Era uma quarta-feira normal. O Evandro enviou mensagem do Brasil, dizendo que a Paula (“empresária” do Caetano) me queria convidar para o concerto no Coliseu do Porto. Caetano tinha ouvido o Língua Franca e tinha gostado muito. O Língua Franca é um disco de rap luso-brasileiro que fiz com Valete, Rael e Leandro, irmão de Evandro, conhecido por Emicida. Caetano tinha gostado muito! Ele, que é um ativista da língua portuguesa e me inspirou a ser também, tinha adorado a ideia: um disco de rap luso-brasileiro, feito na nossa língua franca – a portuguesa. Fiquei feliz!
Enviei mensagem a agradecer o convite, mas já tinha ido ver o concerto na noite anterior. Foi muito bom! Paula disse “poxa” e simpaticamente renovou o convite: “E que tal depois do concerto, é muito tarde?” (Formigueiro na barriga, histeria contida, incredulidade: como assim tarde?!?) Como é que, de repente, dali a duas horas, numa quarta-feira normal, se tinha proporcionado conhecer, em carne, osso e timbre, ninguém menos que Caetano Veloso?!?
Ainda bem que foram apenas duas horas. Fiquei adolescente. Dei saltinhos. Procurei um disco (dele) para autografar. Procurei um disco (meu) para oferecer. Ponderei mudar de roupa. Desisti. Não estava em condições de tomar decisões estéticas e oscilei entre achar que nenhum trapinho estaria à altura da ocasião e relativizar, convencendo-me que, no fundo, era só uma quarta-feira normal e que ia só ali, meia horita, a dois quilómetros de casa, conhecer Caetano (!!!).
À hora marcada, lá estava eu à porta do hotel, com os discos na mão, ainda mais adolescente (e a tentar disfarçar), com a mesma roupa e um batonzinho rosa. Pouco depois, chegaram (simpáticos) Paula e Caetano que, menos alto do que imaginava, me pareceu ainda mais bonito, com seus movimentos leves, o seu sorriso franco, a sua voz suave… Receberam- -me numa salinha contígua ao quarto e foi no sofá que ficámos à conversa, naquela quarta-feira que, em duas horas, passou de normal a efeméride.
Falámos do Língua Franca, dos concertos no Coliseu, do Porto e suas canções, para chegar às palavras de Tê, que ouvimos juntos, na voz de outro Veloso, num “Porto Sentido” tocado no Spotify. Falámos de Barcelona e de um verão passado na Catalunha dos anos 70. Falámos de Formentera e da canção de Gil, que Elis também gravou, e que Caetano decidiu cantarolar ali, para meu encantamento: Formentera é uma ilha onde se chega de barco, mãe. Falámos da língua portuguesa, do tu e do você, de Carminho cantando Tom e de Zambujo cantando Chico. Eles petiscaram. Eu bebi a água que o sobressalto permitiu. Tirámos uma fotografia e ainda bem, porque na manhã seguinte pude confirmar que tinha sido mesmo verdade.
Não consegui dizer-lhe o quanto ele é importante como minha referência, como musa, mito, astro. Não lhe disse que está no meu Olimpo. Que tem a mais bela das vozes, que é uma espécie de guru e que há muito poucos que o igualem na minha hierarquia de genialidade (vivos, mortos, todos eternos…). E nem sequer foi para evitar fazer figura de fanzoca (que sou), foi mesmo porque fui violentamente atropelada pela emoção e, mesmo que tentasse, não ia conseguir balbuciar nada à altura da minha devoção. (Valeu-me o abraço apertado que lhe dei.)
No fim, ainda conversei um pouco com Paula Lavigne, que me contou porque é que deixou de trabalhar em cinema para se dedicar à indústria musical. Falámos de filmes, de internet, de música e, sobretudo, de música na era da internet. Carismática, gesticulando muito e do alto da sua sapiência matriarcal, disse-me: “Minha filha, música não é comércio, agora é serviço! Ninguém mais vende discos, só aluga no streaming. Pode escrever, quem não ganhou dinheiro com música, não vai ganhar mais não!” Pode ser. Mas para mim, que nem sequer tinha sonhado em viver da música, com mais esta quarta-feira, estou no lucro!