No último artigo, manifestei-me contra o discurso binário, a tendência crescente que divide o campo político em dois lados opostos, inconciliáveis. Este discurso parte da identificação do lado oposto como traidor, degenerado, corrupto, e afirma o nosso lado como o espaço do bem, da ética, da moral. Há uma radicalização da militância, porque o que está em causa não é a decisão sobre as melhores políticas para um país mas a escolha entre o bem e o mal.
Num artigo publicado na The Atlantic de outubro, A Warning From Europe: The Worst Is Yet to Come, Anne Applebaum nota como a polarização, as teorias da conspiração, a imprensa como elemento desestabilizador, as elites globais ou grupos sociais como a causa dos males, a obsessão com a lealdade à pátria são sentimentos tão fortes na natureza humana que são manipuláveis por políticos que necessitam desse clima binário para sobressaírem. É o que está a suceder.
Uma vez polarizado o discurso, alimentado pela conspirativa ideia de que há um plano fascista ou altermundista ou integrista ou comunista ou islamita ou capitalista, tudo servido pela imprensa que nos contradiz, deixa de haver margem para hesitações, para consensos, porque qualquer entendimento é uma traição, uma contemporização. Como já aqui caricaturei: se não estás com Trump é porque estás com Michael Moore; se não estás com Michael Moore é porque estás com Trump.
A consequência deste discurso binário é a radicalização do espaço público, a redução do debate aos seus extremos. Deixa de haver um esforço de compreender o próximo, e é tudo embrulhado num combate moral. Não é de admirar que haja eleitorado que salte de um campo para o outro, por mais diferente que seja, porque o que o motiva é a sensação de pertencer ao lado que, no momento, parece o certo.
Nesse artigo, Applebaum assusta-se com os efeitos dessa polarização numa parte da direita que, em tempos, foi liberal, pró-mercado, pró-globalização. Também eu me assusto com essa tendência no meu campo político, disposta a ceder em valores essenciais, como o da liberdade, apenas para poder vencer a hegemonia política, cultural, mediática, que atribui à esquerda. O que se passa na Polónia e na Hungria é preocupante, afasta-se substantivamente do consenso liberal da direita democrática, e afirmar este afastamento, como alguma direita já fez, e bem, no Parlamento Europeu, não é fazer um favor à esquerda: é fazer um favor à direita.
É natural que Applebaum se foque na direita, o seu espaço, porque há aí um combate que só gente à direita pode travar. Acusá-la de colaboracionismo é estupidez. Mas o mesmo fenómeno sucede à esquerda, com a glorificação de corruptos de quem se presume lisura, porque de esquerda, com o silêncio face a autocratas de esquerda, com a distribuição do rótulo de fascista a qualquer pessoa da direita democrática, com a afirmação totalitária de uma superioridade moral.
Este movimento de polarização expulsa os moderados do debate político. Note-se que a designação de moderado é hoje pejorativa, precisamente porque se vê nele um brando, incapaz de romper com o esquema do inimigo. Os moderados são os novos apátridas políticos, rejeitados pelos dois lados, vistos com condescendência, complacência.
Há dias escrevi um tweet sobre Bolsonaro e Haddad, dizendo que nenhum merecia o meu apoio. E as reações foram interessantes. De um lado, disseram-me que estava a fazer o jogo do PT, a ser levado pela imprensa esquerdista. Comigo, escreveram, a direita estava condenada a ser trucidada pela esquerda. Lamento, mas eu fui ver e ler o senhor e não encontro forma de enquadrá-lo no liberalismo ou na Doutrina Social da Igreja. Do outro, disseram-me que contribuía para a derrota de um projeto de progresso. Comigo, escreveram, a direita assumia o seu fascismo. Lamento, mas a candidatura de Haddad serve outros propósitos que não o progresso ou o combate ao fascismo, serve antes a manutenção de um sistema clientelar e corrupto, que se desenvolveu ao longo de décadas, face ao qual a esquerda não se distanciou.
Como é evidente, o que relato é caricatural, mas dá bem conta da polarização a formar-se, da necessidade de optar, como se as opções pudessem ser apenas estas, convidando qualquer um a sair da moderação e a escolher um dos lados, sob pena de ser tomado por traidor.
Os princípios liberais não me são descartáveis, e se isso faz de mim um moderado num tempo de polarização, pois que seja. Mas serei um moderado radical na defesa desses princípios. Porque não há nesta moderação qualquer relativismo. Pelo contrário, é a radicalização que prescinde dos princípios em nome de um fim.
(Artigo publicado na VISÃO 1336, de 11 de outubro de 2018)