Depois do 11 de Setembro, o Presidente G. W. Bush achou por bem assinar o célebre “USA Patriot Act” (Ato Patriota). O decreto, sem aprovação prévia do Congresso, permitia que os órgãos de segurança e de inteligência dos EUA intercetassem ligações telefónicas e e-mails de organizações e pessoas, americanas e estrangeiras, sem necessidade de qualquer autorização judicial. A forma de reagir ao terrorismo foi varrer por decreto a privacidade de qualquer pessoa. As reações foram intensas, o debate nunca parou até à revogação da coisa patriótica (2015). Clamou-se sempre pelo direito à privacidade. As pessoas envolveram-se no debate. Primeiro, por terem uma consciência “objetiva” do princípio da privacidade. Segundo, porque o decreto tornava evidente que qualquer pessoa podia ser vítima do abuso. Sentia-se o medo de se ser a vítima concreta do abuso. Não era “com os outros”.
Já aqui expliquei que o livro Eu e os Políticos, de José António Saraiva, é um livro criminoso e inaugural (nunca se foi tão longe na devassa de direitos de personalidade).
No “livro” é relatado um episódio da vida íntima e sexual de alguém, esse alguém interpôs uma providência cautelar em defesa da sua privacidade e o Estado de direito democrático (EDD), para já, falhou em toda a linha. O EDD funcionou em modo “Patriot Act”. Estamos todas e todos em perigo.
Numa sentença negativamente histórica, a juíza Capitolina Fernandes Rosa, dos juízos cíveis de Lisboa, redescobre todo um novo significado para o artigo 26.º da Constituição (CRP), que estabelece o “direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar”. Primeiro, não o aplica ao caso (que estranhamente trata como se a autora da providência cautelar tivesse feito uma queixa por difamação ao invés do que se passou a apresentação de uma providência cautelar não especificada fundamentada na defesa da sua vida privada). Em segundo lugar, sequestra a nossa cultura jurídica e “descobre” que a vida íntima e sexual de uma pessoa não é, basicamente, “vida íntima”.
Para Capitolina, sem invocação de qualquer interesse público que justifique a narrativa de Saraiva (que o não há, evidentemente), o direito à vida íntima tem como que um carácter “objetivo”, não se refere à pessoa concreta tomada na sua individualidade (como obriga o respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana). Não, Capitolina trata de “ponderar” se a sociedade, em tese, ficaria chocada com o relatado e “acha” que não (talvez tivéssemos toda uma outra sentença se o episódio íntimo envolvesse chicotes, quem sabe?). Trata de “achar” que estando em causa uma obra do tipo literário, digamos, não se aplicam os critérios mais apertados a que está sujeita uma obra jornalística.
É aqui que Capitolina capitula. Capitula para nossa desgraça coletiva. Depois de um livro inaugural em termos de devassa, temos uma sentença inaugural que o protege devassando os critérios elementares de interpretação jurídica dos direitos fundamentais. De acordo com a novíssima jurisprudência, eu, que sou escritora, posso relatar num livro (inventando ou não, não interessa) um episódio íntimo e sexual seu, que me está a ler.
Ora, está em causa um direito de personalidade, portanto um dos que, no conjunto dos direitos fundamentais, têm uma relação mais íntima com o princípio da dignidade da pessoa humana. O fundamento do direito em causa é a existência de um seu titular “concreto”, não é uma abstração em relação à qual uma juíza possa fazer juízos próprios e remissivos para a “moral comum”. Não estamos a falar de pessoas coletivas, a CRP está a proteger “a” pessoa: tu.
O direito à reserva da intimidade, por ter essa conformação constitucional, tem um conteúdo essencial que não pode ser sujeito a ponderações com o direito à liberdade de expressão ou o direito à liberdade de imprensa. A mensagem da Constituição é clara (e nem a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem salva Capitolina): a vida íntima é reservada, é de cada pessoa em concreto, não pode ser divulgada (salvo consentimento, tratar-se de uma pessoa de poder e concomitantemente haver um interesse público excecional na divulgação).
A sentença causou um silêncio ensurdecedor. Talvez porque o episódio não envolve políticos, de certeza porque em Portugal pensamos que o caso diz respeito à autora da providência cautelar. Mas não. Diz respeito à deformação jurídico-cultural de um direito que é trave-mestra do EDD.
Fosse esta uma democracia amadurecida e um segundo depois de conhecida a sentença estaria o País estarrecido como tantos ficaram com o “Patriot Act”. Em Portugal, “diz que é com os outros”. Se assim continuarmos, sem absorvermos coletivamente o valor dos direitos de personalidade, como o direito à reserva da vida privada, sem a tal consciência “objetiva” do princípio da privacidade, seremos uma nódoa civilizacional.