Não tinha expectativas, tinha certezas quando cheguei por fim ao Salar de Uyuni no profundo interior da Bolívia. Tinha a certeza que nos próximos dias iria atravessar um lugar que só por si seria suficiente para justificar uma vida dedicada a viajar, para justificar a renúncia a tanta comodidade burguesa e segurança financeira, tanta fuga para a frente, tanto investimento num ideal de vida que não me levara por enquanto a lado nenhum ─ apenas aos lugares mais remotos do planeta.
A quase 4000 metros de altitude, rodeado de vulcões na distância que facilmente tocam os 5000 metros, este planalto absolutamente seco, branco, reverberante, desértico, alucinado é uma das paisagens mais estupendas do mundo. As anomalias na paisagem não param de nos surpreender: furnas activas no meio do gelo, lagoas radioactivas de cobalto, desertos de sal, flamingos imóveis no frio austral, alpacas a pastar no sopé de vulcões perfeitos.
Inscrevi-me num tour que durante alguns dias se enfiava neste universo de mistério e desolação. “Tour” era um eufemismo para descrever o programa de uma agência de Uyuni que ia agregando mochileiros em grupos de quatro à medida que iam chegando à agência; os enfiava num jeep em mau estado; e os enviava num circuito onde serviço, conforto e informação no terreno eram deploráveis ─ mas a paisagem fazia esquecer tudo isso. Lembro- -me de ter comprado algumas garrafas de vinho branco argentino e, pensando bem, esse foi o melhor negócio, em termos de vinho, que fiz na vida. Por um lado, a recente bancarrota argentina baixara o preço dos produtos argentinos para um terço do seu valor ao câmbio do euro; por outro, um copo desse chardonnay a 4000 metros de altitude equivalia a três ou quatro copos ao nível do mar. Assim, posso dizer que paguei por esse vinho que bebi no Salar de Uyuni um sétimo do valor que estaria disposto a dar por ele.
Talvez pela altitude, talvez pela ausência de referências visuais, talvez pelo espírito surreal do lugar, tive durante esses dias alguns dos encontros mais bizarros da minha vida. Um deles foi o señor Quesada, motorista, guia quase mudo e cozinheiro falhado do tour. Para além de não ter ficado a saber quase nada nem dele nem do Salar, recordo de o ver adormecer ao volante, depois de lhe ter oferecido um copo de vinho branco ao almoço, durante vinte minutos enquanto o seu jeep continuava certinho a seguir em linha recta pela superfície lisa e sem solução de continuidade do Salar. Outro encontro absurdo foi com três cicloturistas holandeses que pedalavam desde o nada em direcção ao nada, felizes pela existência de um lugar tão plano como a Holanda, apenas com a pequena diferença de uns 4000 metros de altitude. Quase inexcedível na tabela das experiências inqualificáveis foi o encontro ocasional e sem troca de palavras com um mineiro sozinho ao ar livre no meio de um vazio absoluto a escavar sal da terra, que ia acumulando em montinhos triangulares de uma perfeição inútil e comovente.
O cúmulo dos encontros surpreendentes, no entanto, deu-se uma noite em que saí do bunker que servia de hostal para fazer xixi, evitando o w.c. comunal que era irrespirável. Avancei pelo planalto cautelosamente enquanto a minha vista se adaptava à escuridão. Descortinei na distância um monte de pedras, achei que era o lugar ideal para fazer de urinol. Na realidade o monte de pedras era um pequeno nicho onde séculos antes tinha sido depositado um cadáver. Há vários, na região. O arrepio enquanto urinava foi duplo: pelo frio brutal dos 4000 metros e pela imagem surreal de uma múmia com centenas de anos a olhar para mim enquanto eu fazia xixi para cima dela.