroamericanos e 158 hispânicos, não se está a minimizar o racismo, mas sim a documentar a brutalidade policial. Quando se fala dos pobres brancos (os deploráveis na linguagem infeliz de Hillary Clinton em 2016), não se está a esconder o racismo, mas sim a confirmar que as desigualdades são uma fonte inevitável de tensão nos Estados Unidos. Felizmente muitos americanos reconhecem e preocupam-se com estes problemas. Os Estados Unidos têm uma rica tradição de mobilização social e sentido de comunidade, desde uma multidão de ativistas, gente no terreno, até à generosa filantropia (sem igual no mundo), passando pela advocacia do public interest litigation. E só podemos saudar quem protesta pacificamente contra mais um episódio lamentável que nos choca a todos.
(2) O protesto pacífico e ordeiro de milhares de ativistas não deve ser confundido com os desacatos violentos de criminosos. São gente que, cobardemente abusando da generosidade ativista, pretende instalar o caos sem sentido.
(3) Não faz nenhum sentido reduzir todas estas dinâmicas sociais, mais ou menos generosas, mais ou menos violentas, a uma mera questão partidária. Desde logo, a morte de Floyd não ocorreu num estado do Sul, mas no Minnesota, um estado tradicionalmente progressista, e numa cidade como Minneapolis (que não tem um mayor republicano desde 1974). Existem 850 mil polícias nos Estados Unidos. Contudo, as competências, logísticas e realidades são quase exclusivamente estaduais e municipais. Existe, pois, inevitavelmente uma enorme variância em termos de qualidade policial, mesmo num assunto tão sensível como prevenir e dissuadir a brutalidade. Essa variância não reflete questões partidárias (democrata/republicado), mas dinâmicas distintas e preocupações sociais diferentes.
(4) Dizer que a polícia é uma questão local ou estadual não significa que o Presidente dos Estados Unidos não tenha qualquer importância no assunto. Tem. É verdade que mesmo Obama fez pouco em termos práticos (obviamente se tivesse feito muito mais, o problema provavelmente não teria as dimensões que agora assumiu). Mas não podemos ignorar que a retórica presidencial tem impacto nestas dinâmicas. Não é preciso ser um apreciador da presidência Obama para aceitar que um discurso conciliador ajuda muito mais todo o esforço do ativismo social e comunitário no combate ao racismo, na prevenção da brutalidade policial e na procura de soluções locais para a pobreza do que uma animosidade permanente e intolerante.
(5) Em 1992, Los Angeles sofreu a mesma explosão de protesto social por um episódio não muito distinto do atual. Consequências práticas houve poucas, mas a perceção (justificada ou injustificada) de um novo período que se abriu com a presidência de Clinton (eleito uns meses depois) acalmou as tensões então manifestadas. Infelizmente, o atual presidente prefere deitar gasolina nestes problemas. E não me refiro apenas a declarações nestes últimas semanas, mas desde sempre.
(6) Já a comparação com 1968, quando protestos violentos se sucederam ao assassinato de Martin Luther King, é mais complexa. Pois, politicamente, eles estão na origem da agenda do law and order como prioridade republicana e contribuíram decisivamente para a eleição de Nixon (que derrotou o vice-presidente Humphrey por uns escassos 500 mil votos).
(7) É muito possível que os ativistas pacíficos vejam no seu movimento uma oportunidade de mobilização do voto, afroamericano e abstencionista, em Biden. Sabemos que Trump ganhou em 2016 em virtude da realidade do Colégio Eleitoral, e não do voto popular (onde perdeu). E sabemos que essa matemática depende de um conjunto pequeno de estados onde a mobilização importa muito (por exemplo, Trump ganhou por 50 mil votos no estado da Pensilvânia, uns meros 0,6%, ou por 10 mil votos no Michigan, apenas 0,25%). Mas tenho muitas dúvidas que as imagens de violência sejam boas notícias para quem não quer Trump reeleito. Tal como em 1968, veremos se o law and order não mobiliza voto das classes médias que, assustadas com o avolumar crescente das tensões, preferem um executivo forte e disciplinado.
(8) Seja como for, os Estados Unidos são uma democracia. O poder ganha-se nas urnas, e não nas ruas. Trump deve perder, mas deve perder nas urnas, no tribunal das eleições, onde cada um expressa livremente a sua vontade. A tentação de derrubar Trump por qualquer mecanismo ilegítimo e inconstitucional é, na verdade, fazer o jogo de Trump e do seu projeto político. Porque vitimiza quem não é vítima de coisa nenhuma. O dia que conta é 3 de novembro. É nesse dia que importa por fim a quatro anos de uma presidência tão desastrosa.