
Susa Monteiro
Qual é a diferença entre os vivos e os mortos? Napoleão dizia haver certos mortos que era preciso matar, Maquiavel que os mortos eram mais interessantes que os vivos, Quevedo que conversava com eles através dos livros e os escutava com os olhos. Se abro, por exemplo, um livro do século XVI, estou a ler as palavras ou a escutar o autor? E, no caso de escutar o autor, está ele vivo ou morto? Se ele morreu porque é que eu o oiço, porque me comunica o que sente, porque conversa comigo? Pergunto
– Quem é ele?
mas isso é a pergunta que me faço todos os dias
– Quem sou eu?
porque, na realidade, quem sou eu de facto? Conheço algumas reações minhas, não me conheço a mim, somos tão imprevisíveis para nós mesmos. Quem está aqui comigo, agora que penso que estou sozinho? Ninguém e, no entanto, sinto presenças, uma realidade móvel, sombras de vozes. De quem? E os que não falam, não se afastam, não chegam? Quem nos acompanha não somando a sua sombra à nossa, antes utilizando a que nos pertence? A última vez que estive com o João mesmo ao andar não tínhamos sombra nenhuma: existiríamos de facto? Quando nos separámos afastámo-nos ou ficámos juntos? A sensação que eu tinha é de que ficámos juntos. A dele não lhe perguntei mas não me pareceu muito diferente. As pessoas que amei permanecem comigo ou foram-se? Dá-me ideia que permanecem mas não estou certo. Não estou certo seja do que for, aliás, tudo é tão constantemente mutável. No fim de contas o que é ser vivo, o que é ser morto? Qual a diferença? Vejo todos os dias o mesmo homem na mesma rua estreita. No inverno do lado do sol, no verão do lado da sombra, sempre encostado à parede, com as muletas ao lado. Não fala com ninguém, quase nem olha. Se lhe digo
– Bom dia
não me responde. Talvez seja um mendigo mas nunca o vi pedir esmola apesar de mais ou menos vestido de farrapos, sem se interessar pelas pessoas. Estará vivo, morto? Não me olha nunca, não olha seja para o que for. À noite, se calhar, desaparece ignoro onde mas nunca o vi mover-se. Digo se calhar desaparece mas também pode ficar ali, no escuro, uma sombra somada às outras sombras: a rua não é muito clara, tem poucos candeeiros, é difícil distingui-lo no caso de permanecer no passeio. Quem me garante que está vivo, quem me garante que está morto? No outro dia meti-lhe uma moeda na mão e a mão não se mexeu para aceitar ou recusar. Talvez ainda a guarde na palma, talvez a haja deixado cair. Em todo o caso, no chão, moeda alguma. Nunca o vi comer fosse o que fosse, nunca lhe notei uma mudança de expressão, nunca dei conta do corpo numa postura diferente. Como procederá para cambiar de passeio duas vezes ao ano? Não se penteia, não se cuida, não se lava. O que fará ele para além de não fazer nada, através de que milagre continuará a durar? E, pergunta mais importante, continua vivo ou continua morto? No restaurantezito onde como pessoas que conversam. Não se ouvem os lábios. Vêem-se alguns gestos, vêem-se as costas curvadas para a toalha. A empregada vem e vai sem que lhe falem. Que sítio é este afinal, que sítios serão os outros sítios? E serão sítios de vivos ou de mortos? Qual a diferença? Maquiavel insistia que os mortos eram mais interessantes que os vivos, tinham mais coisas para contar, coisas de séculos às vezes, e Napoleão queria matar alguns. E Malaparte conta a luta entre os vivos e os mortos dos tártaros, durante a Segunda Guerra Mundial. Amarravam um prisioneiro alemão a um cadáver, cara contra cara, peito contra peito, ventre contra ventre, pernas contra pernas, e mantinham-nos assim até que os mortos começavam a devorar os vivos. Só então os separavam e lançavam ambos os cadáveres para uma cova, o morto que matara o vivo e o vivo que fora morto pelo morto. Em certas partes de África, outrora, usavam os mortos como assassinos também. Se acontecesse aqui como fazer? Prender os mortos, condená-los a anos de prisão, vigiados por guardas, deixar-lhes comida, em que não tocavam, na cela? E o que comem os mortos para além dos vivos? De que se alimentam eles? O homem encostado à parede da rua, e que nunca vi comer, alimentar-se-á de um ou outro vivo que lhe passe perto? Não será melhor eu afastar-me um bocadinho ao passar ao pé dele mas depois penso qual de nós será o vivo, ou estaremos ambos vivos, ou estará ele vivo apenas? Descobrir isso talvez não se torne assim tão difícil: os mortos são aqueles que escutam com os olhos e portanto é uma questão de ficar atento. Escutarei eu com os olhos, escutarei com os ouvidos? Não sei. Um dia destes sento-me num banco de avenida e fico ali uma tarde inteira até me certificar, medindo os ruídos e as criaturas. É possível que chegue a alguma conclusão.
E, se estiver morto, pode ser que me ofereça para carrasco tártaro. Será aconselhável o leitor desta crónica não se aproximar muito do papel, não vá a fotografia que acompanha o texto saltar para ele com a boca desmedidamente aberta, a engolir-lhe as feições.