Fui apanhado desprevenido quando recentemente me pediram um depoimento sobre turismo macabro. “Sobre o quê?”. Sim, destinos tipo Chernobyl, Auschwitz, percebe? Como no show da Netflix.” Com os exemplos dados, o significado de “turismo macabro” era imediato – mas eu desconhecia que o conceito estivesse tão bem sistematizado e que constituísse um “ramo” da indústria global da viagem. Também não sabia que tinham feito um travel documentary com destinos macabros.
Comecei por esclarecer que não pratico turismo do macabro e que nem entendo a pulsão que leva alguém a percorrer o mundo para visitar lugares ligados a sofrimento, tragédia e morte. O meu depoimento não teria qualquer utilidade para a jornalista. Mas ela insistiu.
Tentei repescar da memória qualquer evento pessoal que pudesse servir de base para o depoimento. Fui primeiro reler Tragic Shores, um livro que relata as viagens do autor, Thomas Cook, a dezenas de destinos onde qualquer coisa de muito mau aconteceu. Os pequenos capítulos oferecem um elenco da imensa falta de humanidade que o ser humano regularmente possui. Os killing fields do Camboja, onde o regime de Pol Pot executou mais de um milhão de pessoas; a Plaza de Mayo em Buenos Aires, onde as mães das dezenas de milhares de desaparecidos pediam justiça e informações sobre a morte dos filhos; a ponte Golden Gate de São Francisco, que detém o recorde mundial de suicídios; a cidade de Bhopal, na Índia, onde uma fuga de gás da fábrica da Carbide matou quatro mil pessoas numa noite de dezembro de 1984. E o Ruanda, e os campos de concentração dos nazis, e Hiroxima.
Thomas Cook argumenta que, ao enfrentar estes lugares sombrios, aprendeu a valorizar a luz que irradia da vida; e com essa fundamentação consegue não cruzar a linha de divisão que separa uma viagem cultural do turismo do macabro. Já esse cruzamento é ostensivamente pisado de cada vez que um turista tira uma selfie em Auschwitz, ou procura o prédio onde morreram pessoas carbonizadas num célebre incêndio, ou apanha um táxi para ir ver a casa onde viveu um serial killer, ou visita a escola onde uma criança psicopata disparou a matar sobre os seus coleguinhas.
Embora me pareça absurdo gastar dinheiro a viajar para satisfazer a curiosidade mórbida que existe em cada um de nós, a verdade é que eu mesmo não resistia ao apelo dos lugares sombrios, dos dark places, sempre que ao longo dos meus itinerários deparava com museus, cemitérios, memorials, monumentos que evocavam momentos terríveis da História. O mais comovente de todos estes pontos absolutos do horror humano que jamais visitei foi o cemitério dos prisioneiros de guerra de Kanchanaburi, na Tailândia, com milhares de singelas campas rasas de soldados aliados sacrificados durante a construção da infame Ferrovia da Morte, através da qual os japoneses pretendiam invadir a Índia britânica a partir de Singapura.
A comoção que senti na altura dentro do cemitério explica-se, por um lado, com o evento a que diz respeito, muito bem retratado no filme A Ponte do Rio Kwai; e, numa escala maior, explica-se pela forma como associamos a Segunda Guerra Mundial a uma luta entre o Bem e o Mal. A vitória do Bem foi conseguida graças ao sacrifício destes soldados. Cada um de nós deve-lhes a liberdade em que vivemos.
Na altura eu era jovem e ainda não tinha um filho. Mesmo assim, o sofrimento indizível dos pais, expresso nas poucas palavras de despedida, gravadas nas lápides por baixo da idade dos filhos, impressionou-me tanto que estabeleci um elo paternal com todos os rapazes mortos em guerra, naquela guerra. Hoje, que tenho um filho rapaz, não teria forças sequer para entrar no cemitério de Kanchanaburi.
(Opinião publicada na VISÃO 1381 de 22 de agosto)