É um mistério da História porque é que a História acarinhou a memória dos cartagineses despedaçados e dos gregos conquistados, mas tratou tão mal os etruscos absorvidos. Sabemos o que disse Roma sobre Cartago: delenda Carthago. “Destrua-se Cartago”. Sabemos melhor ainda o que disse Roma sobre a Grécia: Graecia capta ferum victorem cepit. “A Grécia conquistada conquistou o feroz vencedor”. Sabemos que Cartago não podia ser poupada, e sabemos que a civilização grega moldou a futura grandeza romana. Sabemos tudo sobre os gregos e os cartagineses. Mas não sabemos o que disse Roma sobre os etruscos. Curiosa ausência da História. Não apenas as palavras sobre os etruscos mas a própria existência dos etruscos manteve-se oculta e esquecida durante séculos, remetida a uma extravagância de enciclopédia.
Foi precisamente um extravagante inglês, o arqueólogo diletante George Dennis, quem na década de 40 do século XIX revelou ao mundo a existência das fabulosas ruínas e necrópoles etruscas na região italiana que hoje se chama, precisamente, Etruria. O trabalho pioneiro de George Dennis deixou intuir a extraordinária riqueza e importância desta civilização para a formação do Império Romano.
Hoje, quase duzentos anos depois das escavações de Dennis, quando finalmente os arqueólogos, os museus, as exposições, os programas escolares e o interesse dos turistas repõem a Etrúria no centro da Antiguidade, perguntamos: o que fez a História aos etruscos? Porque os tratou tão mal durante tantos séculos?
Orvieto é uma das portas de entrada no mistério etrusco. Cidade aparentemente medieval, erguida estrategicamente no topo de um cocuruto quase inexpugnável, foi tal como Cartago completamente destruída pelos romanos depois de um cerco que durou quase dois anos. Orvieto era uma das principais cidades dos etruscos, aquela que conservava o seu templo religioso mais importante, e talvez esse simbolismo explique a fúria inclemente de Roma contra esta cidade em particular no ano de 264 a.C. Os habitantes que sobreviveram foram obrigados a fundar uma nova cidade a dias de distância desta, tudo o que tinha valor foi pilhado e transportado para Roma, e durante séculos nada cresceu aqui.
Orvieto não era o nome etrusco. É o nome medieval, da cidade renascida. Os etruscos chamavam-lhe, na sua língua ainda hoje quase indecifrável, Velzna. A cidade renascida pareceu saber que tinha uma reputação a manter, uma dívida de gratidão para com a cidade antiga. Talvez por isso ergueu uma das catedrais mais extraordinárias do mundo, um dos centros históricos mais bem conservados de Itália, um dos Juízos Finais mais aterradores do Renascimento, o de Luca Signorelli. Nos anos oitenta, uma rede de subterrâneos etrusca veio a descoberto e foi aberta aos turistas. Com um museu e uma necrópole etrusca de enorme interesse, tudo isto junto seria mais que suficiente para fazer de Orvieto uma das cidades mais celebradas e visitadas de Itália.
Em qualquer outro país, Orvieto seria uma das cidades mais celebradas e visitadas. Mas em Itália, a uma hora de distância de Roma, ofuscada por tudo o que é celebrado e visitado em Roma, Orvieto parece continuar a sofrer dessa maldição, dessa afronta milenar que lhe foi lançada em 264 a.C. O turismo evita ou maltrata Orvieto, como se quisesse acentuar a afronta.
Pensando bem, não ter excursões com bandeirinhas e megafone pelas ruas do centro histórico, nem quiosques a vender rosários e calendários do papa à porta da extraordinária catedral, nem estátuas vivas de gladiadores etruscos a pedir esmola em frente à necrópole, e não estar três horas em fila de espera para ver um dos grandes Juízos Finais do Renascimento, afinal não é nenhuma maldição.